Ian McEwan: "Um feto perito em vinhos era o narrador ideal"
Dentro de um mês, é lançado o mais recente livro do escritor inglês, cuja tradução portuguesa chegará às livrarias pela Editora Gradiva em simultâneo com a de língua inglesa. O escritor Ian McEwan marcou a entrevista para as 17.00. Três minutos antes, bate-se à porta de uma das muitas habitações da rua. Uma travessa silenciosa, mesmo que fique a 150 metros do centro de Londres, bastante discreta, onde só os jornalistas estrangeiros podem entrar. O escritor inglês explica que a imprensa britânica é do piorio e que não respeita a vida privada, daí que a mulher tenha ficado horrorizada quando soube que ia ter visitas: "Só respirou de alívio quando soube que vinha de Portugal".
Ian McEwan sobe pelos degraus da escada interior até à sala de estar. Como bom inglês, até porque são cinco horas, pergunta se se quer beber um chá. Acabamos com dois copos de água, mais próprio para o fim de tarde quente londrino. Atrás de si tem uma pequena foto pendurada na parede com a velha banda de música, os Beatles, que foi ali colocada devido às boas memórias que provoca.
A conversa começa, continua sem pressa, e só acaba quando a propósito de um pormenor autobiográfico no livro Sábado faz um autoelogio à sua prestação na cozinha: O meu fish stew é muito bom. Faço-a à francesa, quase como uma bouillabaisse, mas também gosto de a confecionar com leite de coco e muitas especiarias." Se o que gosta é de caldeirada, logo o informo de que em Portugal há muito bom peixe. Responde: "Acredito." Pergunta: "É muito diferente do peixe francês?" Diz-se que é muito melhor: "Então, tenho que vos visitar!" Aí, o entrevistador passa a entrevistado, devido à curiosidade de McEwan: "Também cozinha?" Explico que o peixe grelhado é o preferido lá em casa mas que se evita por causa do cheiro. Resposta pronta: "Mas é um cheiro tão bom. A minha mãe também não gostava por essa razão. Mas o cheiro acaba por desaparecer e é tão agradável." Estamos neste vaivém de culinária, sempre com o livro Sábado de permeio à conversa: "Como colocava a personagem a fazer uma caldeirada, houve leitores que me enviaram e-mails a perguntar quanto tomate se punha, se usava muita ou pouca pimenta..."
A pequenez do título Sábado leva à primeira pergunta. A maioria dos seus livros tem títulos muito curtos... "Solar, Amesterdão, Expiação..." Nova divagação, por causa do terceiro título: "Quando tinha o livro pronto para imprimir, dei-o a ler a um amigo que mora aqui perto, o historiador Timothy Garton Ash. A única coisa com que não concordava era o título. Que inicialmente era A Expiação. Ele não gostava e veio ter comigo para me convencer a retirar o "A". Explicou-me as razões e ajoelhou-se a implorar que o fizesse." Tão pressionado pela sua opinião, aceitei alterar o título. E qual não foi o meu espanto quando disse ao editor que queria eliminar a letra "A" e ele concordou imediatamente, porque também não gostava. Era o que queriam e ninguém me o dizia. Ou seja, chegamos a uma idade em que não nos dizem as coisas óbvias. Se Timothy não se tivesse ajoelhado aqui na carpete, teria cometido um erro porque Expiação é muito mais forte."
Liga-se o gravador para dar início à entrevista, motivo para mais uma história, desta vez confessional: "Desculpe se demorar algum tempo a dar as respostas, mas esta é a primeira entrevista que dou sobre este livro..." E sorri, enquanto pronuncia o título do seu novo romance, Nutshell, retirado de uma deixa da peça de Shakespeare, Hamlet. Um romance que sairá em Portugal pela editora Gradiva praticamente aquando da edição inglesa, a meio do próximo mês de setembro, com o título provável de Numa Casca de Noz.
