Eborense, de 33 anos, Luís Ceríaco desde cedo se habituou "à bicharada", como o próprio lembra. Filho de professores de Biologia, a paixão pelo estudo dos animais acabou por ser uma coisa natural. Especializou-se no estudo de répteis e anfíbios (herpetologia) e tem descoberto várias novas espécies para a ciência nas suas expedições em África..Em 2020, foram mais de uma dezena as espécies reveladas, entre elas uma que ganhou eco universal: uma serpente venenosa a que deu o nome do vocalista dos Metallica, James Hetfield..Licenciado em Biologia, Mestre em Biologia da Conservação e doutorado em História e Filosofia da Ciência pela Universidade de Évora, esteve depois quatro anos nos Estados Unidos, onde foi investigador pós-doutorado na California Academy of Sciences, Natural History Museum of the University of Florida, Villanova University e University of Michigan-Dearborn..Atualmente é curador-chefe do Museu de História Natural e Ciência da Universidade do Porto, onde reside uma das maiores coleções de biodiversidade do país (mais de 850 mil exemplares de várias espécies) e onde recebeu o DN para esta entrevista. Presumo que a expressão "cobras e lagartos" não contenha, para si, a mesma negatividade que para a maioria das pessoas... Sim, é a minha zona de conforto. Trabalho com cobras e lagartos, e assumo-o..É uma paixão antiga ou mera circunstância profissional? Desde a minha infância em Évora. Sou filho de professores de Biologia e desde cedo que me habituei a ir para o campo. E os lagartos, as cobras, os sapos e as rãs, toda essa bicharada, sempre foram os bichos que mais me interessavam, porque eram os mais estranhos, os que despertavam mais curiosidade..Nunca teve medo das cobras? Nunca tive propriamente medo ou aversão. Mas sempre tive muito respeitinho. E aliás continuo a tê-lo, porque trabalho nesta altura com cobras muito venenosas e é bom manter esse respeitinho. Mas é engraçado, porque há uns anos dizia que serpentes venenosas eram as únicas com as quais não queria trabalhar. Hoje estou a trabalhar com serpentes venenosas, a escrever livros sobre serpentes venenosas....Quais os cuidados que tem para lidar com essas espécies? Em primeiro lugar devemos saber com que espécie estamos a lidar. Quando vou para um lugar devo saber que lá me vou deparar com esta espécie, que tem determinadas características, estudar o seu comportamento. Há espécies de serpentes venenosas que são muito agressivas e há outras que são pacatas. É preciso ler e interpretar os animais..Mas algumas das espécies que encontra são novas para a ciência, não há o conhecimento prévio... Sim, mas sabemos mais ou menos o género a que pertencem naquela área geográfica, o tipo de veneno, dá para fazer algumas associações. É necessário saber também que há técnicas corretas de manusear os animais e, por fim, ter noção de quais são os primeiros socorros que devemos ter por perto. Uma das coisas que vai sair saqui no museu, no próximo mês, é um guia de serpentes venenosas de Angola com um manual de tratamentos escrito aqui por nós, no museu..A pandemia veio afetar de alguma forma o seu trabalho de campo? Veio, claramente. Não tive nenhuma saída de campo em 2020. Tínhamos três expedições previstas, a Angola e à Namíbia, e foram todas canceladas. Estamos a contar retomar este ano. A pandemia bloqueou-nos e não só em termos de expedições. O nosso trabalho tem duas fases principais nesta descoberta de espécies. A primeira é o trabalho de campo, a expedição. Mas, depois, quando temos os exemplares, temos de os comparar com exemplares de outros museus. Ora, muitos dos museus, incluindo o nosso, estiveram fechados durante muito tempo. Mas por outro lado, e como tinha muitos dados e trabalhos em carteira, a pandemia veio trazer-me um calm down, para me sentar a descrever o que tinha encontrado noutras expedições. É a terceira fase do trabalho, a escrita..Daí termos tido tantas notícias de novas espécies descobertas por si durante o ano de 2020? Quantas espécies descobriu já? Sim. Desde 2015 já descrevi 25 espécies novas para a ciência. E neste último ano foram 12, dessas 25. Algumas de trabalhos iniciados em 2019, outras até de trabalhos que tinham sido iniciados em 2017 ou 2016. A espécie só oficialmente fica descoberta quando sai o artigo científico com a sua descrição. E umas são mais simples de descrever do que outras. Umas são completamente novas, e aí não há dúvidas; mas outras são mais subtis ou levantam dúvidas se não terão sido registadas com outro nome no passado, e aí temos de fazer uma análise mais fina, uma análise morfológica mais detalhada, usar DNA ou outras tecnologias como tomografias digitais, consultar mais museus... e isso acaba por tornar o processo mais longo..Esse é um trabalho menos estimulante, mas tão ou mais importante do que as aventuras de campo? Não diria menos estimulante, talvez mais monótono, mas igualmente importante. As pessoas não têm noção, mas eu passo horas a contar escamas de um lagarto, por exemplo. Gosto mais de trabalhar com serpentes porque são mais fáceis, morfologicamente, de estudar. Se for um lagarto pequeno, esse pode ser um trabalho muito minucioso, enquanto numa cobra grande eu consigo contar as escamas à vista desarmada. Mas esse trabalho só é possível no museu. E por vezes as pessoas esquecem-se desta parte, não é só trabalho de campo..Já tem mais espécies novas para revelar? Entre este ano e o próximo tenho em carteira, para divulgar, mais 20 espécies. Por exemplo, estou agora a descrever seis espécies novas de lagartos e contei escamas em mais de 300 exemplares, o que levou nitidamente cinco ou seis meses..CitaçãocitacaoDesde 2015 já descrevi 25 espécies novas para a ciência. E neste último ano foram 12.África é o seu campo preferencial de expedições e descobertas? África sempre me fascinou, sempre foi o sítio onde me via a trabalhar. Há outros hotspots de biodiversidade no mundo, como a Amazónia, ou o Sudeste Asiático... mas, não sei porquê, nunca tive fascínio por África. E depois, dentro de África, a África lusófona sempre me atraiu por vários pontos de vista: Angola é dos países mais biodiversos do continente, tem desde florestas tropicais no norte do país até ao deserto mais antigo do mundo no sul (Namibe); São Tomé e Príncipe está situada no equador, com uma biodiversidade luxuriante, e praticamente tudo o que há lá é endémico, só existe lá. Depois, África portuguesa, como é óbvio, tem facilidades para nós porque somos falantes da língua, temos acesso mais facilitado à bibliografia da zona..As suas descobertas foram todas nessa zona? As espécies novas são praticamente todas dessa zona [um mamífero, dois anfíbios e 23 répteis, de locais como Angola, São Tomé, Namíbia, Guiné Equatorial ou República Democrática do Congo]..E em Portugal, já descobriu alguma nova espécie? Em Portugal já descobri uma cobra nova, uma cobra cega, em 2017 ou 18. É do norte de Portugal, uma espécie subterrânea, em que os olhos são reduzidos porque não precisa praticamente deles. Mas, como é óbvio, em Portugal e na Europa a fauna está já muito mais descoberta..Há muitas espécies endémicas em Portugal? Sim. Portugal e Espanha têm uma grande percentagem de espécies endémicas. Isso deve-se ao facto de esta zona mediterrânica ser uma espécie de hotspot de biodiversidade e também se deve um pouco à história climática da Península Ibérica. Nas eras do gelo, a Península Ibérica foi um pouco um refúgio para muitas espécies que desapareceram da Europa. Encontrar espécies novas em Portugal é que é mais difícil, mas não é incomum. Cobras e lagartos não, porque a fauna já está muito explorada, temos de ir para grupos menos estudados. É muito comum acontecer, por exemplo, com insetos e invertebrados. E aqui no Museu, o nosso curador da entomologia não há mês que não publique um ou dois artigos com espécies novas para