Estava tudo a preparar-se para fazer desta 90.ª Feira do Livro de Lisboa mais uma grande edição quando surge o aviso: "A 90.ª Feira do Livro de Lisboa 2020 será adiada". Agora já se sabe que decorrerá entre 27 de agosto e até 13 de setembro", mas novidades que iriam levar dezenas de autores - e milhares de leitores - ao Parque Eduardo VII mantêm-se em muito por publicar. Mesmo com as livrarias reabertas e o regresso aos lançamentos da maior parte das editoras portuguesas, o setor ainda está a despertar de um sono tão maléfico para a literatura como inesperado..Entre as novidades adiadas está um livro pouco habitual entre a produção dos escritores portugueses: Manual de Sobrevivência de Um Escritor. É a análise de João Tordo à vida que escolheu e uma radiografia muito pertinente dos grandes problemas que se colocam aos escritores, coisa de que os nossos autores fogem como do diabo. Um volume em muito na primeira pessoa e que, perante uma obra já com dimensão e que se sobrepõe à da maioria dos autores da sua geração pelo empenho na renovação das regras literárias e inovação nas temáticas, vale a pena ser lida..Este Manual de Sobrevivência soma mais de duzentas páginas e resulta, confessa o autor, de "milhares de horas passadas sentado a uma secretária a escrever um livro". Após enumerar na introdução as várias pedras que surgem pelo caminho, Tordo avisa: "Se queres ser escritor, prepara-te para ficares de coração partido." Na parte Efeitos Secundários explica como enfrentar a ansiedade, o fracasso e o sucesso, a inveja... Mas é no capítulo sobre O dinheiro que este livro toca no ponto da indústria e sintetiza o destino cruel a que os autores estão votados pelas regras que o mercado editorial decidiu desde há muitas décadas..Portanto, Manual de Sobrevivência de Um Escritor pode bem ser um livro para substituir por instantes uma Feira do Livro de Lisboa adiada e perceber o que está do lado quase sempre ignorado do autor e da sua criação e das editoras e do seu negócio, exatamente o que faz com que o Parque Eduardo VII se encha de forma acrítica todos os anos por esta altura. Ou seja, estas reflexões de João Tordo valem bem um bocadinho do adiamento de uma Feira do Livro de Lisboa, de modo que a olhemos com uma perspetiva mais consciente do que é um escritor quando voltar a existir..A Feira do Livro de Lisboa não abre hoje como estava previsto. O que de mal traz ao mundo? Não traz propriamente "mal", mas traz alguma tristeza. É um espaço de convivência saudável, onde os leitores vão à procura dos livros e dos escritores, e os autores estão lá para os receber. Muitos dos meus leitores só os vejo anualmente, na Feira do Livro de Lisboa. É mais um dos lugares da cultura que a pandemia da covid-19 forçou o cancelamento. Há uma relação muito especial entre os leitores portugueses e a Feira do Livro, que eu sempre senti: aquele não é um lugar de negócio, nem de troca de bens, nem um supermercado de livros. É um lugar de afetos..No seu mais recente livro, Manual de Sobrevivência de Um escritor, refere a Feira do Livro como um grande empurrão para o seu futuro. A Feira continua a preencher o seu imaginário como então? Sim, de maneira diferente. No livro, falo dela no primeiro capítulo porque fez parte da minha formação emocional. Ter ido pela primeira vez à Feira do Livro, ainda em miúdo, é uma memória que guardo para sempre. Teve muito impacto no leitor que eu era, que continuei a ser. Ainda tenho os livros que comprei nesse ano (1986, creio eu). Hoje, preenche o meu imaginário de escritor. Naquele tempo, não havia um contacto tão próximo com os escritores, parece-me; eram mais os stands e os livros, os livreiros, etc. Hoje, a Feira do Livro - infelizmente, não este ano - tem os autores à mão de semear. É um privilégio para nós, os leitores. E um gratidão enorme para nós, os escritores, termos os leitores ali tão perto..O passeio entre os stands da feira passaram a ser de autor em vez de leitor ou ainda concilia ambos? É meio meio. Como conheço grande parte das pessoas, estou sempre a dizer 'olá' a toda a gente. Mas também faço passeios de leitor, em que vou à procura de certo livro ou atento aos descontos