Os seus editores ingleses escolheram como frase de promoção de Numa Casca de Noz o seguinte resumo: "Uma história clássica de assassínio e enganos". Revê-se nesta súmula?
Foi-me explicado que não queriam revelar que era um livro em que o narrador é um feto, portanto deram a volta e resumiram assim. Posso garantir que não seria o primeiro resumo para o livro a vir-me à cabeça, mas foi o que decidiram.
O romance será publicado no Reino Unido e nos Estados Unidos em simultâneo, o que não é muito normal para um autor europeu.
É verdade que a vida dos escritores estrangeiros não é fácil nos EUA. Mas eu fiquei com muitos leitores nos Estados Unidos desde o tempo em que as pessoas lá compravam livros nas livrarias independentes, principalmente desde o Expiação, e a partir desse livro todos os outros foram muito bem recebidos.
Os norte-americanos são bons leitores?
Não sei, faço muitas digressões na Costa Leste e há muitos leitores que vêm assistir às leituras. É difícil fazer diferença entre um leitor americano, inglês, espanhol ou italiano. São pessoas iguais em todo o lado, que gostam de livros.
A versão americana é igual à inglesa ou teve as habituais alterações que os EUA gostam de introduzir?
Creio que é praticamente igual, que não mudaram nada.
Há algumas partes eróticas neste Numa Casca de Noz que não passam no crivo puritano americano?
Essa situação nunca me aconteceu até agora nos Estados Unidos, mas durante muito tempo costumava existir uma versão com as expressões americanizadas. Eles têm a ideia de que lá ninguém entenderia qualquer coisa diferente. Como pavement em vez de sidewalk. É uma visão de um país que se olha como um império.
Estava a referir-me à parte em que Trudy grávida e o amante Claude têm relações sexuais e o bebé sente o pénis perto. Essa não era uma parte que os americanos decerto gostariam de suavizar?
Pode estar certo, mas como é o que está no livro eu não autorizaria que fosse retirada.
Este não é um romance que passa uma mensagem antiaborto?
Nunca o tinha observado dessa maneira até este momento...
Se o feto pensa, até é o narrador, algumas pessoas poderão utilizar o livro como argumentário antiaborto. Não concorda?
Para ser completamente sincero, isso nunca me passou pela cabeça. De facto, nem passou pelo pensamento que pudesse existir um aborto porque é demasiado tarde. Ele está para nascer quinze dias depois dos primeiros acontecimentos que abrem o romance. De qualquer modo, não tenho grandes opiniões sobre a questão do aborto. Claro que aceito o direito das mulheres sobre o seu corpo, mas por outro lado acho que é subestimado o trauma psicológico que o aborto provoca na mulher. No entanto, este não é um livro sobre a questão do aborto.
Está satisfeito com o seu livro?
Sim, ou não o publicaria.
Alguma vez lhe aconteceu ter pensado no fim da escrita que não gostava de um livro?
Não, até por causa do meu processo de escrita. Escrevo muito devagar e só dou início ao livro depois de pensar muito nele. Portanto, não creio que haja lugar para lamentar o que fiz. Isso não quer dizer que não me tenha acontecido algo semelhante em, por exemplo, O Inocente, que se passava nos anos 1950 em Berlim e havia uma pessoa que sem querer matava outra e precisava de se desfazer do corpo. Então, a solução era cortar o corpo em pedaços e colocá-los dentro de uma mala de viagem. Como não sabia bem como o fazer, fui perguntar a um amigo professor forense que fazia autópsias quanto tempo demoraria ele a cortar uma perna. Ele respondeu-me que fazia autópsias todas as segundas às 8 em ponto: "Venha assistir a uma e logo verá." Ainda lhe perguntei se a família aceitaria a minha presença: "Não se preocupe, ninguém saberá. Só lá estou eu e o meu assistente." Fiquei a pensar no assunto e concluí que se fosse assistir a uma autópsia poderia influenciar-me e iria destruir-me romance. Porque o livro ainda estava em gestação e o que observasse poderia perturbar-me.
