"Não existiu tentativa de homicídio qualificado. Não havia fundamento para aplicar a prisão preventiva. É uma má decisão do ponto de vista jurídico. É uma má decisão do ponto vista social. É uma má decisão para a justiça. E nós continuaremos a bater-nos, porque não caímos na defesa dos direitos humanos agora, de pára-quedas.".Foi assim, inconformado, que Varela de Matos, candidato a bastonário da Ordem dos Advogados e um dos três advogados que na segunda-feira entregaram um pedido de habeas corpus em nome da jovem que abandonou um bebé no lixo, reagiu em post no Facebook, ao início da noite desta quinta-feira, à decisão do Supremo Tribunal de Justiça. Ao DN, horas depois, garantiria ainda não ter tido tempo de a ler mas tencionar recorrer para o Tribunal Constitucional, para arguir a sua nulidade..Assinada pelos juízes conselheiros Nuno Gonçalves, Pires da Graça e Santos Cabral, a decisão rejeita, por falta de fundamento, o pedido de habeas corpus considerando que, ao contrário do que este pretendia, a mulher não é suspeita de "exposição ou abandono", crime previsto no 138º do Código Penal e que no caso teria pena de dois a cinco anos ( não prevendo prisão preventiva, o que implicaria a libertação imediata) mas de tentativa de homicídio. "Ao contrário do que consta do requerimento de habeas corpus apresentado", lê-se no acórdão, o ilícito imputado à arguida corresponde à prática do crime de homicídio na forma tentada e não de exposição, abandono ou infanticídio (...)"..O advogado, que no post assumia não ter lido as 36 páginas da decisão por tê-las recebido no telemóvel e não ter sido ainda notificado dela pelo tribunal, sumarizou: "O Estado punitivo avançou com mão dura. O Estado assistencial falhou redondamente. E vai continuar a falhar ao encarcerar esta pobre quase adolescente no ambiente cruel da prisão de Tires. Expondo-a a riscos e perigos desnecessários.".Advertindo que "não se trata de desculpabilizar quem praticou o ato" mas de "lutar por justiça, por uma mulher que não tem consciência do ato que praticou, o momento em que o praticou" -- afirmação para a qual invoca a autoridade "unânime" de "todos os especialistas da área da psicologia e da psiquiatria" e de "todos os estudos" que "indicam o mesmo", assim como de "vários magistrados jubilados que têm estado a colaborar neste processo.".Apesar da revolta evidenciada perante uma decisão que reputa de completamente infundada, conclui ainda assim que "o objectivo número 1 está alcançado: chamar a atenção para este caso de gritante injustiça, chamar a atenção para as condições miseráveis em que vivem centenas e centenas de homens e mulheres nas grandes cidades. Sensibilizar as autoridades para pôr mãos à obra no auxílio aos sem abrigo, na sequência dos apelos do Senhor Presidente da República. Pôr os tribunais a discutir esta questão.".A mulher de 22 anos, nascida em Cabo Verde, terá tido até agora três representantes legais, em sucessão, o primeiro dos quais oficioso. Em tribunal, quando ouvida pelo juiz de Instrução Criminal, e de acordo com o acórdão do Supremo - no qual se descreve o sucedido com base no seu relato -, terá narrado pormenorizadamente os seus atos entre 4 e 5 de novembro, quando deu à luz o bebé e acabou por depositá-lo num ecoponto para plásticos e embalagens perto da discoteca Lux.."Estava desesperada, e sem saber o que fazer ao bebé".A crer no que está vertido no documento, foi a própria que se incriminou, permitindo quer à magistrada que lhe decretou a prisão preventiva quer aos conselheiros do Supremo concluírem que após ter dado à luz a criança foi "buscar um saco de plástico com o objetivo de nele colocar o bebé, conforme o plano que previamente traçara e que consistia nunca revelar a sua gravidez e o nascimento de um bebé com vida que pretendia matar.".Terá explicado à juíza de Instrução Criminal que agiu assim "porque estava desesperada, não sabia o que fazer ao bebé, não tinha condições porque estava na rua e não pensou deixar a criança em local onde pudesse ser encontrada". Ainda de acordo com o relato, também evitou salvar o bebé quando no dia seguinte, ao acordar, e saindo da tenda onde pernoitara com o companheiro, encontrou um homem que lhes disse que um outro sem-abrigo vira um bebé no lixo. O companheiro terá querido ir aos ecopontos investigar e foram os dois. A determinada altura, a arguida, segundo refere o acórdão, "visualizou dentro do contentor amarelo o seu filho, mas nada disse e com o medo que o companheiro se apercebesse insistiu para que se fossem embora"..Quando regressaram à zona da tenda no final do dia encontraram vários agentes da PSP, por o bebé ter sido encontrado. O companheiro terá falado com os agentes, mas ela não..A juíza de Instrução Criminal concluiu, em face desta factualidade que lhe foi comunicada pela arguida, que esta agiu "de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que estas condutas são proibidas e punidas por lei penal", e considerou estar perante um crime de homicídio qualificado (o que qualifica o homicídio é ser "cometido em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade") na forma tentada..Homicídio é qualificado pela relação com a vítima, dever de a proteger, frieza e premeditação.Entre as circunstâncias que qualificam o homicídio, as que se aplicam neste caso, atendendo à imputação, contam-se: "Ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima"; "Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez"; "Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas.".O crime de infanticídio, que o Supremo Tribunal considerou não se aplicar no caso, é descrito no nº 136 Código Penal como "a mãe que matar o filho durante ou logo após o parto e estando ainda sob a sua influência perturbadora", e é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos. Já o "homicídio privilegiado", tipificado no artigo 133º, aplica-se a quem "matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa", e é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos..Por fim, o crime de exposição ou abandono, como já referido, é tipificado no nº 138 do CP e aplica-se quando alguém coloca em perigo a vida de outra pessoa "expondo-a em lugar que a sujeite a uma situação de que ela, só por si, não possa defender-se; ou abandonando-a sem defesa, sempre que ao agente coubesse o dever de a guardar, vigiar ou assistir". A pena é de 1 a 5 anos, agravada quando o facto for praticado por ascendente ou descendente, adoptante ou adoptado da vítima -- passa a de 2 a 5 anos..A criança abandonada, um menino, encontra-se livre de perigo e deverá ter lata em breve.