Há uma história verídica por trás do enredo de As Bestas: em janeiro de 2010, na aldeia espanhola de Santoalla do Monte, o holandês Martin Verfondern foi morto a tiro depois de meses de um clima de hostilidade com a família vizinha, os Rodríguez. A viver naquele lugar remoto da Galiza desde 1997, Martin e a esposa, que tinham vindo da cidade para o campo com intenções de concretizar um projeto de vida ecológica, esbarraram nos instintos agressivos de tais vizinhos, que não lhes reconheciam quaisquer direitos em relação ao terreno comunal, apesar de a lei galega dizer o contrário... O cadáver só foi descoberto em 2014, e a viúva de Martin, Margo Pool, manteve-se na aldeia, onde ainda hoje permanece..O filme de Rodrigo Sorogoyen não é uma réplica do que aconteceu. Mas toda a sua envergadura dramática parte desse conflito humano em paisagem aberta, que desabrolha como que de uma semente de violência lançada à terra. Em As Bestas, o casal protagonista é francês - interpretado por Denis Ménochet e Marina Foïs, ambos espantosos -, e deixou no país uma filha jovem adulta. Levando uma existência pacífica naquele pequeno meio espanhol, entre o cultivo da horta, a venda dos seus produtos agrícolas e o restauro de casas abandonadas (para futuro turismo rural e reabilitação da própria aldeia), estas pessoas civilizadas, com estudos, e cujo intelecto não cai bem a certos indivíduos que toda a vida só conheceram os modos brutos, vão encontrar na ação concertada de dois irmãos dessa estirpe uma crescente atmosfera ameaçadora..No centro da hostilidade (aqui também diferente da história original) está o facto de Antoine, o homem francês, não aceitar vender o terreno comunal a uma empresa de energia eólica, por acreditar que a aldeia ainda pode inverter a sua tendência de desertificação e, acima de tudo, por considerar que aquela é a sua casa. Uma ideia romântica para os locais, que já não veem ali nada e só querem ver a cor do dinheiro para se porem a andar, e uma atitude que reforça o ódio desses irmãos em relação ao "estrangeiro invasor", que se "apoderou" da terra à qual não pertence como eles pertencem..É por aí que se cose a tensão, ou o terror humano, de As Bestas, seguindo o corpo volumoso de Ménochet ora no café do lugarejo, onde o irmão com pose de carrasco (Luis Zahera) destila um tom trocista e sombrio, ora no caminho para casa, de carro ou a pé, sempre envolvido por uma nota sonora perturbadora, que alimenta uma interessante contradição. Esta: Ménochet, cujo corpo robusto contém a própria sugestão de violência (e basta lembrar a sua personagem de pai e marido agressor em Custódia Partilhada, de Xavier Legrand), surge neste contexto como a figura fisicamente vulnerável, com parcos métodos de defesa (uma câmara de vídeo), que no fim de contas não tem como escapar aos lobos que o cercam. E é brilhante o momento que Sorogoyen escolhe para construir o auge da sua demonstração de violência, perfeitamente calibrada e sem espetáculo, num campo só habitado por árvores, cuja amplitude da paisagem vai reduzir-se a um emaranhado de corpos num realista e silencioso uso da força..O que me pareceu mais inesperado em As Bestas foi que o realizador espanhol soubesse convocar tão habilmente a pulsação do thriller e a aridez do western - com um apontamento quase poético de cavalos selvagens pelo meio - sem se vincular, por definição, a um género ou outro. Nesse intervalo entre dois registos, Sorogoyen tece a complexidade das suas personagens, dando espaço para a leitura renoiriana ("todos têm as suas razões"), mas nunca anulando a vertigem da existência naquele cosmos rural, que se torna irrespirável fora das quatro paredes..Dentro delas, o último reduto de amor e respeito vem a justificar, por fim, a conversão narrativa do mundo masculino numa esfera feminina: Marina Foïs toma o lugar de Ménochet na última etapa do filme, minando a partir de dentro a lógica desse mundo de homens, desde logo com uma serenidade que nos acompanha bem depois dos créditos..Não é, portanto, um Cães de Palha (Sam Peckinpah, 1971), embora desconfiemos que o realizador tenha presente essa referência, mas sim um filme que encontra na sua economia visual um caminho mais discreto para o impacto da violência. E talvez aí esteja a sua grandeza moderna, que mitiga a nostalgia dos referidos géneros trabalhando-os na expressão de um ator, Denis Ménochet (o Robert Mitchum francês, como lhe chamou Tarantino), capaz de condensar, na linguagem específica do corpo, a aura clássica e o medo real. Não muito diferente daquele medo que se sente no memorável início de Sacanas Sem Lei (2009), precisamente o filme de Tarantino onde Ménochet interpreta o camponês interrogado pelo Coronel nazi de Christoph Waltz. Mais recentemente vimo-lo também como Peter von Kant na homenagem lúdica e garrida de François Ozon a Fassbinder. O que faz com que toda a dimensão telúrica de As Bestas assuma, no fascínio da sua presença, a qualidade de um instinto adormecido algures, como um homem feito ovelha no meio dos lobos. Fabuloso..dnot@dn.pt