O ser humano até pode estar na maior fissura: cada um por si, todo o mundo na lona, como cantava Elis Regina nos anos 1970. Mas há muito que sabemos que o marciano que ela "chamava" não passa de uma criatura da nossa imaginação. Nesse caso, o que justifica que o interesse da comunidade científica internacional por Marte não pare de aumentar, como demonstra o agendamento de quatro missões diferentes só para este ano de 2020? O que leva os governos de vários países a investir muitos milhões nestas viagens exploratórias a um planeta sem vestígios de água líquida, com uma atmosfera e um nível de radiação insuportáveis a qualquer habitante da Terra?.Zita Martins, professora no departamento de Engenharia Química do Instituto Superior Técnico de Lisboa, com uma carreira internacional que passou, entre outras instituições, pela NASA, assegura que as vantagens são muitas, embora recuse terminantemente a ideia de que Marte se pode converter num planeta B. "Mesmo o tão propalado turismo espacial, de que os americanos gostam de falar, de vez em quando, não passa de uma operação de marketing pouco realista", esclarece. Neste momento, até o projeto de enviar missões tripuladas parece remoto. "Há toda uma série de problemas que se colocam a partir da ausência de água no estado líquido", afirma. "A atmosfera carece de oxigénio (menos de um por cento) e, nessas condições, a própria ideia de produção de alimentos parece comprometida. Como fazer? Levamos água da Terra ou tentamos extraí-la in loco? Estas são apenas algumas das questões em aberto.".Embora o número crescente de expedições robotizadas a Marte pareça indiciar uma espécie de "corrida ao ouro" espacial, ao jeito da concorrência entre missões Apollo (norte-americanas) e Soyuz (soviéticas) em plena Guerra Fria, Zita Martins salienta que já não vale tudo. O segredo e o isolamento já não são a alma do negócio. "Não só a colaboração interagências e destas com a comunidade científica é maior, como vigora um acordo entre países que impede a contaminação do espaço com matéria transportada da Terra. Não haverá tolerância para junk space.".Depois dos Estados Unidos, dos vários países consorciados na Agência Espacial Europeia, da China e, finalmente da Índia (em 2014), será a vez de os Emirados Árabes Unidos se estrearem neste tipo de expedições. Em colaboração com a Universidade do Colorado, nos Estados Unidos, os engenheiros dos Emirados construíram Hope, uma pequena nave (aproximadamente do tamanho de um Mini Cooper) que se propõe percorrer em sete meses a distância de mais de 50 milhões de quilómetros entre a Terra e Marte. E, uma vez ali, recolher informação cientificamente relevante..O que os faz voar? Considerando que não é de negligenciar quer o orgulho identitário de países e agências quer o desejo de aprofundar conhecimentos, Zita Martins fala de um retorno financeiro muito interessante: "Estudos feitos pelos americanos nos últimos anos demonstraram que por cada dólar investido há um retorno sete a 14 vezes maior. Isto porque o desenvolvimento de tecnologias para as missões espaciais cria emprego nas próprias agências, nas empresas criadas para satisfazer essas novas necessidades e, finalmente, nas universidades que produzem a investigação científica sem a qual nada se pode fazer." Esta nova realidade atinge mesmo países sem aspirações a "colocar a bandeira" em território galáctico, como o nosso. "Há pouco mais de uma década, recorda Zita Martins, era escassa a procura de vagas no curso de Engenharia Aeroespacial do Instituto Superior Técnico de Lisboa. Era simples: os jovens não viam ali uma possibilidade realista de futuro, num país com poucos meios. Hoje, esta licenciatura tem uma média de entrada altíssima porque a procura disparou muitíssimo. Muitos dos licenciados nesta área procuram mesmo formar as suas próprias empresas, visando criar tecnologia utilizável nas missões.".Observável a olho nu na Terra, Marte está identificado como planeta desde a Antiguidade. No entanto (ou talvez por isso), tem alimentado as mais fantásticas suposições entre escritores, realizadores de cinema e até mesmo entre cientistas (como Nikola Tesla, o génio da eletricidade, que acreditava receber, dali, misteriosos sinais, ou o astrónomo Giovanni Schiaparelli que dizia ter identificado a existência de canais na superfície). Como diria mais tarde Carl Sagan, "Marte tornara-se uma espécie de arena mítica na qual nós projetamos as nossas esperanças e medos terrestres"..A nudez imposta pela verdade científica lançaria às urtigas o manto diáfano da fantasia. A partir do final do século XX, o envio de um número crescente de sondas e missões robotizadas viria a revelar que as condições atmosféricas de Marte tornam altamente improvável a existência de qualquer forma de vida, ainda que microscópica. A ter existido alguma vez, ela parece remontar a um passado muito distante, quando, como sugerem as informações recolhidas, terá existido ali água em estado líquido. Em 2020, quando passam 55 anos sobre a chegada à Terra das primeiras fotos (obtidas pela sonda da NASA, Mariner 4) do Planeta Vermelho alguma vez vistas, as quatro missões, de bandeiras diferentes, anunciadas para o próximo verão (quando os dois planetas estarão mais próximos entre si, o que só se repetirá em 2022), prometem aprofundar ainda mais os nossos conhecimentos sobre o misterioso "vizinho". Mesmo que ninguém esteja lá para ouvir os nossos apelos, o desafio permanece.