Um festival precisa de crianças
Não é um voto misericordioso. Não se trata de alimentar a piedade obscena do nosso mundo mediático. Nada disso. Se um festival precisa de crianças, isso quer dizer que nelas podemos reconhecer os enigmas (e também as revelações) de um tempo em que se desenha o aparecimento do adolescente e se instala o pressentimento do adulto. Ou ainda: algumas das histórias de Cannes trouxeram-nos esse misto de evidência e ambivalência que faz com que as crianças possam ser as melhores personagens dos filmes.
Assim aconteceu, claro, através do perturbante assombramento sexual que envolve os dois rapazes filmados, com comovente pudor, pelo belga Lukas Dhont, no belíssimo Close. Aliás, o assombramento é tanto maior quanto somos levados a compreender que a palavra "sexual", além de imprecisa, apenas reflete a perceção social de algo que resiste a ser classificado.
Assim aconteceu também, aproximando-se de uma drástica fronteira simbólica, com o bebé abandonado de Broker, o novo filme do japonês Hirokazu Kore-eda, rodado na Coreia do Sul. Subitamente, aquele pequeno ser indefeso emerge como ponto de fuga de uma aventura dramática em que a lei escrita e a lei moral se cruzam e, de alguma maneira, desafiam, confrontando-se com os seus próprios silêncios.
E que dizer dos jovens aprendizes (não de feiticeiro, por certo) que circulam por filmes como Armageddon Time, do americano James Gray, Boy from Heaven, do sueco de ascendência egípcia Tarik Saleh, ou Tarik et Lokita, dos belgas Luc e Jean-Pierre Dardenne? Precisamente que a sua aprendizagem pode ser também uma forma de discutirem o lugar que os outros lhes atribuem, por vezes por mediação divina (veja-se o inquietante Boy from Heaven).
Em tempos de saturação de super-heróis (para mais, como diz o marketing, privilegiando o público "juvenil"), foi bom descobrir essas personagens que, afinal, parecem destinadas a algo mais grandioso do que explorar as novas aplicações dos respetivos telemóveis ou protagonizar discursos de anedotas (?) na MTV. No limite, houve mesmo filmes que nos expuseram uma verdade rudimentar que tendemos a esquecer: a infância e a adolescência não são prólogos mais ou menos fúteis da idade adulta, mas capítulos dramáticos cujos tempos se fazem e refazem no movimento de toda uma vida.
Filmes tão inteligentes como Le Otto Montagne, do casal belga Felix Van Groeningen/ Charlotte Vandermeersch, ou Un Petit Frère, da francesa Léonor Serraille, conseguem mesmo observar a metódica dilatação desses tempos, acompanhando as suas personagens ao longo de várias décadas, fundindo todos os momentos, todas as idades. O primeiro centra-se em dois rapazes unidos pela imponência dos Alpes italianos; o segundo encena a saga de uma jovem mãe da Costa do Marfim que, com dois dos seus filhos, chega a França em finais da década de 1980 - são lições de vida apresentadas através de um realismo ambíguo que só existe no cinema.
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