Portugal, ou que se conheciam de outros locais (Marrocos, França, Espanha) e ele encontra os primeiros exemplares dessas espécies em Portugal. E eles depois acabam aqui na coleção do museu, o que acaba por ser o sustento, o objetivo dessa descoberta. Porque uma coisa é haver evidência física e científica dessa descoberta num museu, onde toda a gente pode vir confirmar; outra coisa é dizer que eu vi o monstro do Loch Ness, mas não ter prova nenhuma disso. Estas coleções dos museus são a prova. É o que torna a biologia uma ciência objetiva e replicável. Porque se não eu dizia o que queria, que a cobra do James Hetfield tinha uma poupa de cabelo ou assim....CitaçãocitacaoNas eras do gelo, a Península Ibérica foi um refúgio para muitas espécies que desapareceram da Europa.Entre as suas descobertas está então essa Atheris hetfieldi, uma serpente venenosa descoberta na Guiné Equatorial. Porque decidiu dar-lhe o nome do vocalista dos Metallica? A par do meu gosto pelos museus e pelos répteis, o gosto pelo heavy metal também é algo que me acompanha desde muito cedo. Se em boa parte hoje sou biólogo e me mantenho no mundo académico é porque nos momentos mais complicados os Metallica me ajudaram a inspirar e ultrapassar as dificuldades. Por outro lado, não tinha praticamente nenhum nome em particular para aquela espécie e pensei porque não? E também porque, ao fazer isso, aquela descoberta teve um impacto mundial brutal, o que fez que muita gente que no dia-a-dia nem se lembra que há espécies novas a ser descritas, não se lembra que o planeta está com grandes problemas relativamente à sua biodiversidade e ao clima, ao aparecer uma notícia daquelas foram atrás do nome dos Metallica e a seguir "apanharam" com a informação toda sobre a descrição da espécie e o alerta sobre a quantidade de espécies que podemos estar a perder. Esse foi um dos objetivos..Mas há critérios definidos para a nomenclatura científica ou fica "à vontade" de quem descobre cada espécie? A nomenclatura científica tem como único objetivo sermos claros na comunicação entre cientistas e com a comunidade e decisores políticos. Temos que ter um nome que não seja ambíguo e só exista para aquele exemplar. Ao contrário do nome comum, que varia de local para local - o mesmo animal pode chamar-se de uma forma aqui e de outra diferente ao lado. Mas as regras não são muitas. Segundo a nomenclatura binomial, temos de ter sempre o nome do género e nome da espécie. Quanto ao nome do género, neste momento boa parte dos géneros já estão descritos. O nome da espécie é aquilo que nomeamos de novo. E as regras que existem são muito simples. O nome não pode ter sido usado para outra espécie desse grupo e tem que seguir meia dúzia de regras gramaticais, mais nada. Tudo o resto é um pouco à vontade do descritor..CitaçãocitacaoSe em boa parte hoje sou biólogo e me mantenho no mundo académico é porque nos momentos mais complicados os Metallica me ajudaram a inspirar.E aqui podemos ir por vários caminhos, e eu já usei várias dessas opções. Se a espécie só existe num local podemos ir pela descrição geográfica (como a trachylepsis thomensis, de São Tomé). Se percebermos que só existe naquela região e só tem um nome comum local, podemos ir pela latinização desse nome comum, como fiz com um musaranho de São Tomé, que localmente era conhecido como fingui e ficou crocidura-fingui. E outra opção são os patrónimos, em que decidimos dedicar essa espécie a alguém ou honrar alguém com essa descoberta. É uma tradição muita antiga do naturalismo. Pode ser em honra de um naturalista antigo, ou em honra do colector, em honra de um povo (fizemos isso com duas osgas recentemente em Angola, Lygodactylus nyaneka e Hemidactylus nzingae), ou, como no caso da serpente Atheris Hetfieldi, em homenagem a uma personagem famosa, no caso o James Hetfield..Há algum fascínio também, no mundo do heavy-metal, por este tipo de animais? As serpentes