E alterou o rumo do livro?
Fui um cobarde e acabei por não ir assistir à autópsia. Quando acabei o romance, dei-lhe o livro a ler e ele assegurou-me que estava tudo correto. Eram seis páginas tão violentas como sangrentas, que ninguém gostou. Lamentei tê-las publicado, mas estava muito entusiasmado com o livro, um caso de espionagem, que no final acabou por não ter grande sucesso.
Este romance é muito mais suave e divertido.
É verdade. Quando se decide ter um feto como narrador é sempre possível colocar alguma diversão no texto, não só por causa dessas cenas de sexo mas devido aos efeitos do vinho que a mãe bebe. E queria que o leitor sofresse de certos efeitos; que ficasse de "cabeça para baixo" como o bebé logo nos primeiros parágrafos. Com aquele início fica tudo claro antes do fim do primeiro parágrafo.
Porquê um livro apenas com 200 páginas?
A razão por que este é um romance curto deve-se à impossibilidade de manter durante 600 páginas uma história a ser narrada pelo feto. Precisa de ser breve.
Coloca na narrativa certas deixas de quando o bebé está aborrecido muito curiosas. "Eu gostava de não ter que nascer", por exemplo.
Uma grande parte do romance cita o Hamlet, designadamente onde Shakespeare faz várias reflexões sobre o suicídio devido à ausência de poder da personagem e da sua impotência para mudar as coisas. Essa frase não é diferente daquilo que se passa em Hamlet, apenas a transformei em prosa, com o cuidado de manter a sonoridade da linguagem da peça. O que se passa com o feto é sentir-se na necessidade de agir mas estar impedido por estar dentro da barriga da mãe.
Há outra parte intrigante, a primeira palavra que o bebé aprende: "veneno". Porquê esta?
A minha preocupação era a de os leitores levarem este romance demasiado a sério. Enquanto o escrevia, disse à minha mulher: quando este livro for publicado o melhor é abandonar o país, porque é muito louco e estúpido. Não irei para fora, mas dentro de dias vou refugiar--me no campo como castigo.
Diria que é, pelo menos, inesperado este registo vindo de si?
Concordo. Este romance é uma espécie de férias, como se dissesse: foda-se a realidade. Desta vez queria ser completamente livre, portanto ao criar um feto que é perito em vinhos era o ideal. Ele adora o Sancerre e o Pinot Noir, até identifica as vinhas e o ano de produção dos vinhos que a mãe bebe.
A sua obra já contém uma grande galeria de personagens. Há alguma que prefira mais entre todas?
Acho que as várias personagens correspondem a muitas versões da minha própria imaginação. Talvez a mais conseguida seja o narrador de Expiação, mas também aprecio o terrível homem que era o herói de Solar. No entanto, esta personagem que não tem nome e é um bebé também me agrada bastante.
Fez muita pesquisa para este livro?
Não, apenas fui à internet uns dez minutos para conhecer certos vinhos que iria dar a beber à mãe.
Nos seus anteriores romances, é a investigação que faz o livro ou vice-versa?
Na maioria das vezes, faço a investigação em simultâneo à escrita. Portanto, só pesquiso o que preciso para continuar a escrever. Para mim, a investigação faz parte do próprio romance, e penso que escrevê-lo é como uma viagem onde a investigação e a escrita são a própria viagem.
É sempre assim?
Quando escrevi o livro anterior, A Criança no Tempo, eu precisava de construir um juiz e de relatar como era a sua vida no tribunal. Então, falei com um juiz, que me levou muitas vezes ao tribunal para assistir às sessões. Se tivesse começado primeiro pelo romance, as perguntas que lhe teria feito não seriam tão acertadas como as que fiz após toda aquela observação.
