Uma ópera de Pedro Mexia sobre um macaco Casanova em plena era #MeToo
"Quando li o libreto pensei: 'Mas porque é que se vai fazer isto agora?! Vão crucificar-nos.' Mas depois numa segunda leitura e depois de pensar um pouco achei: 'Não, ainda bem que é agora que vamos fazer isto, porque a discussão está [a acontecer] agora.'" Ricardo Neves-Neves, encenador da ópera cómica Canção do Bandido, foi o último dos três a entrar nesta obra que o seu compositor e diretor musical Nuno Côrte-Real define como "um vendaval grotesco de palhaçada muito séria".
Antes de Neves-Neves havia o libreto de Pedro Mexia, que assim se estreia na ópera, e, como que de mãos dadas com ela, a música de Côrte-Real. E havia o ponto de partida: a história tradicional do Macaco do Rabo Cortado, que por acaso o poeta e crítico não conhecia.
Canção do Bandido estreia-se esta quinta-feira no palco do Teatro da Trindade, com o Coro do Teatro Nacional de São Carlos e a Orquestra Sinfónica Portuguesa, conduzida por Joana Carneiro, onde estará em cena até dia 18.
"Eu parti para a escrita deste texto sem ter a mínima noção do que estava a fazer. Nunca li um libreto na vida e nem sequer sou um grande amante de ópera. Gosto de algumas óperas cómicas, mas não é sequer um género de que seja um habitué. Avancei com a grande ajuda do Nuno Côrte-Real, que me foi guiando", conta Mexia ao DN.
Aquilo que na história do Macaco do Rabo Cortado começa por ser uma navalha, depois trocada por uma sardinha, e por aí fora, são aqui sempre as mulheres entre as quais o Macaco, um libertino advogado feito Casanova dos tempos atuais, salta de uma para a outra. De Severa para Bruna, de Bruna para Esmeralda, e de Esmeralda para Guadalupe, que finalmente diz não. Mas muito acontece antes desse "não" que é já o próprio castigo e fim do Macaco.
"A ideia foi manter aquela coisa de trocar uma coisa pela outra, de nunca estar contente com aquilo que tem. Esse é uma espécie de impulso dom-juanesco, do Casanova: acumular sempre porque nunca se está contente. Não se trata do ideal romântico de procurar uma coisa e ficar com ela, mas de estar permanentemente insatisfeito com o que se tem", explica o autor do libreto.
Uma das coisas que Mexia aprendeu na escrita deste libreto, e que contraria a sua experiência no teatro, é que na ópera há palavras que o público não vai compreender. "A certa altura uma das mulheres diz: 'Como manda a lei'. A frase não era percetível e tinha de o ser", explica o autor, "porque a grande diferença entre o libertino castigado no tempo de Mozart e o libertino castigado de 2018 é a lei, já não é a moral." E a nossa época entra de facto, ainda que indiretamente, nesta ópera. É, aliás, justamente isso que justifica a reação apreensiva de Ricardo Neves-Neves quando teve o primeiro contacto com o texto.
"O ambiente cultural político que se vive também foi sendo um bocadinho incorporado no texto, toda essa questão do #MeToo: é esta ideia do momento cultural em que os homens são postos em causa", acrescenta Mexia.
Na Canção do Bandido as mulheres não são apenas vítimas da sedução permanente e sempre enérgica do libertino Macaco, não são como que uma massa histórica sem rosto. Pelo contrário, são coloridas e distintas entre si, apesar da componente caricatural que uma ópera cómica implica. Fortemente caricatural, e sem arestas, é também a personagem principal, o Macaco. Era justamente essa dimensão que interessava a Mexia : "o funcionamento masculino em sociedade. Uma das coisas interessantes é que ele não está simplesmente a agir sozinho e para si, está sempre a fazer aquelas coisas para o grupo, para ser admirado."
À volta do Macaco está quase sempre o coro masculino a admira-lo, a sublimá-lo, a incentivá-lo, criando um ambiente que transporta qualquer coisa de um balneário masculino.
Num tom e numa força dissonante em relação ao que é dominante na Canção do Bandido, e como indica o seu nome, está o Oponente, que, aliás, uma das mulheres troca pelo Macaco. Ele, que aponta o dedo aos "homens que nos fazem detestar os homens", é afinal o único romântico da ópera.
"O Oponente é uma figura de que gosto particularmente porque dá um bocadinho de variedade àquela ideia de homem como agressor e mulher como vítima, não só porque algumas daquelas mulheres são um bocadinho vítimas que seria um bocadinho básica e falsa do libertino versus as amorosas que seriam elas. Naquela peça não são as mulheres que estão a reclamar a junção entre amor e sexo."
O "discurso romântico" que Mexia atribui ao Oponente corresponde, explica, à impressão que tem de que hoje esse discurso pertence mais aos homens do que às mulheres. Na peça, elas estão "furiosas" com o Macaco, e congratulam-se com o seu fim, quando Guadalupe o rejeita, e simbolicamente lhe retiram a pilha, pondo fim à sua cruzada libertina. Todavia, "o Oponente é o único que está ali heartbroken, para quem aquilo não significa apenas uma desfeita, mas uma derrota pessoal." E dando essa densidade à personagem, o libreto atribui-a também à divisão ou oposição entre vítima e agressor.
Nuno Côrte-Real explica que as referências musicais que atravessam todo o texto "partem o texto. De início houve a ideia de colocar coisas do Don Giovanni do Mozart, por ser uma obra incontornável e por ter tudo a ver com isto. O texto tem algumas referências a árias do Mozart, mas também a pequenos versos que o Pedro tirou de canções diversas, coisas mais para a direita, mais para a esquerda, mais para cima."
Além de Mozart aparecem Dino Meira, Paulo de Carvalho, e até Romana, onde o seu "Continuas chamando assim: Bebé, bebé" é substituído por "Continuas chamando assim: Gagá, gagá".
"O desafio foi integrar essas citações dentro da minha linguagem sem que seja incoerente", nota o compositor, que antes da Canção do Bandido assinou óperas como O Rapaz de Bronze (segundo a obra de Sophia de Mello Breyner) ou Banksters (com libreto de Vasco Graça Moura).
Esta foi a estreia de Ricardo Neves-Neves no mundo da ópera. "Eu trabalho muito a partir da música, trabalho muito com música ao vivo, orquestras, escrevi um texto para ser acompanhado pela Orquestra Metropolitana... Então parecia que [a ópera] era uma espécie de passo óbvio. Mas não é, porque é muito diferente. É outra linguagem. Mas à medida que o tempo foi passando senti que não foi um choque e senti-me muito bem neste trabalho", afirma o encenador. Explicando a complexidade da ópera e dos seus elementos vários, chama a atenção para o facto de uma página da orquestração representar "12 segundos de espetáculo". Nuno Côrte-Real responde prontamente, num sorriso: "A ópera é o maior espetáculo do mundo."
Coproduzido pelo Teatro da Trindade, Teatro Nacional S. Carlos e pela Temporada Darcos, Canção do Bandido é interpretado pelos solistasAndré Henriques (macaco), Bárbara Barradas (Bruna), Cátia Moreso (Severa), Inês Simões (Esmeralda), Marco Alves dos Santos (Oponente) e Sónia Alcobaça (Guadalupe). Com direção musical de Nuno Côrte-Real, o cenário é de Henrique Ralheta, os figurinos de Rafaela Mapril e o desenho de luz de Luís Duarte.
Canção do Bandido
Teatro da Trindade
Bilhetes entre 12 e 20 euros