Um Estado sem boas práticas
A confusão começou logo com o número de desaparecidos, doze. Existiam. Depois deixaram de existir. Sem qualquer explicação adicional. Simplesmente, os desaparecidos desapareceram sem grandes conversas. Na semana passada, tivemos a polémica sobre o número de mortos, 64 ou 65 ou 66. Vítimas diretas e indiretas. Depois, entrou o segredo de justiça no debate. Havendo um inquérito a decorrer no Ministério Público, não podíamos conferir publicamente a identidade e o número oficial de mortos. Afinal, umas horas depois, já podíamos. Não é preciso ser bruxo para adivinhar que, em breve, teremos polémicas sobre os apoios às populações afetadas, nomeadamente, o uso dos donativos privados que o Estado decidiu confiscar através de um fundo criado a 24 de junho para gerir esse dinheiro. Ou os dinheiros públicos que não chegam. E veremos se os mal-entendidos e as polémicas acabam por aí.
Em 2017, esperaríamos que o governo, através do Ministério da Administração Interna, tivesse uma página de internet com toda a informação atualizada sobre a tragédia de Pedrógão Grande. Mas surpreendentemente não há um site oficial com a informação atualizada dos mortos, desaparecidos, feridos (e a evolução da gravidade), área ardida, valores das perdas económicas causadas pelos incêndios, estatísticas socioeconómicas das habitações danificadas. apoios à população, alocação dos donativos privados. O mesmo ministério que usa as redes sociais abundantemente (onde, por engano, faz publicidade a sondagens favoráveis ao PS) não acha especialmente necessário oferecer informação oficial atualizada aos seus cidadãos.
Sejamos objetivos. Não se trata de um problema deste governo ou do PS. Foi assim com o governo anterior em múltiplos exemplos, como nos incêndios de 2013 e de 2015, assim como nas cheias do Algarve em 2015. Neste aspeto, seja direita, seja esquerda, há uma bipolaridade governativa. Por um lado, todos os governos insistem nas novas tecnologias - redes sociais, e-government, Simplex. E todos se declaram apoiantes da transparência, do acesso à informação, de uma relação melhorada com a cidadania, com a introdução de boas práticas na administração do Estado. Mas, havendo uma crise, todos os governos regressam imediatamente aos anos 70 (tipo cheias de 1967). Querem opacidade, controlo e manipulação de informação, promovem a ausência de rigor, valorizam os canais privilegiados. As boas práticas ficam logo na gaveta. E a nova tecnologia é substituída por antigos (maus) hábitos.
A tragédia de Pedrógão Grande mostrou um Estado que não sabe prevenir. Depois mostrou um Estado incompetente, laxista, desorganizado, negligente. Fundamentalmente, mostrou um Estado que não funciona quando mais era preciso que funcionasse. E parte desse funcionamento adequado perante uma tragédia é saber disponibilizar toda a informação oficial ao cidadão comum num canal de acesso fácil e universal. Não o fez. Porque, em 2017, apesar de toda a conversa e de todos os imensos avanços tecnológicos, prevalece a mentalidade da informação ser poder. Que não deve ser partilhada com os cidadãos. No fundo, 45 anos de democracia não mudaram o Estado paternalista que fomenta a ignorância para proteger o próprio cidadão. Pedrógão Grande apenas reforçou esta mentalidade. Que tenha sido com o mesmo governo que insiste na modernização administrativa é mera coincidência.
Se não for tema de conversa, não existe
Processo EDP. António Mexia, administrador não executivo do Millennium bcp, foi constituído arguido no dia 2 de junho. Rui Cartaxo, chairman do Novo Banco por escolha do regulador, foi constituído arguido no dia 6 de junho. Uma vez que nenhum dos dois se demitiu voluntariamente, o Banco de Portugal anunciou que iria verificar a idoneidade de ambos para ocuparem cargos de administradores de instituições de crédito. Isto logo no dia 6 de junho. A 17 de junho, o Banco de Portugal esclareceu que iria apurar todos os detalhes através de um questionário enviado aos dois bancos em causa. A 1 de agosto, praticamente dois meses depois, os dois arguidos continuam em funções e o Banco de Portugal não se pronunciou publicamente.
Penso que existem argumentos em ambos os sentidos. Uns, como eu, valorizam mais o papel das instituições de crédito e argumentam que arguidos em processos desta natureza não podem continuar em funções (principalmente, funções importantes num banco com intervenção do Estado como o Novo Banco). Outros argumentam que a constituição de arguido em Portugal está de tal forma vulgarizada e, fazendo uma interpretação extremamente ortodoxa do princípio da presunção de inocência, defendem que não há razão nenhuma para discutir a idoneidade dos visados. O que, sim, me parece muito estranho é que o regulador leve dois meses sem decidir. Não se percebe como tal avaliação não é feita num curto intervalo de tempo (uma semana). Manter a incerteza, fugir do problema durante quase dois meses, não pode ser um exemplo de boas práticas na regulação. O regulador pode entender demitir ou não demitir os dois arguidos e, com essa decisão, naturalmente ficar exposto às críticas que forem pertinentes. O que o regulador não pode é furtar-se a decidir em tempo útil. Bem sei que o tema desapareceu da comunicação social, que não há absolutamente nenhuma pressão para tomar uma decisão, mas isso não pode justificar dois meses de espera. Até por respeito aos visados e às suas instituições de crédito.