Há bibliotecas para todos os gostos, posses e espaços. E este tempo de pandemia mostrou nas televisões quem as têm e como são. Quem congelasse a imagem e se pusesse a ver as lombadas atrás do entrevistado descobriria títulos inesperados, acabados de chegar às livrarias antes da quarentena e, na maioria, de muito antes. Havia livros para todos os feitios e interesses, diversidade que o verdadeiro amante de livros nunca foi capaz de evitar desde que Gutenberg inventou a impressão com caracteres e gerou séculos depois uma indústria que lança(va) milhares de livros a cada segundo por este planeta..Talvez, a partir de agora, as bibliotecas particulares se encham menos com a crise, a inexistência de feiras do livro, a indefinição dos salários reduzidos e os leitores diminuam. Mas as crises vão e vêm e o mercado nunca terminou, fosse devido a guerras mundiais e frias - de ambas resultaram milhares de volumes - ou por outros cataclismos. Nem com a cegueira de quem quer ler... como era o caso do escritor argentino Jorge Luis Borges, seguindo a tradição familiar dos varões, que perdiam a visão quando chegavam aos 50 anos..Borges não voltou a ver a partir de certa altura, após os seus olhos irem ficando turvos e com uma neblina que só lhe deixaria ver a cor amarela, razão por que lhe ofereciam, por exemplo, inúmeras gravatas nesse tom. Quem conta esta história é Alberto Manguel, um bibliófilo carente de páginas físicas de romances, ensaios, contos e tudo o mais que os autores criam para encher estantes. Borges não teve a sorte do seu pai, que ficou cego mas, anos antes de morrer, voltou a ver. Não, Borges foi-se embora invisual..O que levou Manguel a visitar Borges e tornar-se leitor de livros entre 1964 e 1968 de uma das figuras mais míticas da literatura mundial? Borges era cliente da livraria Pygmalion, "um dos pontos de encontro na cidade por quem se interessava por literatura", lugar onde a proprietária, que fugira no nazismo da Europa, importava o que havia para ler dessa mesma Europa e dos Estados Unidos. Manguel, após as aulas, fazia um part-time nessa livraria e um dia Borges perguntou-lhe se queria ler-lhe livros na sua casa. O jovem estudante tinha 16 anos, sabia da aura de Borges por terceiros, mas aceitou a tarefa e cumpriu-a durante os quatro anos que se seguiram..É essa época da sua vida que conta numa memória que agora sai em livro em Portugal, intitulado Alberto Manguel com Borges (Editora Tinta da China), ao qual acrescenta um posfácio para os leitores portugueses que quase vale pelo livro todo..Como é a biblioteca de Borges? Diferente ou igual à de outros escritores? Manguel descreve-a assim: "No seu apartamento, Borges procurava o conforto da rotina, e nunca nada parecia mudar no espaço que ele ocupava. Borges sentava-se no sofá e eu instalava-me numa das poltronas diante dele." Na sala existiam "duas estantes brancas embutidas na parede e que sustentavam enciclopédias, e mais duas estantes baixas de madeira escura." Existiam mais lugares para livros nesta casa: "O quarto de Borges; por vezes, pedia-me que lá fosse buscar um livro", que estavam em mais duas estantes baixas. Além desta meia dúzia de estantes, nada mais havia em sua casa. Era certo que Borges tinha à mão quase todos os livros que queria no seu emprego - era diretor da Biblioteca Nacional..O jovem Manguel não se espantava então, como veio a questionar com o avançar da idade, com a dimensão da biblioteca de Borges. Neste relato, no entanto, não deixa de afirmar: "Para um homem que chamava ao universo uma biblioteca e que confessou que imaginava o paraíso "sob a forma de uma biblioteca", o tamanho da sua biblioteca desiludia. Quem o visitava esperava uma casa forrada a livros, prateleiras sobrecarregadas, pilhas de volumes a bloquear portas e a transbordar de todos os recantos, uma selva de tinta e papel. O que descobria era, pelo contrário, um apartamento onde os livros ocupavam uns poucos cantinhos discretos.".Entre os que ficaram espantados está Mario Vargas Llosa, que visitou Borges e lhe fez o remoque, recebendo como resposta que os argentinos não eram como os peruanos: "Aqui em Buenos Aires não gostamos de nos exibir.".Manguel garante que, sendo pouca a quantidade, a qualidade compensava e revelava a "essência das leituras de Borges": enciclopédias que lia num "acaso ordenado", livros de Stevenson, Chesterton, Henry James e Kipling; obras quase completas de Oscar Wilde e Lewis Carrol; de H.G. Wells, Mark Twain e dos irmãos Grim; de Spengler, Gibbon, Mauthner e Schopenhauer; policiais de John Dickinson Carr, bem como as aventuras de Sherlock Holmes, que dizia estarem mais próximos "da noção aristotélica de obra literária do que qualquer outro género", ou Cervantes e o seu D. Quixote..Os grandes ausentes, refere Manguel, "eram os seus próprios livros". Havia, contudo, obras proibidas na sua biblioteca. Manguel, consciente daquilo que Borges 'deitava' fora, considera que "podia-se construir uma história da literatura perfeitamente aceitável só com os autores que rejeitava". Evocando o cansaço de Ulisses perante todos os prodígios que viu e preferindo o verde de Ítaca, também Borges não tinha "interesse na novidade pela novidade". Entre os livros que não lhe serviam estavam os de Jane Austen, Goethe, Stefan Zweig, Maupassant, Boccacio, Proust, Zola, Balzac, Lovecraft, Edith Wharton, Neruda, Alejo Carpentier, Thomas Mann, García Márquez, Jorge Amado, Tolstói, Lope de Vega, Llorca, Pirandello... e quase todo o Flaubert, escapando apenas o "primeiro capítulo de Bouvard e Pécuchet"..Entre os ignorados na biblioteca de Borges estava também Fernando Pessoa, de quem nunca disse uma palavra; Camões, de quem falava muito mas não perdoava as alegorias como a de quando "os soldados portugueses fazem amor com as ninfas", mas afirmava que "tem tantos defeitos, mas não deixa de ser bonito". Estas revelações estão no posfácio escrito para esta tradução portuguesa, onde surge o seu autor preferido entre os portugueses: Eça de Queiroz: "Borges admirava Os Maias, O Primo Basílio, O Mandarim." Acrescenta sobre Queiroz: "Cada frase que Eça publicava era limada e temperada", bem como "cada cena da sua vasta obra foi imaginada com probidade", e que, apesar de tido, o autor "amava Portugal com carinho e ironia"..A biblioteca de Jorge Luis Borges não tinha a dimensão da de outros escritores, apesar de este ser um tema, tal como o espelho e o labirinto, que o fascinava - e dominava - o seu espírito literário. José Cardoso Pires, por exemplo, teria mais livros do que Borges, mesmo que muitos enviados por autores sedentos de reconhecimento e sem interesse real, que até há pouco estavam em caixotes ou distribuídos em estantes provisórias na biblioteca da sua terra natal, à espera de ordem. Já António Lobo Antunes forrou a casa a estantes e Urbano Tavares Rodrigues fizera o mesmo... E Pessoa, que deixa tantos livros estranhos sobre as prateleiras, a mostrar os seus interesses psiquiátricos, económicos, além dos clássicos. Ou Sophia de Mello Breyner Andresen, que usava os livros da sua estante na casa da Meia Praia como arquivo de inéditos. José Saramago será uma ótima exceção, pois criou de raiz em Lanzarote um edifício redondo, encimado por uma claraboia, em cujas prateleiras distribuía livros às centenas por cada género, e que, atrás da mesa onde escrevia e por vezes consultava - também - as suas amadas enciclopédias, colecionava as múltiplas edições e traduções da sua bibliografia, entre os muitos elefantes que tinha espalhados pelo local. Mas estes não cegaram progressivamente a partir dos 30 anos, como Jorge Luis Borges, nem precisaram de leitores como Alberto Manguel..P.S. - A palavra biblioteca nos títulos não deixa de estar em muito ligada a Borges, responsável por uma coleção de livros com o nome de "A Biblioteca de Babel", mas são muitos os autores que lhe piscam o olho porque entrou na moda neste século, desde que Carlos Ruiz Zafón fez desse mundo dos livros uma trilogia bem-sucedida. Há A Bibliotecária de Auschwitz, O Bibliotecário de Paris e O Morcego Bibliotecário; ou variações do tema, como O Livreiro de Cabul, o de Santiago e o de Paris... mas fica com Paul Auster a melhor destruição de uma biblioteca num romance, quando os livros que herdou evitam que o protagonista morra de frio ao queimar dezenas de exemplares.