estão presentes em várias capas de álbuns, por exemplo... Há um certo maior fascínio estético do heavy-metal com as serpentes e esses bichos popularmente mais feios, do que com passarinhos muito bonitos, isso é verdade. As serpentes têm uma longa tradição cultural de ligação próxima ao homem. Há uma predisposição praticamente genética que temos, e que nos foi passada pelos nossos antepassados primatas. Há estudos psicólogos que mostram muito isto: se mostrarmos uma pistola e uma serpente a alguém, a reação é muito mais forte com uma serpente. E se fizermos isso com uma criança, que ainda não teve uma abordagem cultural à serpente, ela vai reagir. Há uma perceção imediata de perigo. E isso é evolutivo, porque os nossos antepassados primatas uma das maiores ameaças que tinham eram as serpentes, que eram uns predadores e algumas com esta capacidade venenosa. A mitologia depois cresce daí. Se é algo que nos causa uma reação tão forte, naturalmente depois vão ser criados uma série de mitos sobre serpentes em praticamente todas as culturas e povos do mundo. Já não acontece o mesmo sobre outras espécies, porque não há essa ligação tão forte..Batizou também uma das cobras recentes que descobriu em Angola em homenagem a Bocage. Não o poeta, mas um primo, zoólogo. E produziu um atlas que veio atualizar um que ele próprio tinha elaborado no séc XIX, sobre os répteis e anfíbios de Angola. Qual a importância desse Bocage na ciência portuguesa?.O José Vicente Barbosa du Bocage foi um dos personagens que mais me fascinou e continua a fascinar da história da ciência portuguesa. Ele, para além de zoólogo e herpetólogo, teve uma tarefa hercúlea no século XIX que foi rescontruir o Museu de História Natural de Lisboa. As coleções originais remetiam ao séc XVIII e tinham sofrido muita deterioração com as Invasões Francesas e depois entraram num grande período de negligência, com a nossa guerra civil e tudo o mais, e quando o Barbosa du Bocage pegou na direção do Museu de Lisboa herdou uma coleção de cacos. E a ação dele foi sempre querer conhecer a fauna do país e das suas então colónias. Construiu toda uma estratégia de crescimento das coleções, enviou exploradores para fora, para fazer esse levantamento, e transformou um museu que era um resto num dos museus mais importantes da Europa. Esse é o mérito dele enquanto construtor de coleções..Por outro lado, ele tinha esta grande ligação aos anfíbios e aos répteis. Porque eram pouco estudados e ele gostava. É engraçado porque o Barbosa du Bocage, para além de cientista, era um tipo nas altas patentes da esfera social portuguesa e, contam os seus biógrafos, que ele era das poucas pessoas que no reino a rainha tratava por tu. Ele descreveu mais de 200 espécies de vertebrados - de répteis foram cerca de 60. O trabalho que ele fez foi brutal. É o maior zoólogo português, não só do seculo XIX como até hoje. O impacto que ele teve nas ciências naturais foi brutal. Nunca ninguém em Portugal descreveu tantas espécies - de vertebrados. E a área onde ele trabalhou mais foi esta da África portuguesa onde eu também trabalho. As minhas referências quando eu apanho algo novo são recorrer ao Bocage. Porque o que existe para trás, naquelas zonas, pouco mais é do que o que o Bocage publicou. Aquilo não é só um livro antigo, para mim é a única referência que existe para já. É das poucas ferramentas que eu tenho disponíveis..CitaçãocitacaoAs ameaças à biodiversidade são galopantes e nós arriscamo-nos de uma forma clara a que muitas das espécies que existem no planeta desapareçam antes de nós as descrevermos e as conhecermos.Um pouco a imagem bíblica de Noé, a sua missão é a procura de novas espécies para catalogar e meter numa grande arca de preservação face à ameaça do apocalipse ambiental? Há essa preocupação de catalogar. Infelizmente, acho que não vamos nunca ter a capacidade de preservar todas as espécies, porque as ameaças à biodiversidade são galopantes e nós arriscamo-nos de uma forma clara a que muitas das espécies que existem no planeta desapareçam antes de nós as descrevermos e as conhecermos..