A estrela maior da cimeira que começa hoje em Pequim será Giuseppe Conte, chefe do governo italiano, que é ao mesmo tempo o primeiro membro do G7 a aliar-se à nova política expansionista chinesa e a prova da rebeldia contra a política oficial da União Europeia. Marcelo Rebelo de Sousa também lá está, simbolizando o interesse português em dar corpo ao protocolo assinado com a China em dezembro..A cimeira tem o nome da iniciativa geopolítica chinesa iniciada nesta década e conhecida como Uma Faixa, Uma Rota. Esta iniciativa é o culminar de uma orientação chinesa mais virada para a política externa e que simboliza a sua transformação num poder global. O nome vem da junção de duas ideias que ganharam corpo: a Cintura Económica da Rota da Seda, que visa recuperar as rotas terrestres de ligação ao continente europeu; e a Estrada Marítima para o século XXI, que expande decisivamente a influência chinesa no mar e assegura a sua independência. O termo em inglês representa bem a ideia da cintura alargada da influência chinesa alicerçada em rotas que alcançam todo o planeta..Para a China, esta iniciativa serve dois grandes propósitos: é um instrumento para alargar a influência global da nação e alimentar a força económica em que se tornou graças à globalização. Assim, o esquema de crescimento consiste em emprestar muito dinheiro a baixo custo para enormes projetos de infraestruturas - que são invariavelmente adjudicados a empresas estatais chinesas e que acabam por colocar alguns governos em situações económicas inviáveis. As acusações de agiotagem e de neocolonialismo têm-se acumulado com os problemas vividos por algumas nações: o Sri Lanka viu-se impedido de pagar um empréstimo monstruoso e em troca foi obrigado a ceder um porto essencial para o comércio no Índico, e o Paquistão enfrentou uma situação de bancarrota em projetos de "cooperação" com a China..A outra grande crítica tem a ver com o desrespeito pelo ambiente que apresentam muitos dos projetos de cooperação, algo que bate certo com as imensas necessidades que a China ainda tem de combustíveis fósseis para alimentar a sua economia. Pelo meio Pequim vai aproveitando para exportar também influência militar, por exemplo ao garantir que os portos geridos por chineses estão preparados para servir a sua marinha em caso de necessidade..Mas a cimeira que arranca hoje visa dissipar dúvidas e apresentar os sucessos: cada vez mais países aderem à iniciativa, ajudando a expandir os interesses chineses e a subverter a ordem tradicional estabelecida. E esse sucesso tem sido muito claro dentro da própria União Europeia, não só com a conquista da Itália mas também com o reforço da aliança com a Hungria de Órban. Isto mina os esforços de Bruxelas em falar a uma só voz e demonstra também o peso que o dinheiro chinês tem já dentro de uma União em que, graças à abertura de mercados, muitas empresas estrategicamente importantes (como a energia) estão já sob controlo de Pequim..A médio prazo, o objetivo chinês será aproveitar a crise da ordem mundial alicerçada na democracia liberal para construir uma nova lógica global mais adequada aos interesses chineses. Nessa lógica não entram preocupações com a democracia nem com os direitos humanos, o que faz parte de uma visão pragmática do poder estatal chinês que tão bons resultados económicos tem dado..Uma nova ordem mundial, a partir de Pequim.Um bom livro para analisar todas estas questões é o de Bruno Maçães , que apresenta a ideia da nova ordem mundial chinesa que toma forma na política "Uma Faixa, Uma Rota", que, aliás lhe dá nome. Uma Faixa, Uma Rota é a ideia que preside ao expansionismo chinês que nasce no comércio global, cria alicerces nas infraestruturas e obriga a relações de interdependência entre Pequim e o resto do mundo. Para a explicar, Bruno Maçães estrutura o seu livro a partir dos documentos oficiais chineses, de um olhar crítico sobre a história político-económica recente e de vários episódios pitorescos que representam a mudança em curso..Este é um mundo que ainda não conhecemos: um mundo em que a globalização deu origem a uma hiperpotência, a China, que está agora a aproveitar o enorme capital acumulado para expandir ainda mais a sua influência e poder - transformando vantagens económicas em domínio comercial, político e militar. É a reação a esse domínio que está a fazer andar para trás a