No caso de Solar teve de fazer uma investigação muito mais profunda ou não?
Nesse caso, a maior parte da investigação foi realizada através de leituras em vez de encontros pessoais. A exceção foi ter ido ao Novo México procurar uma localidade para ser o cenário onde o romance terminaria, mas aí já tinha escrito a maior parte do trabalho. Sabia bem o que pretendia. Também fui a laboratórios de energia solar para conversar com físicos, mas só após muita leitura para encontrar as perguntas corretas a fazer.
Esse protagonista de Solar acredita que pode salvar o mundo através de uma energia limpa. No seu caso, ainda acha que há salvação?
Mesmo com toda a complexidade do tema das alterações climáticas, há um único graal sagrado: encontrar uma energia barata. Quando a tivermos, surgirão todo o tipo de possibilidades. Atualmente, a energia solar não é suficientemente poderosa para manter Lisboa quente durante o mês de fevereiro, mas um dia encontraremos a solução. Só posso dizer que o problema é muito complexo, mais dificultado ainda pelas circunstâncias políticas tão difíceis que vivemos, onde a preocupação com a política energética foi desviada para o combate ao terrorismo, a situação na França, na Turquia ou o brexit.
É fácil escrever um romance como Numa Casca de Noz quando o mundo se desmorona à sua volta?
Sim, porque não parecendo, o romance também pensa o mundo apesar da distância da narrativa no que respeita à questão política. Tentei balancear o pessimismo cultural e definir esse tempo do livro como uma era dourada, que está contido numa casca de noz.
A sua Londres já parece estar fora da União Europeia. Sente isso?
Ainda não abandonámos a União Europeia!...
Creio que era um dos ingleses que queria ficar na União Europeia...
Sim. Muito mesmo.
Como é ser obrigado a deixar a União Europeia?
É o resultado de uma longa luta no interior de um partido político, os Conservadores. O partido tem estado dividido e o ex-primeiro-ministro David Cameron fez uma aposta com o referendo, achando que fixaria uma posição definitiva em relação à União Europeia por várias gerações. Só que falhou!
Como vê a reação ao não?
Ninguém quer falar sobre o referendo, nem sequer no Parlamento. Aliás, ninguém comenta o papel do Parlamento, nem quando se sabe que é este que deve ratificar qualquer alteração ao tratado por via do artigo 50.º Pelo contrário, o referendo do brexit foi um plebiscito hitleriano com uma margem de 4% enquanto se quisermos mudar a Constituição é necessário mais de 60%. Há uns de nós que se sentem usados por um partido, pois não havia nenhum outro partido a querer o referendo senão o UKIP, até porque o referendo apenas tirou a fotografia ao sentimento nacional de um único dia, obrigando a rever um tratado e a absorver a energia nacional noutra direção. O que nos sairá caro.
O que prevê como "castigo"?
Provavelmente, será um castigo económico e também cultural. Foi uma loucura! A minha expectativa é que como a chanceler Merkel vai enfrentar uma reeleição, nos beneficiemos dessa situação políti-ca em relação aos trabalhadores imigrantes. Porque o Reino Unido beneficia-se muito da migração, que é principalmente da Commonwealth, ou seja, não a poderemos controlar. Portanto, o brexit é uma tragédia nacional. Pior, diria mesmo uma estupidez nacional, suportada por uma pequena diferença. Um terço quer sair, menos de um terço quer ficar, e o outro terço não se importa com o assunto.
Mas os dados estão lançados.
A resposta do referendo foi apenas um aviso e não é vinculativa para o Parlamento. Talvez eu seja um otimista louco, mas penso que as negociações serão tão difíceis para o Reino Unido que tudo pode mudar. Se fosse um jogo de cartas, nós nunca jogaríamos porque o jogo estava perdido à partida. A União Europeia diz que não avança unilateralmente e não acredita que sem o mercado único tenhamos movimentação livre de trabalhadores. Ainda acredito que a negociação se arraste por dois anos e acabe por deixar toda a gente tão zangada que se desemboque noutro referendo.
Acredita num segundo referendo?
Completamente, mesmo que agora ninguém fale sobre isso. Está-se a empurrar o problema com a barriga até onde for possível. Temos 650 parlamentares, dos quais 500 querem ficar. Vivemos numa democracia parlamentar, não num país de plebiscitos.
Tudo indicava que havia demasiado descontentamento popular.
Creio que o sentimento nacional pode mudar se houver uma recessão, ou se a libra continuar a afundar-se e houver mais inflação. Nós não temos indústria, as exportações são na ordem dos 10% e temos de importar a matéria-prima. Compreendo que a austeridade tenha provocado esta situação e que as pessoas estejam zangadas, como é o caso das do Norte de Inglaterra, que ainda estão a recuperar da morte de certas indústrias. Porque haveria de votar pelo statu quo se não têm lugar aí? Devem ter pensado "vamos tentar alguma coisa diferente". Mas serão eles quem mais vão pagar a fatura. Talvez daqui a dez anos tenhamos esta conversa e veja que estava completamente errado, que temos a melhor economia e o maior crescimento dos G20. Ficaria contente por me ter enganado.
Admite deixar a Inglaterra?
Não, gosto muito de viajar mas não por essa razão. Tenho amigos que dizem que se querem ir embora para o Canadá, mas isso é um desabafo pós-referendo. Não acredito, é como os meus amigos americanos que disseram que depois de Reagan ou de Bush iam embora, agora é depois de Trump ganhar, mas ninguém se vai embora porque é muito complicado. Este é o meu país e não quero ser empurrado para fora por questões políticas.
Falou em França. Como vê os atentados de Paris e de Nice?
Estava em Paris em novembro quando aconteceram os atentados, mas Nice preocupou-me mais porque vi o ministro da Defesa dizer "isto não vai acabar, é preciso habituarmo-nos". Realmente, três dias depois o Promenade des Anglais estava de novo cheio de turistas, ou seja, parece que nos iremos acostumar a estas situações. Li artigos a dizer que podem matar centenas de franceses que não conseguirão mudar o Estado francês, é como em Bagdad. Lemos que 150 pessoas foram mortas por uma bomba no centro da cidade, antes tínhamos lido que foram 123 ou 75 no mês anterior... É verdade, não se destrói um Estado porque a nação é muito maior, pode é vir a ser uma estranha nova normalidade. Nice estava no coração de todos, mas cada atentado vai ser menos importante para o mundo. Londres pode ter o próximo, quem sabe se Lisboa também, não vejo como isto vai mudar porque é como uma cobra a comer a sua cauda. Desconheço a solução, é só estúpido o que se vê. O que acontecerá em França se Marine le Pen tiver bons resultados eleitorais?
O terrorismo afeta tudo...
É maior do que a literatura, do que tudo.
Deu refúgio a Salman Rushdie em sua casa quando foi anunciada a fatwa. Pensou no significado?
Esse foi o capítulo 1 para a nossa geração. Em 2001, o atentado às Torres Gémeas foi o segundo capítulo. Apercebemo-nos de que o modelo do multiculturalismo tinha mudado de repente e que as comunidades deixaram de ser tão bem acolhidas. De um momento para o outro, uma minoria tinha um pensamento bem diferente em relação ao mundo do que era o nosso. Víamos pessoas em frente ao nosso Parlamento a queimar livros de Rushdie e a dizer que devia morrer. As liberdades básicas de expressão que tínhamos como garantidas foram violentamente desafiadas e isso preocupa-me.
Quando vemos o mundo atualmente até esquecemos o conflito israelo-árabe. Já não importa?
