A Nossa Senhora veste sari e o Menino Jesus, calçado como um marajá, mostra-nos o rosto de feições orientais. Peças como estas, que falam mais sobre os processos de miscigenação cultural na expansão portuguesa do que tanta literatura sobre o tema, são apenas uma parte da exposição Histórias de um Império, patente ao público a partir desta sexta-feira no Museu do Oriente, em Lisboa. Ao todo são mais de 150 peças, organizadas em oito núcleos temáticos, provenientes da coleção Távora Sequeira Pinto, pela primeira vez tratada como um todo, embora algumas já tivessem sido emprestadas a instituições de referência no mundo das artes decorativas, como o Victoria & Albert Museum, em Londres, ou o Tokyo Fuji Art Museum, no Japão..Historiador de arte, com uma longa carreira feita em museus como o de São Roque, de Arte Antiga ou na Fundação Gulbenkian, onde atualmente dirige a delegação francesa, o comissário da exposição, Nuno Vassallo e Silva, não esconde o entusiasmo pela coleção. Ao facto não serão alheias "as memórias do Oriente, e em particular da Índia, que ouviu aos avós", já que é neto do general Vassalo e Silva, último governador do Estado Português da Índia, expulso das Forças Armadas por ordem de Salazar, quando, em Goa, se rendeu às tropas indianas, evitando o massacre dos soldados portugueses... Mas, mesmo que assim não fosse, diz o comissário, "a qualidade da coleção Távora Sequeira Pinto impõe-se naturalmente. Ao contrário de outras coleções focadas no período dos Descobrimentos Portugueses, geralmente mais especializadas numa ou noutra expressão plástica, esta coleção documenta uma diversidade muito alargada de origens, tipologias e materiais.".Que histórias têm para nos contar este menino Jesus de sandálias sumptuosas ou os escritórios portáteis em madrepérola, que os portugueses, enriquecidos pelos "fumos da Índia", ainda tratavam de revestir a prata? Os marfins, as peças lacadas - essa técnica misteriosa que intrigava os europeus, incapazes de a imitar com sucesso -, a madrepérola, as madeiras ricas, o ouro, a prata, as pedras preciosas? Entremos e "ouçamo-los", propõe a exposição, organizada não da forma mais convencional, mas preferindo a sedução da narrativa à formalidade da lição..Logo no início, "A Viagem das Formas" mostra a assimilação de tipologias europeias nos diversos pontos da Ásia, presente em diversas peças de mobiliário: cadeiras, mesas, escritórios, arcas e baús essenciais no quotidiano ocidental, mas surpreendentes aos olhos dos orientais que as copiaram, adaptando-as ao seu olhar sobre o mundo. Seguem-se, como num livro, "Religião", "Poder", "Um Mundo Precioso", "Colecionismo e Ciência", "Quando Éramos Exóticos", "O Mundo do Marfim" e "Na Busca da Laca". Juntos, estes núcleos são os "capítulos" destas Histórias de um Império, o título um pouco provocador da exposição, nesta época de discursos extremados, em Portugal e no estrangeiro, sobre passados coloniais. Deliberadamente? "Um pouco, sim", assume Nuno Vassallo e Silva. "Não podemos negar ou sequer reescrever a História, mas importa fomentar o debate. Não estamos a fazer aqui qualquer apologia do Império Colonial português, mas, ao deixarmos falar estes objetos, demonstramos que houve uma permeabilidade cultural tão forte que, em muitos casos, nem sequer conseguimos dizer com precisão a sua origem. Graças aos jesuítas, que acreditavam muito no papel da cultura visual como estratégia de evangelização, temos muitos temas e figuras cristãs com tratamentos locais. Daí as Nossas Senhoras vestidas com saris, muito frequentes no Ceilão, ou os meninos Jesus com feições claramente orientais.".Do mesmo modo, Nuno Vassallo e Silva realça que a descoberta do exotismo do Outro não se fez num sentido só: "Os povos orientais eram exóticos para os europeus, claro, mas o contrário também é verdade. Como se mostra na arte nambam do Japão, de que temos aqui vários exemplares, os portugueses eram vistos como homens de narizes muito compridos e enormes chapéus pretos." Como escreve no catálogo, Jorge Flores "Não raro, os portugueses são vistos na Ásia como uma espécie de homens-rã capazes de estar mais à vontade no mar do que em terra. É assim que os coreanos os classificam no século XVI: os anais da dinastia Choson chamam-lhes "demónios do mar" (Haegui) e descrevem-nos como seres de "barbas e cabelo encaracolado" que "permanecem uns dias no fundo do mar, alimentando-se de peixe"." Para os chineses, a perceção não seria muito diferente: "Cristóvão Vieira, um dos cativos da embaixada de Tomé Pires a Pequim (1517-1521), observa de Cantão que os chineses comparam os portugueses a peixes, que como os tiram de água ou do mar logo morrem. E quase século e meio volvido, em 1666, um governador do Guangdong/Guangxi ainda afirmava num memorial enviado à corte Qing que os portugueses não tinham terras, nem ainda que as tivessem as podiam nem sabiam lavrar"..Com cerca de 300 páginas, este catálogo reúne ainda artigos de historiadores da expansão portuguesa no Oriente como João Paulo Oliveira e Costa (autor também de um conjunto de romances históricos ambientados nesta época), Pedro Dias, Markus Newirtes, Teresa Nobre de Carvalho, Jean Michel Massing, Ulrike Korber e Alexandra Curvelo..A Coleção Távora Sequeira Pinto, assim designada por ter nascido da associação de dois homens do Porto (o arquiteto Fernando Távora e o empresário Sequeira Pinto) começou a tomar forma na década de 1980, acompanhando a tendência internacional para uma maior valorização das artes decorativas, negligenciadas durante muito tempo, como frisa Nuno Vassallo e Silva, em favor das chamadas Belas-Artes. A importância desta coleção levou a Câmara Municipal do Porto a querer instalá-la numa das futuras "estações" do Museu da Cidade, com abertura prevista para 2023. Para o efeito, o Matadouro da Campanhã está a ser reconvertido num espaço museológico pelo arquiteto japonês Kengo Kumo, em parceria com o gabinete portuense OODA (Opporto Office for Design and Architecture)..dnot@dn.pt