É uma corrida contra o tempo? É, é uma corrida contra o tempo. Nós não podemos preservar uma coisa que nem sabemos ainda que existe. Só podemos começar pelos poucos e limitados mecanismos legais de que dispomos para preservar espécies se elas tiverem um nome, se estiverem descritas. De outra forma, se já é difícil chegar a um decisor político e dizer 'não podes destruir esta zona aqui porque existe esta espécie que já sabemos que há', ainda mais difícil é dizer 'não vás aí porque pode haver espécies novas'. É uma corrida contra o tempo, sem dúvida, e nós estamos a perdê-la..Presumo que esta pandemia não tenha sido, portanto, uma surpresa para si. Era uma inevitabilidade? Sim, era mais do que uma inevitabilidade. E posso dizer que temos tido sorte em não termos tido ainda mais pandemias do género. Porque isto é um conflito homem-natureza em que nós estamos cada vez mais a entrar para locais onde não estávamos originalmente. Estamos, por um lado, a forçar a biodiversidade e a natureza a ficar delimitada e, ao mesmo tempo, estamos a ir a certas zonas buscar coisas que de outra forma não iríamos ter. No ébola foi esse o caso e aparentemente neste coronavírus também. O que se vê, e este é um problema à escala global - não é africano, nem asiático, nem europeu - é que a população humana cresce muito, requer muitos recursos e começa a ir buscá-los a sítios onde não ia. E, mais tarde ou mais cedo, mais dia menos dia, vai buscar mais uma 'porcaria' que acaba por trazer para a comunidade. Isso é evidente em todos os trabalhos de campo que temos feito, em todos os países onde os temos feito - e podemos ver aqui em Portugal também, onde já praticamente não temos áreas naturais. De ano para ano, vemos um desbaste muito grande das áreas naturais nos sítios aonde vamos. Há estradas que eu percorri, tanto em Angola, como na Namíbia ou em São Tomé, que das primeiras vezes as fiz vi a floresta à beira da estrada e, a cada ano que passa, começamos a ver a floresta a desaparecer. Significa que a retiraram dali e que o homem está a enfiar-se mais para dentro da floresta. Enquanto inicialmente o nosso contacto potencial com vírus e doenças estava circunscrita àquela zona ali, neste momento já entrámos lá para dentro e aumentámos a zona de perigo. Isto não é mau apenas para a biodiversidade, como é mau para nós também, vai trazer-nos problemas..Citaçãocitacao É uma corrida contra o tempo, sem dúvida, e nós estamos a perdê-la..É uma caixa de Pandora ainda? É. E ao mesmo tempo tem outra coisa ainda mais nefasta. Não só tiramos da natureza o vírus ou a bactéria, o patogénio, mas, ao mesmo tempo, podemos estar também a destruir, ou extinguir, a planta ou o animal que porventura nos daria a arma para nos defendermos desse agente patogénico. Nós não sabemos. Cada espécie é um livro. E os livros têm informações lá dentro. Há livros com informações mais relevantes para uma coisa e outros para outra, ou livros com informações mais interessantes e outros mais simples. Mas se nós os destruirmos antes de os podermos ler, nunca vamos ter acesso a essa informação..Os répteis e os anfíbios são especialmente perigosos quanto a potenciais zoonoses, transmissão de doenças para o homem? Nem tanto. Como são grupos animais mais afastados de nós há sempre uma menor possibilidade de algo sair deles para nos afetar diretamente. Nesse caso, os mamíferos são de facto aqueles que nos têm maior afinidade e dos quais as doenças passam mais para o homem. Mas não deixam de ter uma importância médica relevantíssima, e voltamos às serpentes venenosas. A Organização Mundial da Saúde, há poucos anos, declarou as picadas de serpentes venenosas um dos maiores problemas de doenças tropicais negligenciadas. E dentro destas doenças tropicais