Moda para ajudar as crianças escravas da Guiné no regresso a casa
"Eu vi tantas destas crianças em Dakar. Os pais mandavam-nas para fora estudar o Corão e [lá] metiam-nas a pedir nas ruas", lembrou a estilista guineense Djanaina Vaz Turpin quando recebeu o convite para se juntar ao movimento FAZ como uma das criadoras de moda a apoiar a reintegração das crianças talibé na Guiné-Bissau.
São 100 as peças, criadas por 12 designers de moda com o tradicional pano de pente guineense, que neste domingo estarão expostas na Casa Independente, em Lisboa, para com a sua venda ajudar a financiar a Associação dos Amigos da Criança (AMIC).
A história do FAZ começa em 2017, quando Frederica Rodrigues, que há dez anos trabalha regularmente com a Organização Internacional para as Migrações, das Nações Unidas, visitou a Guiné-Bissau numa missão e ali conheceu a AMIC, que entre 2005 e 2017 apoiou 1079 crianças talibé regressadas à Guiné-Bissau.
Estas crianças, enviadas pelos pais para fora do país com o propósito de estudarem em escolas tradicionais corânicas (daaras), são muitas vezes tornadas escravas, vítimas de maus-tratos e lançadas para situações de grande vulnerabilidade. A AMIC, a partir de uma rede transnacional, reintegra-as no seu país de origem, atendendo primeiro às suas necessidades urgentes.
"Muitas vezes chegam numa situação dramática", diz ao DN o secretário-executivo da AMIC Laudolino Medina. "Muito sujas, vestidas de trapos, psicologicamente abatidas, com fome, muitas vezes doentes, com feridas no corpo, praticamente por toda a parte. É precisa uma resposta de urgência."
Depois de essa resposta ser prestada, explicou ainda o responsável por aquela associação criada em 1984, as crianças são ouvidas. "Constituímos o seu dossiê, e desencadeamos as pesquisas. Temos poucas pessoas mas muita experiência, e acabam normalmente por encontrar a família. Depois de a família ser localizada há toda essa fase de mediação", e de preparação tanto da criança como da família, explica Laudolino Medina. "Muitas vezes a reintegração não é possível, e procuramos uma alternativa. Muitas vezes as crianças são órfãs, noutras é preciso afastar as famílias da criança."
O último grupo que a AMIC apoiou tinha crianças entre os 5 e os 17 anos. "Já houve interceção nas fronteiras de crianças com dois, três anos", adianta ainda o secretário-executivo da associação.
As crianças talibé, recorde-se, foram retratadas num trabalho do fotojornalista português Mário Cruz, Talibés - Escravos dos Tempos Modernos , pelo qual recebeu o prémio World Press Photo na categoria Temas Contemporâneos, em 2016. Nas suas fotografias veem-se as crianças acorrentadas, com cicatrizes no corpo, ou a pedir nas ruas.
"Voltei à Guiné-Bissau, em trabalho em abril, e tornei-me na cliente mais assídua do Mercado do Bandim, o principal em Bissau, onde fui todos os dias para ver, medir, fotografar, e comprar os panos de pente com o feedback das criadoras", conta Frederica Rodrigues, que com a equipa do FAZ reuniu 12 designers.
"Sabíamos que queríamos um grupo de criadores que juntasse pessoas de várias origens. Era para nós essencial termos criadores guineenses. Acabámos nesta edição de 2018 com um círculo de criadoras - todas mulheres - de Portugal, Guiné Bissau, Venezuela e São Tomé e Príncipe." Airosa Design, Buy Less, Cátia Moreira, Cláudia Vieira, D.Vaz, Joana Espadinha, Mariana Almeida, Pérola Correia, Roselyn Silva, Sophie Bernardo, e Stencillook criaram as 100 peças feitas a partir desses panos que a equipa conseguiu fazer chegar a Lisboa "com vários voluntários viajantes que os foram trazendo".
Djanaina, criadora da marca D.Vaz, conhecia bem os panos de pente, tecido tradicional da Guiné, feito de algodão num tear artesanal Não só já tinha feito uma coleção de moda com eles como estão por toda a casa da sua mãe, e estão no seu país - de onde saiu aos 17 anos para estudar no Senegal - na maioria dos momentos importantes na vida de um guineense, como um casamento - "é posto no chão para a noiva não o pisar", conta - ou um funeral.
"Os panos de pente são de uma diversidade enorme e muito bonitos. Por serem também, por enquanto, largamente desconhecidos em Portugal pensámos que poderíamos contar a história das crianças talibés e divulgar o trabalho da AMIC através deles", afirma Frederica, justificando a escolha do tecido que neste domingo pode ser visto em saias, mochilas, kimonos, casacos, ou outrosacessórios.
"Temos o objetivo de angariar cerca de 5000 euros aquando da venda das peças de moda do FAZ, de acordo com o somatório do valor de todas as peças. Todos os fundos angariados revertem a 100% para a AMIC. Vai ser possível apoiar a AMIC em bens para o centro de acolhimento de Bissau, com baterias para os painéis solares, arca frigorífica, reabilitação do parque infantil, computadores portáteis, impressora, bem como apoio formativo", diz a coordenadora do FAZ.
"Reforçar os nossos meios de pesquisa de família, e é preciso que as crianças sejam seguidas de forma personalizada, é preciso um acompanhamento regular, pelo menos a cada três meses para cada criança, isso envolve deslocações no terreno. Nós não conseguimos fazer isto, porque não temos meios. Temos duas viaturas velhas. Amanhã eu iria para Gabu, mas não vou porque uma está avariada", explica Laudolino Medina quando lhe perguntamos quais são as necessidades mais prementes da AMIC.
Além dessas, continua o secretário-executivo, há a questão da eletricidade e da internet, que tantas vezes falha e os obriga a usarem meios próprios para dar resposta ao trabalho urgente.
É em Gabu, onde Laudolino iria, como tem ido, que está um dos centros de acolhimento da AMIC, que também acolhe e reintegra vítimas de casamento precoce e forçado. O centro de Bissau está neste momento a ser reabilitado, depois da degradação provocada pelo excesso de crianças em 2016, ano em que a certa altura chegou a acolher 80 destas crianças, numa estrutura feita para metade desse número.