Não, é apenas uma parte de um grande mosaico, pois toda a região do Médio Oriente é um problema que ninguém consegue resolver. A guerra civil na Síria atingiu uma escala de sofrimento humano que ultrapassa o da Faixa de Gaza, mas a crise no Sudão do Sul não é menos grave. O mundo parece cheio de problemas sem solução e no meio disto tudo observa-se que quando qualquer religião entra num conflito, acrescenta-se um elemento sobrenatural assustador. É o fator da identidade e do nacionalismo, que são questões dificílimas de resolver, talvez memo impossíveis de solucionar. Falava-se da Irlanda do Norte e de como se obteve uma espécie de paz, mas os católicos irlandeses do Norte não acreditavam verdadeiramente na sua religião, era mais uma identidade cultural, que importava verdadeiramente no sentido dos direitos civis e da luta nacionalista. Se a Turquia implodir numa ditadura, teremos a situação dos imigrantes que vêm para a Europa tão alterada que o pior do que se passou nos últimos anos será multiplicado cinquenta vezes. Se ignorarmos o brexit e colocarmos como verdadeira a possibilidade de Donald Trump ganhar as eleições, então é melhor escondermo-nos debaixo da cama.
É-lhe fácil escrever um romance sobre assuntos que não estão na agenda social enquanto decorrem todos estes problemas?
Foi sobre isso que quis refletir em Numa Casca de Noz, um mundo que fosse entendido pelo que se ouvia na rádio e o que será a vida depois do parto. O romance reflete o estado do mundo, ou é pelo menos um canal para essa perceção.
Quando começa o livro sente ansiedade sobre o que vai escrever?
Vivo um estado mental curioso e com vários componentes. Um entusiasmo que é uma espécie de capa para a ansiedade. Fico entusiasmado com o que quero e numa ansiedade sobre como transmitir tudo o que desejo, e ser bem-sucedido ao desenvolver a ideia do livro. No geral é um bom estado, pois deixo passar muito tempo entre romances, porque não me sinto obrigado a escrever o tempo todo e descanso, o que é um alívio quando regresso à escrita. No início é um sentimento ótimo, como se tivesse um emprego a tempo inteiro, não apenas a ler livros de outros a viajar ou a absorver situações. É como voltar ao ativo. Mas existe sempre essa ansiedade sobre se é o projeto correto. É como no casamento, serei capaz de viver com esta pessoa para sempre? Mas a ansiedade é uma coisa boa, porque mantém o escritor focado.
A ideia para o livro nasce de ver a sua nora grávida. Foi assim?
Sim, tudo começa aí. Estávamos a conversar e ela estava grávida de oito meses. E conversávamos sobre o bebé como se ele não estivesse ali também. Então, imaginei-o de cabeça para baixo dentro da barriga da mãe e descobri que poderia ser uma boa ideia. Abri um arquivo no meu portátil e andei seis meses a pensar nisso, mas não pensava seriamente escrever um romance sobre este assunto. Não avançava, porque tinha a noção de que o bebé era um narrador impossível.
Então, aconteceu uma epifania para que começasse o livro?
Estava numa reunião entediante, era obrigado a manter um sorriso na cara e ouvir pacientemente os oradores, quando me apareceu a primeira frase: "Aqui estou eu de cabeça para baixo dentro de uma mulher." E gostei dela. Então, vieram-me à cabeça todos aqueles pensamentos que tivera. O encontrar da primeira frase gera-me alguma liberdade. E nem estava a pensar no livro, ouvi foi esta frase como se estivesse a ser soprada no meu ouvido. Por Deus, com certeza... Então, foi só encontrar o re-gisto e pensar nas referências ao Hamlet e também de Macbeth.
Usou a palavra Deus...
Estava a ironizar. A frase chegou ao meu pensamento, mas não precisa de uma explicação sobrenatural. Há outras mais fáceis. O meu sentimento não era de entusiasmo, mas de curiosidade e necessidade de investigar.
Gostou da capa?