negligenciadas estão coisas como o ébola, como as úlceras do Buruli e todas aquelas doenças que associamos a países tropicais. E o impacto dos internamentos provocado por serpentes venenosas é superior a muitas destas doenças mais famosas juntas. Ainda para mais afeta principalmente populações desfavorecidas, que é a população que está no campo, afeta principalmente mulheres e crianças, porque nestas zonas são as mulheres que trabalham no campo, e têm efeitos sociais bastante tenebrosos, no sentido em que quando não resultam em morte podem resultar em amputação, portanto têm impacto brutal na vida das pessoas..São também das espécies mais ameaçadas pelo tráfico internacional. É uma das maiores ameaças à preservação destes animais? Sim, infelizmente tem-se acentuado bastante o tráfico de espécimes de répteis associado a medicinas alternativas, crendices ou colecionismo. Vários países usam espécies animais nas suas medicinas tradicionais e a procura dessas espécies faz-se com cada vez mais frequência. Mas nos casos dos répteis até há outro problema maior, que é o pet trade. A comunidade entusiasta destas espécies é muito, muito grande. E no caso particular dos répteis, muito mais do que nos mamíferos, é um dos maiores problemas relacionados com o tráfico de espécimes neste momento..CitaçãocitacaoCada espécie é um livro. E os livros têm informações lá dentro. Mas se nós os destruirmos antes de os podermos ler, nunca vamos ter acesso a essa informação..Já teve muitos sustos ou encontros inesperados nas suas expedições? Tantos... Alguns quase com bolinha vermelha. Com serpentes, curiosamente, nunca apanhei um susto. Mas trabalhar em zonas muito remotas tem esse risco. Um dos maiores medos que nós temos é encontrar elefantes no meio das ações de campo. São dos casos mais assustadores. As pessoas esquecem-se, mas o elefante é um bicho muito grande. E não é o pachorrento que nós assumimos. Já tive alguns trabalhos de campo em que me deparei com elefantes que não ficaram contentes por me ver, e eu também não. E aí... temos de voltar para trás..E quais são os mecanismos de SOS nessas alturas? Uma boa parte é puxarmos pelo McGyver que há em nós e tentar arranjar uma solução que funcione. No limite, temos sempre seguros quando vamos para estas expedições e há equipas locais de evacuação médica que estão especializadas em socorro a pessoas como nós. Dizemos com antecedência para onde é que vamos e, se for necessário, eles já têm programado o nosso plano de auxílio. Felizmente, nunca foi necessário. Mas temos que assumir: um trabalho de um biólogo no meio do campo é um trabalho com risco. É um risco que assumimos. É algo que digo sempre à minha família - felizmente a minha esposa trabalha comigo e a ela não preciso de explicar porque ela vem comigo e acho que fazemos uma boa equipa: no momento em que um é mais destravado o outro diz "tem lá calma". Mas digo sempre aos meus pais e à minha família: olha, eu vou para ali e vocês sabem o risco que há, porque há... Não querendo comparar-me com um astronauta, mas alguém que vai num foguetão sabe que aquilo pode correr mal. E nós quando vamos para o meio de um sítio remoto, sem rede de telemóvel, a dias do hospital mais próximo, sabemos que há riscos..E para este ano de 2021, quais os planos? Muitas espécies novas já em perspetiva? Em 2021 o que temos planeado é, assumindo que a vacinação conta a covid-19 corre como previsto, voltar a Angola e à Namíbia. Recebi recentemente uma bolsa de exploração da National Geogrpahic e um desses trabalhos vai ser feito através dela. De resto, temos muitas espécies novas para a ciência que estão já submetidas e os artigos sairão nos próximos meses, outras que estamos a acabar de escrever e algumas espécies novas para a ciência que foram descobertas aqui dentro do próprio museu..No museu? Como assim? Sim, pelo menos três. São anfíbios e serpentes que estavam catalogadas de forma errada.