Passaram seis décadas desde que Joan Baez começou a cantar no célebre Club 47 em Cambridge, Massachusetts, tímida e séria, com o seu longo cabelo escuro e a voz de soprano cristalina. Agora, aos 78 anos, Joan Baez está a despedir-se. A sua Farewell Tour passa hoje pelo Coliseu dos Recreios, em Lisboa. É, antes de mais, um adeus à estrada. Baez, afinal, avisara-nos em Fare Thee Well, tão lá atrás, que tinha de ir andando, mas também que não a veriam lamentar-se..Apesar de não fechar o seu último álbum, Whistle Down the Wind (2018), a canção Silver Blade pode ser vista como um epílogo daquilo que foi iniciado por Silver Dagger, a canção que abria o primeiro álbum de Joan Baez, homónimo, em 1960. Tudo era então bastante diferente. "Eram canções de folk antigas, porque eu estava apaixonada por um rapaz de Harvard, e não prestava atenção à política", disse a própria ao Boston Globe..Rapidamente Baez passaria a prestar atenção, e viria a tornar-se uma das vozes que fizeram a banda sonora da luta pelos direitos civis logo na década de 60. Talvez o momento mais marcante seja quando o fez ao lado de Martin Luther King, no Lincoln Memorial em Washington, durante a histórica marcha de 1963..Seis anos depois estava no palco do Woodstock, grávida de seis meses do seu filho Gabriel. Antes disso foi para os campos ao lado de César Chávez e os trabalhadores migrantes que faziam greve exigindo salários justos, em 1966. Na mesma altura, passou a noite de Natal numa vigília na prisão de San Quentin, contra a pena de morte..Joan Baez passou 12 dias sob as bombas que, no Natal de 1972, eclodiram em Hanói, em plena Guerra do Vietname, e ali mesmo, abrigada, terá cantado entre os membros da comissão que integrava, de que faziam ainda parte um veterano daquela guerra, um pastor protestante e um professor de Direito que tivera um papel ativo nos Julgamentos de Nuremberga, e quem mais partilhava com eles abrigo. Don't Let Nobody Turn You Around e The Night They Drove Old Dixie Down foram duas das canções então tocadas e cantadas por Baez..Em 1974 editou Gracias a la Vida, álbum inteiramente em espanhol, que dedicou aos chilenos que sofreram sob a ditadura de Augusto Pinochet. Quatro anos depois marchava pela paz na Irlanda do Norte. Em 1989, o seu concerto na então Checoslováquia era apontado pelo futuro presidente Vaclav Havel como um ponto de viragem para a Revolução de Veludo. Em 2015, a Amnistia Internacional galardoou-a com o Prémio de Embaixadora da Consciência. Nos últimos anos tem sido uma acérrima crítica da administração Trump..As guerras foram mudando, e a sua marcha foi-se mantendo. "Quando subo ao palco, eu não faço história, eu sou a história. Talvez seja suficiente eu estar ali a lembrar as pessoas de um tempo em que tínhamos a música, a causa, a direção, e tínhamo-nos uns aos outros", afirmou recentemente ao The New York Times..Comentando a canção do último álbum I Wish the Wars Were All Over, cuja letra vem de um manuscrito com 440 anos que terá sido escrito por um americano preso pelos britânicos na Guerra da Independência, Baez perguntava-se: "Virá aí um mundo melhor? Eu não sei. Mas temos de fazer o nosso trabalho por uma sociedade justa e capaz de amar quer o fim chegue amanhã quer nos aguentemos por mais gerações.".Ainda neste mais recente álbum, produzido por Joe Henry, a agora veterana interpreta Another World, canção escrita por Anohni (ex-Antony and the Johnsons), em que reflete sobre as consequências das alterações climáticas. "Alguém escreveu todos os meus pensamentos numa simples canção", disse à The New Yorker..A voz já não é aquela cristalina, de soprano, com que a conhecemos. "Já não consigo cantar Forever Young ou Amazing Grace a menos que mais alguém cante. Esse é o tipo de tristeza com que não quero lidar", disse ao Boston Globe. A voz é uma das mais fortes razões para a decisão que Baez, conhecida também por ter sido namorada quer de Bob Dylan, com quem formou um dos grandes casais da folk, quer de Steve Jobs..Agora, a cantora que apenas desde 2017 faz parte do Rock and Roll Hall of Fame deverá dedicar-se sobretudo à pintura, a sua atividade criativa mais forte dos últimos anos, já que, como tem recordado, há 25 anos que deixou de escrever canções e se dedicou sobretudo a cantar canções de outros, como já antes fazia, de Violeta Parra a Woody Guthrie, Bob Dylan ou Tom Waits, que com a sua mulher, Kathleen Brennan, assina Whistle Down the Wind e Last Leaf..Embora este seja para si o fim das digressões, tal não implica que não possa voltar a subir a um palco. "Se houvesse um apelo às armas, ou a não armas, ou um festival maravilhoso num lugar onde eu nunca fui, eu iria. Parte do que é deixar a estrada implica aprender a respeitar os anos que passei nela", disse ao The New York Times..The President Sang Amazing Grace, outra das canções do último álbum, refere-se a Barack Obama, claro, quando o então presidente dos Estados Unidos fez do discurso canção e começou a entoar esse hino, no funeral de uma das vítimas do tiroteio que ocorreu em Charleston, em 2015. Durante as primeiras semanas na estrada, Baez não conseguia cantá-la, pela comoção que lhe provocava. Nela, a música e a vida nunca estiveram de costas voltadas.