globalização, com os Estados Unidos a declararem guerras comerciais à China e com a União Europeia a tentar (e a falhar) ter uma única voz forte na relação com Pequim..Tudo isto nasce de uma visão expansionista proposta por Xi Jinping no início da década, que começou a ganhar dimensão nos últimos cinco anos e será hoje a ideia geopolítica mais interessante de compreender. O livro de Maçães faz uma excelente apresentação ao tema, explicando as suas origens na visão unificadora para o futuro da China e expondo as tensões globais que está a provocar..A dimensão da importância desta ideia é facilmente percetível ao olhar para as tensões globais hoje. Simplificando, é possível dizer que os grandes proponentes da globalização (Europa e EUA) estão hoje forçados a fechar mercados, visto que quem mais ganhou com essa abertura foi a China - que hoje controla grande parte da dívida externa americana e setores vitais da economia europeia..Se a ideia "Uma Faixa, Uma Rota" é o culminar da globalização aberta pelo ocidente, ela é também o triunfo da China - e da sua ideia de capitalismo não-democrático, que ganha força redobrado para se expandir. Esta é uma visão oposta à do ocidente e por isso o autor antevê um choque frontal entre as duas formas de olhar para o mundo. Deste choque pode surgir um vencedor ou uma tensão permanente entre duas mundividências que seja ser o novo normal no século XXI, o que é uma razão mais para ler atentamente este livro..Enquanto apresenta os esforços de alargamento de influência chinesa, Maçães aproveita para descrever também as fragilidades da União Europeia, a tensão na Casa Branca de Trump e a recusa indiana em alinhar no jogo chinês. Aliás, do ponto de vista geopolítico, um dos aspetos mais interessantes do livro é a crescente tensão Índia/China, algo que é praticamente ignorado no ocidente mas que será determinante para o futuro do planeta..Pelo meio ficamos a saber que em 2014 decorreu uma reunião entre representantes dos governos da China e de Portugal para oferecer a Lisboa uma posição privilegiada em mais um subprojeto Uma Faixa, Uma Rota, algo que acabou por não avançar. E o texto enquadra também episódios de tensão recente, como a resistência europeia e americana na adoção de tecnologia chinesa para o 5G ou a recente detenção de uma cidadã chinesa acusada de espionagem no retiro de férias de Donald Trump..O relato que Maçães faz da construção de Forest City, na Malásia, é um relato de viagem ao futuro. Forest City é uma parceria no valor de 100 mil milhões de dólares entre o governo malaio e o chinês, que levou à construção de uma cidade futurista que destruiu o ecossistema à volta em nome de uma ideia de desenvolvimento que dá primazia a um sistema de castas em que os chineses dominam, os ocidentais ensinam e entretêm e os nepaleses e bangladeshis se entregam às tarefas menores. É uma visão distópica do mundo, mas não é isso que a inviabiliza. A estratégia "Uma Faixa, Uma Rota" não está ausente de riscos, como também é apontado no livro..Os imensos investimentos podem atirar a economia chinesa para o vermelho e as crescentes tensões políticas podem colocar em perigo o expansionismo de Pequim. Mas a força da ideia - e acima de tudo a sua maleabilidade - parecem ter sido suficientemente bem pensadas ao ponto de agitar a ordem global. O ponto fraco de um ideal de dominação chinesa será sempre a capacidade de influência cultural, onde Pequim não poderá nunca rivalizar com os EUA. Os instrumentos de soft power como a língua e a cultura não se conquistam só com dinheiro, e aí Pequim está sempre a perder. Esse aspeto é pouco abordado no livro, que se prefere focar no poder económico e ideológico dos ideais antiliberais que partem de Pequim e que têm já um apelo considerável em algumas partes do mundo..É indisfarçável a admiração do autor pelo projeto Uma Faixa, Uma Rota - ou pelo menos pela ideia que preside ao projeto - até porque ela vai de encontro às ideias que defendeu no livro anterior (The Dawn of Eurasia, Penguin, 2018). Neste caso, essa admiração não é um problema, é uma ajuda que guia o leitor pelos meandros de um plano tão complexo. Já surgiram algumas obras que abordam este tema, mas o de Maçães será o que melhor explana as tensões geopolíticas que a nova abordagem chinesa ao mundo terá nos próximos trinta anos. E essa é mesmo a melhor razão para o ler.