A destino trouxe Tamila Holub (nadadora) e Vladimir Zinchenko (treinador de atletismo) até Portugal, mas foi o desporto, o sol, as pessoas, a comida e a pacatez do país que os mantiveram por cá. São ucranianos de nascença e portugueses de passaporte passado. Ao DN contam como chegaram cá, porque optaram por ficar e a razão de gostarem mais de Cristiano Ronaldo do que de Andriy Shevchenko. Nem um nem outro vão muito à bola com o futebol e por isso o Portugal-Ucrânia de hoje (19.45, RTP1), no Estádio da Luz, o primeiro jogo de qualificação para o Euro 2020, passa-lhes ao lado....Vladimir Zinchenko: apaixonado por fotografia e gatos fez evoluir o peso português.Vladimir Zinchenko chegou a Portugal em 1996. Tinha acabado de se cruzar com Moniz Pereira, o malogrado responsável pelo atletismo do Sporting, nos Jogos Olímpicos de Atlanta, que o voltou a convidar para integrar a equipa leonina. Os leões apostavam forte no atletismo e precisavam de um lançador do disco que, no caso, até era recordista da Ucrânia e da ex-União Soviética. "Tinha 38 anos e achei interessante emigrar, gostava do professor e a proposta era boa. Ele disse-me 'vais um ano e depois vemos'", contou o ucraniano ao DN. E assim foi. Chegado a Lisboa, o professor começou por falar numa experiência "de dois anos", depois quatro, mais oito... e já lá vão 23. De atleta, Vladimir passou a treinador e especializou-se no treino do lançamento do peso. Hoje treina o atleta olímpico e medalha de bronze nos Europeus de Atletismo, