Ver e ser visto na Internet

Publicado a
Atualizado a

As pequenas distribuidoras independentes continuam a desempenhar um papel fundamental na diversificação da oferta cinematográfica. A Zero em Comportamento, por exemplo, tem apostado em alguns títulos que, para lá do seu valor educacional, abordam temas que têm a ver, especificamente, com ambientes escolares - é o caso da reposição de Ser e Ter, de Nicolas Philibert, admirável retrato de uma escola infantil, consagrado como melhor documentário nos Prémios do Cinema Europeu referentes a 2002.

Agora, a mesma empresa lançou um outro documentário, À Solta na Internet, com tanto de inusitado como de perturbante. É também um título premiado - no seu país, a República Checa, foi distinguido como melhor documentário de 2020 -, construído a partir de um desafio invulgar: dar a ver o comportamento de alguns homens que, através de chats da Internet, tentam atrair meninas de 12/13 anos para actividades inequivocamente sexuais.

Dizer que se trata de um filme "sobre" a pedofilia será um resumo possível mas, a meu ver, precipitado. Porquê? Sobretudo porque a facilidade da generalização temática corre o risco de ceder a um modelo que o filme, em qualquer caso, sabe evitar. Dito de outro modo: não estamos perante um panfleto mediático (eventualmente pertinente, não é isso que está em causa); e também não se trata de desenvolver uma "tese", seja ela psicológica, seja sociológica. Este é, de facto, um objecto documental que, passe a redundância, procura documentar algumas formas de comportamentos pedófilos.

À Solta na Internet propõe uma estratégia narrativa que decorre da aplicação de meios e dispositivos indissociáveis do cinema - entenda-se: envolvendo a procura de imagens e sons. Que acontece, então? Os dois realizadores, Barbora Chalupová e Vít Klusák, decidiram criar condições para colocar em cena diálogos de algumas meninas daquela idade com homens que, nos circuitos virtuais, procuram conhecê-las e manipulá-las.

Como fazê-lo? Cruzando a intensidade documental com o labor da ficção, isto é, inventando, precisamente, um dispositivo cinematográfico. As sequências iniciais servem para esclarecer o espectador sobre o "modus operandi" do filme, a começar pela criação de três personagens. Assim, Chalupová e Klusák organizam um "casting" para actrizes maiores de 18 anos: procuram jovens que, através de algum trabalho de caracterização, possam fazer-se passar por meninas de 12/13 anos e, mais do que isso, consigam lidar com situações no mínimo incómodas, muitas vezes inquietantes. Mais ainda: as jovens escolhidas possuem memórias pessoais que as podem ajudar a lidar com a violência (verbal e visual) das situações que vão protagonizar.

Depois de construir cenários para cada uma das personagens - em boa verdade, quase tudo se passa num estúdio de cinema -, a equipa do filme cria perfis fictícios para as três "meninas". Na prática, poucos instantes passados sobre essa "invenção" de identidades, começam a surgir chamadas de vários homens cujas imagens o filme desfoca, embora mantendo a duração dos encontros virtuais e os diálogos que as actrizes vão improvisando com metódica acuidade. Entre as regras estabelecidas, há uma de prudente contenção: não fazer qualquer sugestão explicitamente sexual, esperar pelas "propostas" dos interlocutores masculinos. As situações são entrecortadas por conversas dos realizadores com as actrizes e também com psicólogos e analistas de comportamentos na Internet.

Escusado será dizer que o filme aplica linguagens que o aproximam, ou podem aproximar, da vulgaridade dos "apanhados" televisivos (recorde-se o triste historial da MTV nesse campo, promovendo-os como modelo compulsivo de divertimento "juvenil"). Com uma diferença que importa não escamotear: o objectivo de À Solta na Internet não é produzir uma situação caricata que, no final, sirva para celebrar a ridicularização do outro como um patético triunfo "social" - há mesmo uma sequência, porventura dispensável no interior do projecto, em que a equipa do filme confronta um dos homens filmados na Internet. O objectivo é expor o funcionamento potencialmente perverso e, mais do que isso, ameaçador da "transparência" do mundo virtual.

Nesta perspectiva, À Solta na Internet pode ser inscrito na galeria (afinal, escassa) de filmes que têm sabido questionar os hábitos contemporâneos de ver e ser visto na Internet, a começar, claro, pelo genial A Rede Social (2010), sobre o nascimento do Facebook, escrito por Aaron Sorkin e realizado por David Fincher. Sem esquecer, por exemplo, objectos secundarizados pelo mercado como Homens, Mulheres e Crianças (2014), de Jason Reitman.

Em última análise, trata-se de contrariar um lugar-comum mediático cujo poder se manifesta todos os dias. Consiste esse lugar-comum em descrever qualquer forma de agressão virtual a partir de um discurso securitário e paternalista que, afinal, se satisfaz com uma piedosa identificação das vítimas sem observar o complexo labirinto tecnológico e cultural, público e privado, em que tudo acontece. Longe de esgotar a questão, À Solta na Internet é, pelo menos, um objecto consciente da complexidade desse mundo povoado de ecrãs. E, nessa medida, um exercício de salutar pedagogia.

Jornalista

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt