"Uma coisa que une os americanos é saberem o valor do oceano. Nos Estados costeiros e nos outros"

De passagem por Lisboa, onde participou na Conferência dos Oceanos, a secretária de Estado adjunta para os Oceanos e Assuntos Ambientais e Científicos Internacionais falou ao DN da necessidade de fixar um limite para os mares, como existe no clima. Monica Medina, cujo nome, de sonoridade portuguesa, é, afinal, de origem espanhola, destaca o papel ​​​​​​​de Portugal na conservação do Atlântico.
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Os EUA são um país entre dois oceanos - Atlântico e Pacífico. Nas últimas décadas, as Administrações norte-americanas viraram-se mais para o Pacífico, mas Joe Biden, muito também devido à guerra na Ucrânia, voltou a olhar para o Atlântico. São ambos importantes?
Sim. Somos uma nação oceânica, temos a maior Zona Económica Exclusiva do mundo, temos duas linhas costeiras incríveis, mas também temos as ilhas do Havai, o Alasca e o golfo do México. E também trabalhamos no Ártico, pois somos um dos muitos governos que ajudam a governar a Antártida. Muitos dos nossos presidentes falaram dos oceanos com palavras inspiradoras. Por isso, e apesar de termos uma grande área interior, acho que pensamos nos EUA como uma nação oceânica.

Como é que se controla e protege uma Zona Económica Exclusiva (ZEE) enorme como a dos EUA?
Estamos neste momento a trabalhar duro para travar a pesca ilegal, que sabemos ser um problema para muitos países. Os EUA têm a sorte de ter uma grande Marinha, mas alguns países não têm os meios para proteger as suas ZEE. E alguns são pequenas ilhas, com enormes ZEE. Também são nações oceânicas. Por isso os EUA esperam poder partilhar algum do seu conhecimento. Podemos trabalhar com outros países que também têm forças navais grandes e sofisticadas, partilhar a capacidade de usar a tecnologia para desenvolver o que chamamos de world maritime domain awareness para sabermos o que está a acontecer nos oceanos. Estes costumavam ser vistos como extensões enormes, que não conseguíamos cobrir. Continua a ser um desafio, mas acredito que, se trabalharmos juntos, podemos conseguir. Por isso aqui em Lisboa criámos uma aliança contra a pesca ilegal, com o Reino Unido e o Canadá. Mas esperamos que muitas outras nações oceânicas se juntem a nós. Porque podemos acabar com a pesca ilegal que acontece em alto-mar e nas ZEE de países mais pequenos, que não conseguem verdadeiramente patrulhar as suas fronteiras marítimas. Esperamos que ao trabalharmos juntos consigamos pôr uma rede em volta de tudo o que seja pesca ilegal no mundo.

A pesca ilegal é o maior desafio? E quais são os outros?
Eu diria que a gestão da pesca sustentável é um desafio, porque o mundo vive um momento de insegurança alimentar e sabemos que temos pescado em excesso um terço das reservas de peixe do planeta. Algumas das mais valiosas reservas ficaram severamente depauperadas, por isso temos de trabalhar muito para melhorar a nossa gestão das pescas e impedir que as pessoas roubem os recursos pesqueiros que existem. Esse é um grande desafio. Explorar os oceanos também é outro desafio enorme. Sabemos tanto sobre a Lua, mas, no entanto, há partes do nosso planeta sobre as quais ainda sabemos tão pouco. Espero que este Década da Ciência Oceânica que a ONU estabeleceu nos ajude a entender melhor os oceanos, para os podermos proteger melhor, pois não conseguimos proteger aquilo que desconhecemos. Portanto, se os conhecermos melhor, estou otimista de que os iremos proteger melhor. E dar às pessoas o mesmo sentido de fascínio que temos pelo espaço, mas agora pela parte azul do nosso planeta.

É engraçado fazer esse paralelismo, porque há um ano entrevistei o aquanauta Fabien Cousteau e ele dizia exatamente o mesmo: que conhecemos melhor a Lua do que os oceanos. E que damos os mares por garantidos.
Sim. Ele é um porta-voz incrível na defesa dos oceanos. Toda a sua família [é neto de Jacques-Yves Cousteau] vive os oceanos. E foram dos primeiros a ajudar o mundo a ver as maravilhas submarinas. É maravilhoso ver geração atrás de geração de Cousteaus a continuarem esse trabalho.

Tendo em conta que damos os oceanos como garantidos, até que ponto é que os americanos estão conscientes dos perigos que os ameaçam?
Eu diria que ainda há muito para fazer ao nível da educação. Conheci aqui em Lisboa um grupo de nativos do Havai e vi como eles estão tão ligados aos oceanos. Estamos a falar de milhares de anos a perceber que a terra e o mar estão intimamente ligados. Eles não pensam na terra e no mar como duas coisas separadas, mas sim como uma única entidade. Portanto, temos certas partes do país que estão totalmente mergulhadas no conhecimento do mar, e outras em que as pessoas ainda têm muito de aprender. E conferências como esta ajudam a fazer crescer a comunidade de defensores dos oceanos. Trabalhamos com parceiros maravilhosos, como os oceanários, nos Estados Unidos e em todo o mundo. Há um maravilhoso aqui em Lisboa e fazem um trabalho fantástico na educação dos jovens. Um dos elementos que torna este movimento pela conservação dos oceanos tão especial é a quantidade de ativistas jovens que atrai. É muito semelhante ao que acontece com o clima e é muito inspirador. Os jovens ligam-se verdadeiramente aos oceanos e ajudam a empurrar o resto da comunidade para que se envolva mais.

Com a China a tentar ganhar cada vez mais controlo sobre o Pacífico, como é que os EUA veem a necessidade manter a segurança marítima naquele oceano?
Estamos a trabalhar - anunciámos algumas iniciativas em Washington, outras aqui em Lisboa - para nos aliarmos às ilhas do Pacífico. Vemos que é importante para garantir a segurança alimentar de muita gente. Proteger os oceanos é muito importante, e uma das iniciativas que apresentámos é doméstica: vamos usar todos os nossos recursos securitários para nos centrarmos mais na pesca ilegal. Fizemos um tuíte com isto, e José Andrès, o chef, retuitou-o com a seguinte mensagem: "Alimentação é segurança." Estamos a trabalhar para levar a discussão em torno da segurança até às pessoas, até às suas casas, para que percebam que os oceanos são frágeis e temos de os proteger.

Os Estados Unidos são um país oceânico, como já disse, mas Portugal também o é...
Vocês são a porta para os oceanos [risos].

O que poderemos aprender uns com os outros?
Vocês têm uma ética de conservação magnífica. Acabam de criar uma das maiores zonas marítimas protegidas no Atlântico, nas Selvagens, e isso é incrível. E têm ilhas fantásticas no Atlântico. Mas, voltando à sua pergunta, acho que nos Estados Unidos não temos apostado tanto quanto devíamos na proteção do Atlântico. E espero que países como o seu nos ajudem a ver esse valor em locais que ficam mais próximos da nossa costa atlântica. Recentemente criámos um novo santuário marinho, chamado Hudson Canyon, na costa leste. Portugal está a ajudar a liderar esta vaga de conservação dos oceanos no Atlântico.

Quando pensamos na relação entre Portugal e os EUA, pensamos inevitavelmente no Atlântico, nos Açores e, claro, na Base das Lajes. Que importância têm na proteção dos oceanos e na garantia dessa segurança marítima de que já falámos?
Há muitas maneiras de trabalhar em parceria com Portugal e preencher a lacuna entre conservação e segurança. Neste momento, estes parecem ser dois mundos separados. No entanto, os portugueses foram dos primeiros a perceber que estão interligados e mostraram-nos o caminho. Esperamos trabalhar muito mais com Portugal para criar esta parceria em torno do Atlântico.

Se nada fizermos, em 2050 haverá mais plástico no mar do que peixe. O que estão os EUA a fazer para prevenir essa hecatombe?
Temos de trabalhar em conjunto. Há um acordo global sobre o controlo dos plásticos que começámos agora mesmo a negociar e espero que se torne uma espécie de Acordo de Paris. Todos os países, enquanto habitantes de um único planeta, vão trabalhar para estabelecer os níveis para eliminar, reduzir, reutilizar ou reciclar os plásticos, eliminando a poluição. Quando esses níveis estiverem fixados, cada um terá de perceber como é que os irá conseguir cumprir, porque há diferentes problemas e diversas soluções. Os países insulares podem precisar de determinadas soluções, os grandes países, como o meu, podem necessitar de outras. Mas todos temos de perseguir o mesmo objetivo e responsabilizar-nos uns aos outros. Se o fizermos, acredito que conseguiremos deixar os oceanos mais livres de plástico, pois neste momento estamos a lançar demasiado plástico ao mar. E é maravilhoso que a comunidade oceânica tenha feito soar os alarmes e alertado para esse problema, fazendo com que todos despertassem para a necessidade de lidar com o plástico durante todo o seu ciclo de vida. Não só no fim, quando chega ao mar.

O principal objetivo neste momento é fixar esse limite, como já existe no clima - em que se limitou o aquecimento global a 1,5ºC em relação aos níveis pré-industriais?
Precisamos dessa espécie de estrela polar para nos orientar em direção a um objetivo que todos temos de alcançar. Só que ainda não está fixado. Temos tentado que todos concordem que temos de o fazer. Já começámos as primeiras discussões sobre como é que as negociações vão ocorrer, e as partes administrativas estão prontas. No outono teremos a primeira de cinco discussões, no Uruguai. E temos conseguido envolver líderes de todo o mundo, o que é fenomenal. Tanto ONG e empresas como governos. Todos concordam que temos de fazer algo, por isso há uma hipótese de sucesso.

Quais as prioridades da Administração Biden em termos de proteção dos oceanos? Sabemos que estas vão mudando de Administração para Administração...
As Administrações vão de facto alterando as prioridades, mas diria que aroteção dos oceanos é uma grande prioridade nossa: comprometemo-nos a ter 30% do nosso mar protegido até 2030 e estamos nos 26%, 27% neste momento. Como já disse, temos uma ZEE enorme, mas acredito que chegaremos lá. Recebemos também uma proposta de uma comunidade do Havai para expandir as zonas protegidas no Pacífico que era muito interessante e o governo está a analisá-la. Já falámos na criação de uma rede de proteção contra a pesca ilegal, reduzir o plástico nos oceanos e proteger a biodiversidade marinha. Dois dos últimos acordos que assinámos têm a ver com isto. Num deles, a Convenção sobre a Biodiversidade Biológica, tentamos estabelecer os 30% de proteção como objetivo para todo o planeta - terra e mar. E nas Nações Unidas tem estado a ser negociado um tratado sobre as áreas que ficam fora da jurisdição nacional. Temos as águas territoriais e temos as águas internacionais, que não pertencem a ninguém, e este acordo pretende que haja algum tipo de governação dessas águas, porque de outra forma será impossível garantir a sua conservação. Sem leis, já sabemos o que pode acontecer, por isso espero que este acordo fique pronto este ano. Será um grande ano para os oceanos!

Para além da sua extensão, a diversidade da ZEE americana é espantosa - do Alasca ao Havai, passando pelas costas Leste e Oeste. Como é que se lida com os diferentes problemas que estes ecossistemas com certeza terão?
Há várias formas de o fazer. Temos organizações regionais de gestão das pescas, parques marinhos e zonas de proteção marinha, temos Estados que controlam as suas linhas costeiras. Somos muito diversificados, pois os habitantes do Alasca têm necessidades diferentes de quem vive na Florida, mas todos adoram o oceano. Uma coisa que une os americanos é que sabem o valor do oceano, e isto tanto nos Estados costeiros como nos outros. Afinal, muita gente gosta de ir até ao mar, sobretudo no verão, portanto estamos muito ligados ao oceano. Um dos nossos maiores oceanários é em St. Louis - não podia ficar mais no centro do nosso país -, outro em Atlanta e um em Chicago. Não temos de viver à beira-mar para adorar o oceano.

Qual a importância de conferências como esta que decorreu em Lisboa para chamar a atenção para a questão dos oceanos?
É muito importante. Tivemos esta pandemia, que os impediu de nos juntarmos durante mais de dois anos. E faz toda a diferença. Este ano houve uma série delas: uma em França, em janeiro, depois a Conferência de Nairobi sobre oceanos e plásticos, depois estivemos em Palau, na conferência que os EUA co-organizaram, agora em Lisboa, e depois haverá um encontro na ONU para falar da proteção das águas internacionais. E seguiremos para a COP27, a conferência sobre alterações climáticas, em Sharm-el-Sheik, no Egito, em novembro, onde nos voltaremos a focar nos oceanos. Desde a COP em Madrid que tem havido um foco nesta área, que continua. Tem sido um ano em grande e estas conferências fazem toda a diferença. Os governos vêm, ONG, entidades privadas, doadores, e todos assumem compromissos.

Se queremos agir verdadeiramente, não acha que não bastam os governos, é preciso que a sociedade civil e também o setor económico se envolvam?
Precisamos da sociedade civil e de todas as partes interessadas à mesa. É importante trazer o mundo da finança para a discussão, bancos privados, bancos de desenvolvimento multilateral, filantropos, para que invistam em oceanos sustentáveis, na sua proteção, na pesca sustentável, no turismo sustentável. Acho que isso vai mudar o rumo das coisas. E estamos apenas a começar.

helena.r.tecedeiro@dn.pt

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