"Segue em frente/ Não olhes para trás/ Vive o presente/ Que está a chegar", assim começa a canção dos UHF que, à boleia da RTP, tornou-se um dos hinos do confinamento. O que já alguns não se lembrarão é que o tema Portugal - Somos Nós já tem dez anos e foi composto pela banda por alturas da crise financeira de 2010, na véspera da chegada da troika e de um longo período de austeridade para o país. "Essa canção surgiu quando estávamos a gravar o álbum Porquê. Estávamos em plena crise e sentia-se um enorme desalento por toda a parte e em toda a gente. Sentimos a necessidade de fazer uma canção para puxar o ânimo das pessoas para cima, que voltasse a fazer-nos sentir bem em Portugal", recorda António Manuel Ribeiro, o vocalista, líder e principal compositor dos UHF..E agora, passados outros dez anos, o país passa novamente por uma situação semelhante, ainda que, na opinião do músico, "de uma forma muito mais estranha, porque nunca nos passou pela cabeça que um dia isto seria possível, que seríamos obrigados a ficar trancados em casa até tudo passar". Talvez por isso, sublinha, se tenha registado um "aumento tão grande no consumo de tabaco, álcool ou ansiolíticos e até dos casos de violência doméstica", porque "as pessoas não sabem lidar com uma situação destas"..Pareceu-lhe, portanto, "natural" o convite da RTP para recuperar a tal canção, que foi usada pela estação pública de televisão para servir de banda sonora a um separador dedicado à pandemia do covid-19. "No fundo é a mesma coisa, tem que ver connosco, com os portugueses, com o viver neste país numa nova situação de emergência", realça António Manuel Ribeiro, que recusa ser pessimista, especialmente agora, quando já se começam a ver algumas luzes de esperança ao longe, no horizonte: "Não é uma desgraça, é bastante complicado e vai implicar alguns sacrifícios, mas vamos conseguir reerguer-nos, como sempre temos conseguido fazer ao longo da nossa história"..A nível pessoal, reconhece que o estado de emergência e o consequente confinamento em casa não o incomodou muito: "Sou, por natureza, um solitário a trabalhar, portanto, em termos de rotinas, esta situação não me afetou tanto como a outras pessoas. Em relação a trabalho estou como peixe na água, até porque estou a acabar o meu livro e precisava de estar sozinho." O pior é o resto, o simples facto de "não poder sair à rua para beber um café", por exemplo. "É tão ridículo quanto bonito, porque aprendemos a dar o valor a estas pequenas coisas, que no nosso dia-a-dia damos como adquiridas.".Já em relação aos UHF, a incerteza do que aí vem vai fazer de 2020 um ano quase perdido, quando tudo indicava o contrário. "A meio de março, quando isto começou, já tínhamos 19 concertos confirmados e mais de 50 pedidos que entretanto ficaram pendurados", recorda. Para já mantêm-se apenas sete, quase todos marcados para o segundo semestre, como aconteceu com o espetáculo que tinha marcado para o Bataclan, em Paris, a 4 de abril, entretanto adiado para 29 de novembro. "Outros cinco espetáculos já passaram para o próximo ano e os restantes continuam por confirmar", esclarece..António Manuel Ribeiro tem entretanto matado saudades do público a bordo de uma carrinha de caixa aberta, numa iniciativa da Câmara Municipal do Seixal, que durante o mês de abril transportou alguns músicos locais pelos bairros do concelho, onde tocavam para as pessoas à janela..Depois de em 2019 terem reeditado pela primeira vez em CD grande parte do catálogo inicial da banda, incluindo o primeiro disco dos UHF, Jorge Morreu, lançado em 1979 e reeditado agora numa réplica do EP original em vinil, este seria também o ano de um novo disco de originais dos UHF, o primeiro em sete anos. Entretanto, e devido à pandemia, as gravações de Podem os Oceanos Arder? (assim se chamará o álbum) foram interrompidas.."Em mais de 40 anos de carreira nunca estive tanto tempo sem gravar. Deixámos o disco mais ou menos a meio e queremos retomar o trabalho o mais depressa possível. Vamos ver como a situação evolui e o que nos vai dizer entretanto o Governo", sustenta. Para já, a data de lançamento, "para o final de setembro", mantém-se inalterada, embora isso signifique trabalho redobrado para o grupo. "Temos de voltar aos ensaios antes de gravar, porque já estamos há muito tempo parados. E também queremos acrescentar algumas canções, que têm que ver com tudo isto que vivemos", desvenda António Manuel Ribeiro, para quem, por agora, a prioridade é continuar a cumprir com as orientações das autoridades de saúde.."Temos de o fazer, para podermos voltar a trabalhar sem restrições, mas especialmente podermos voltar a estar juntos. Para podermos voltar a abraçar-nos sem medo, que também é muito importante."