ou ao "livro do dia"..Como assiste às livrarias de portas fechadas até há poucos dias? Com a mesma impotência de toda a gente que viu o seu "negócio" fechar. O meu negócio são os livros, embora eu seja apenas o ponto de origem. E as vendas pararam; a venda online é escassa. Sem livrarias abertas, um escritor que dependa das vendas - como eu dependo - fica em maus lençóis. Pedi as ajudas todas possíveis e não recebi nada. Nem da Segurança Social. E os escritores também ficaram de fora da Linha de Apoio às Artes, o que é uma decisão incompreensível. O que nós fazemos não é arte? Porquê?.Este vírus 'infetou' ainda mais pessoas a tornarem ex-leitores em livro de papel? Não me parece. Em Portugal as vendas em papel são a grande parte do mercado, se não mais do que 90%. Julgo que os portugueses - e eu incluo-me aí - gostam dos livros. Dos livros físicos, com papel e capa, cheiro, lombadas, etc. E não vai deixar de gostar. Por isso tenho esperança de que isto vai passar e de que as pessoas vão regressar às livrarias..Em contraponto com a realidade - queda da venda dos livros nos últimos anos -, este é um livro que incita pessoas a tornarem-se escritores. Um manual para os seus alunos ou a despedida de uma arte? Não é um "manual", o título é enganador. É para todos os que se interessam por Literatura, escritores e leitores. Não incita ninguém a tornar-se coisa nenhuma - pelo contrário, por vezes até adverte para os "perigos" e os desafios e os riscos deste ofício. Também tem partes relacionadas com a técnica, e a estrutura, e a forma, etc., mas nele falo muito dos outros escritores - aqueles que fazem parte da minha tradição literária. Também não é despedida nenhuma, até porque gostava de continuar a escrever sobre este ofício..Há muitas afirmações que desestimulam os candidatos a escritores como, por exemplo, "A vida de um escritor pode tornar-se difícil." Qual a intenção? Ser provocador. Parece-me importante para um escritor em "formação" ter palavras de desafio, alguém que lhe diga: "Anda cá ver se consegues fazer isto." Eu funciono assim, gosto de desafios, e aprendi muito com esta espécie de repto do exterior. Creio que um escritor - tendencialmente uma criatura obsessiva e compulsiva - responderá a isso..Este é um livro muito autobiográfico. Expor-se era a única forma de explicar a escrita? Não tenho grandes problemas com isso, da exposição. Claro, há certas partes da minha vida que mantenho privadas. Mas outras que me parece fazerem sentido expor para explicar como cheguei a certos lugares, como tirei certas conclusões. O género que tentei praticar neste livro - o memoir, por assim dizer - não é muito habitual por cá, mas tem alguns praticantes. Não é muito popular porque a "exposição" está associada a coisas menos boas - confissões em programas de televisão, pessoas a chorarem em direto, escândalos, etc. Ora, a exposição neste livro não está relacionada com nenhuma dessas coisas, mas sim com a intimidade. Não estou a confessar nada, estou a mostrar certos lados de mim que participaram na construção do escritor que hoje sou - da infância até à idade adulta. Se não tem a ver com o ofício, então não falo do assunto..Não faltam 'truques literários' como este: "Ajuda bastante ter uma infância difícil". Os aprendizes precisam de chicotadas psicológicas? Essa expressão é do futebol. Não se aplica aqui. Literariamente, é importante aprender a cair, a dar valor ao fracasso. Grande parte da vida literária é feita desse fracasso, do que não conseguimos, dos caminhos que não devemos tomar; a construção de uma voz é precisamente isso: encontrar um lugar que só se encontra quando olhamos para nós próprios e perguntamos: De que sou feito? Quais são as minhas feridas, o lugar mais vulnerável de onde brota a criatividade?.Ou conselhos para ser egocêntrico, como este: "Nada deve suplantar a escrita." Deve-se a uma lição de vida própria? Não se trata de egocentrismo. Essa citação tem um contexto: perante as vicissitudes da vida quotidiana - o lado avassalador que esta possui -, a escrita deve estar em primeiro lugar. Não num sentido prático, mas num sentido emocional. Demorei muitos anos a perceber isto: o