Sim, a capa tem o "U" de Nutshell como se fosse a barriga de uma mulher grávida de perfil e o bebé é um desenho famoso de Leonardo da Vinci. É muito boa, mesmo que os americanos a detestassem. Disseram que se meteriam em problemas se a pusessem na edição americana. Eu fiz um finca-pé e eles aceitaram, mas nunca ficaram felizes. No final, disse-lhes para fazerem como achassem melhor e eles mudaram logo.
Na edição inglesa também tem uma palavra a dizer sobre a capa?
Mostraram-me as várias ideias sim, mas só participo o mínimo possível. Não quero vetar, não desejo essas responsabilidade. Mostram as melhores ideias e dou opinião, mas a minha responsabilidade é escrever o livro.
Não é normal que um escritor agrade tanto aos leitores como à crítica como acontece consigo. Qual a razão?
Gosto de ouvir essas palavras mas, infelizmente, não é bem essa a realidade. Se perguntar ao meu editor inglês, ele dirá que todos os livros que publico têm um misto de opiniões a favor e contra. Eu não leio críticas, mas algumas vezes alguém me faz chegar ao ouvido um ou outro título de um artigo. Como no caso do meu último romance, em que havia um título de uma crítica que dizia ser um livro inesquecivelmente mau! Isso acontece-me frequentemente. Até preferia que dissessem que seria tão mau que era para esquecer.
Acha que o crítico só quer marcar uma posição?
Sim, porque nem o terá lido. Duvido, ainda não está a venda. Mas mesmo sem o ler faz uma má crítica, imagine-se quando o ler. Não irá dizer que é maravilhoso! Portanto, não tenho críticas gloriosas non-stop, há de tudo. No mesmo dia o romance é uma obra-prima e o pior que já escrevi. Isso é cada vez mais habitual, especialmente nos blogues literários na internet. Felizmente, há o outro lado disto, o encontrar-se um leitor que gostou do romance. Henry James dizia numa - questionável - citação que "o primeiro dever do escritor era interessar o leitor". Atualmente, pode soar como uma vulgaridade mas é impressionante a quantidade de escritores que não acha isso importante. É um erro gigantesco o facto de um livro não ser interessante. Claro, que um leitor pode achar interessante e o outro considerar uma treta, nunca haverá uma unanimidade, e é por isso que há boas e más críticas.
E no caso de Numa Casca de Noz?
Neste caso, existirão pessoas que nunca lerão um livro cujo narrador é um feto e haverá outros que o detestarão. Os romances são a coisa mais pessoal que existe, pois é impossível escrever mil palavras sem se revelar parcialmente. Os leitores são humanos, por isso, o autor tanto é uma blasfémia como elogiado.
Os seus livros não são assim tão autobiográficos?
Não, há partes da minha vida que aparecem, talvez até mais do que as pessoas possam imaginar, mas é sempre sob disfarce ou mudado.
Então, não se pode escrever a sua biografia em cima dos romances?
Não, gosto de pensar que sou um inventor. Muitos escrevem sobre a sua vida e há livros fantásticos feitos assim, como o Herzog de Saul Bellow, uma descrição do seu divórcio, que se tornou num dos grandes romances americanos.
Também tem essa experiência...
...Nunca escreverei ou falarei disso.
Escuta a opinião do leitor?
A melhor crítica que se pode ter é uma opinião bem sustentada de um colega de escrita, isso importa-me muito mais do que qualquer outra coisa. Quanto às pessoas que detestam o meu livro, elas nunca o dirão, portanto nunca saberemos exatamente o que pensam.
Lê muitos livros dos seus colegas?
Sim, sou um bom leitor.
O que está a ler agora?
De momento, não tenho colegas com livros novos.
E literaturas de outros países?
Recentemente li um livro de um autor alemão e um de francês.
E de autores portugueses?
Gostava de dar um exemplo mas, honestamente, não consigo.