Já não me recordo da última vez que aqui escrevi sobre uma boa notícia. E esta é boa para os mais de 500 milhões de cidadãos da União Europeia. No dia 27 de novembro, o importante Comité do Parlamento Europeu (PE) para os Assuntos Económicos e Monetários (ECON), composto por 50 deputados (de um total de 751), rejeitou através de um empate (25:25) a proposta da Comissão Europeia (CE) para integrar o sinistro Tratado Orçamental (TO) no direito da União Europeia..Antes de passarmos ao significado, gostaria de recordar quem votou a favor e contra a proposta da CE para transformar a austeridade em lei europeia. Favoravelmente votaram os liberais (ALDE, com 68 deputados no conjunto do PE), os democratas-cristãos (PPE, onde se sentam o CDS e o PSD, contando 217) e os conservadores reformistas (ECR, com 74). Contra a proposta votaram os socialistas (S&D, a grande mudança, pois em 2013 estiveram na linha da frente do apoio ao TO, integrando o PS este grupo que conta 189 deputados), a esquerda unida com os verdes nórdicos (GUE-NGL, aqui se sentam o PCP e o BE, contam 52), os Verdes com seus aliados (G-EFA, com 51). Votaram também duas formações da área populista (a EFDD, com 45, e a ENF, com 37)..Esta eleição é de crucial importância por quatro razões. Primeira: o TO, que entrou em vigor em 2013, estipulava no seu último artigo, o 16.º, que ao fim de cinco anos de exercício teria de ser integrado no quadro legal europeu, Isto significa que a peça legislativa que hoje mais negativamente afeta a vida dos europeus mergulha num limbo jurídico. Segunda: esta recusa recorda-nos que existe uma desconformidade entre o TO e o Tratado de Lisboa (que em grande medida se tornou letra morta, como é o caso do respeito pelos direitos económicos e sociais). Com efeito, o TO é um tratado intergovernamental que foi imposto na base do medo (se o Parlamento português não o tivesse aprovado, o país deixaria de receber o dinheiro do resgate). Terceira, o debate que se vai seguir, e que a CE quereria evitar, vai levantar o véu sobre o golpe de Estado neoliberal que a pretexto da crise ocorreu na UE. Iremos recordar como em 2010, através do pretexto da dívida grega, e num processo de manipulação organizada, se fabricou uma mentira sobre a causa da crise. Entre 2008 e 2010, os europeus percebiam que a responsabilidade da desordem económica pertencia à ganância de banqueiros, deixados à solta pelas regras do euro, desenhadas por economistas tão arrogantes como medíocres. Depois de uma das maiores campanhas de desinformação da história, a culpa passou para os povos que se tinham endividado demasiado (embora essa dívida, com exceção da Grécia, tivesse crescido exponencialmente para salvar os bancos!). Quarta, o atual quadro legal da zona euro (TO, Mecanismo Europeu de Estabilidade, união bancária) resultou de uma prolongada situação de emergência, de uma suspensão radical da democracia (lembram-se de como se mudaram governos em Itália e na Grécia, ignorando as eleições?)..Enquanto os poderes atribuídos à UE pelo Tratado de Lisboa resultam do princípio da atribuição, de uma livre e democrática transferência de soberania dos Estados para as instituições europeias, os poderes transferidos para a CE pelo TO foram-no na base da usurpação e da chantagem, evocando a "doutrina de choque" denunciada por Naomi Klein na sua anatomia da contrarrevolução neoliberal..O caminho que poderá salvar a UE será longo e tortuoso. Contudo, talvez este tenha sido o primeiro passo..Professor universitário
Já não me recordo da última vez que aqui escrevi sobre uma boa notícia. E esta é boa para os mais de 500 milhões de cidadãos da União Europeia. No dia 27 de novembro, o importante Comité do Parlamento Europeu (PE) para os Assuntos Económicos e Monetários (ECON), composto por 50 deputados (de um total de 751), rejeitou através de um empate (25:25) a proposta da Comissão Europeia (CE) para integrar o sinistro Tratado Orçamental (TO) no direito da União Europeia..Antes de passarmos ao significado, gostaria de recordar quem votou a favor e contra a proposta da CE para transformar a austeridade em lei europeia. Favoravelmente votaram os liberais (ALDE, com 68 deputados no conjunto do PE), os democratas-cristãos (PPE, onde se sentam o CDS e o PSD, contando 217) e os conservadores reformistas (ECR, com 74). Contra a proposta votaram os socialistas (S&D, a grande mudança, pois em 2013 estiveram na linha da frente do apoio ao TO, integrando o PS este grupo que conta 189 deputados), a esquerda unida com os verdes nórdicos (GUE-NGL, aqui se sentam o PCP e o BE, contam 52), os Verdes com seus aliados (G-EFA, com 51). Votaram também duas formações da área populista (a EFDD, com 45, e a ENF, com 37)..Esta eleição é de crucial importância por quatro razões. Primeira: o TO, que entrou em vigor em 2013, estipulava no seu último artigo, o 16.º, que ao fim de cinco anos de exercício teria de ser integrado no quadro legal europeu, Isto significa que a peça legislativa que hoje mais negativamente afeta a vida dos europeus mergulha num limbo jurídico. Segunda: esta recusa recorda-nos que existe uma desconformidade entre o TO e o Tratado de Lisboa (que em grande medida se tornou letra morta, como é o caso do respeito pelos direitos económicos e sociais). Com efeito, o TO é um tratado intergovernamental que foi imposto na base do medo (se o Parlamento português não o tivesse aprovado, o país deixaria de receber o dinheiro do resgate). Terceira, o debate que se vai seguir, e que a CE quereria evitar, vai levantar o véu sobre o golpe de Estado neoliberal que a pretexto da crise ocorreu na UE. Iremos recordar como em 2010, através do pretexto da dívida grega, e num processo de manipulação organizada, se fabricou uma mentira sobre a causa da crise. Entre 2008 e 2010, os europeus percebiam que a responsabilidade da desordem económica pertencia à ganância de banqueiros, deixados à solta pelas regras do euro, desenhadas por economistas tão arrogantes como medíocres. Depois de uma das maiores campanhas de desinformação da história, a culpa passou para os povos que se tinham endividado demasiado (embora essa dívida, com exceção da Grécia, tivesse crescido exponencialmente para salvar os bancos!). Quarta, o atual quadro legal da zona euro (TO, Mecanismo Europeu de Estabilidade, união bancária) resultou de uma prolongada situação de emergência, de uma suspensão radical da democracia (lembram-se de como se mudaram governos em Itália e na Grécia, ignorando as eleições?)..Enquanto os poderes atribuídos à UE pelo Tratado de Lisboa resultam do princípio da atribuição, de uma livre e democrática transferência de soberania dos Estados para as instituições europeias, os poderes transferidos para a CE pelo TO foram-no na base da usurpação e da chantagem, evocando a "doutrina de choque" denunciada por Naomi Klein na sua anatomia da contrarrevolução neoliberal..O caminho que poderá salvar a UE será longo e tortuoso. Contudo, talvez este tenha sido o primeiro passo..Professor universitário