tormento emocional das tuas personagens é o teu tormento emocional. A dor é a mesma. Vivê-la, página atrás de página, pode ser uma experiência dilacerante. Portanto, nada deve suplantar a escrita, mas neste sentido: ao dedicares-te de corpo e alma a um livro, estás "cheio" daquilo, e não há espaço para muito mais..Cita Hemingway: "Escrever é simples: 'Basta sentares-te à máquina de escrever e sangrares.'" Hemingway continua a ser atual? Claro..O que leva a repetir uma pergunta que faz: "Como é que sabemos que estamos a contar a história certa?" Porque, na minha experiência, muitos dos meus alunos debatem-se com essa questão. E eu também me debati durante muitos anos. Saltam de história em história, de ideia em ideia, etc.. Só quando se percebe que isto não tem a ver com ideias nem com histórias, e que estas brotam da personagem (o enredo é a personagem), das suas feridas, da sua hubris, das suas insuportáveis contradições, é que se entende o que é escrever, num sentido literário. Portanto a resposta à pergunta é: Não podemos saber. Tens de perguntar às tuas personagens..O tema da quarentena/pandemia andou a rodeá-lo como tema para um livro ou colocará esse cenário de fora da sua obra? Por enquanto, não. Há de ser explorado nos próximos tempos, mas não por mim. Estou a escrever um livro para 2022, já temos (eu e a editora) o próximo ano programado. Talvez no futuro distante. Seja como for, eu não sou um escritor de "temas", por isso dificilmente acontecerá. Há outros escritores muito bons que o farão melhor do que eu..Nota-se um respeito pela obra de certos escritores, designadamente de José Saramago. Ao ver o livro impresso notou a ausência gritante de algum autor? Não, acho que pus os suficientes. Os que não pus, foi por distração, e peço-lhes desculpa..Considera que para a produção de um escritor "nada substitui o quotidiano". O que dizer dos autores portugueses que andam numa roda-viva? Bom, agora já não andam... Enfim, eu sempre fui da opinião que, por mais que goste de ir ao encontro dos leitores - e gosto muito, estou-lhes imensamente grato -, os escritores, nos últimos quinze ou vinte anos, estavam, por vezes, a deixar-se subjugar pelas chamadas exteriores. Demasiados festivais literários, demasiadas viagens, demasiados compromissos, acabam por fazer mal à escrita. Isso está explicado no livro. Conheço, aliás, escritores que, com a paragem forçada da covid-19, não conseguem escrever - como se o ritmo acelerado da vida em viagem fosse já o ritmo normal. Ora, não é, nunca foi. Na minha opinião, a literatura carece de um recolhimento, de um voltar para dentro. E isso nota-se - ou melhor, lê-se.."Não há criatura mais invejosa do que um escritor que se julga incompreendido, desconsiderado ou injustiçado." É o retrato do escritor português? É o retrato de todos os escritores ou artistas, em qualquer parte do mundo. Esse capítulo - A Inveja - foi dos mais difíceis de escrever. Porque implicou reconhecer a inveja como uma característica humana, que eu possuo, como qualquer outra pessoa, e toda a compaixão que é precisa para lidar com ela, e viver melhor connosco próprios, com as nossas enormes limitações..A caminho do fim deste livro surge a questão do "salário" que o escritor recebe. A modestíssima quantia não é razão suficiente para nem começar uma carreira? Não tem a ver com dinheiro. Com muita sorte e ao fim de muitos anos disto, começa-se a ganhar alguma coisa da escrita. Tem de se escrever bons livros, alguns muito bons, e confiar que os leitores aparecerão e serão fiéis. A relação é recíproca. Escreve um bom livro, confia no leitor; no próximo, ele estará aí para ver como te saíste, se o conseguiste agarrar durante aquelas horas todas. É preciso respeitar quem está do outro lado - o leitor - se queremos viver da escrita. E, com esse respeito, vem o lado da recompensa financeira. Eu tive sorte, mas também trabalho muito. E trabalho com uma editora que me dá condições para o fazer, que nunca me negou nada. E os meus livros vendem porque há leitores, e porque eu os respeito muito e faço o melhor trabalho possível..Manual de Sobrevivência de Um escritor.João Tordo.Companhia Das Letras.215 páginas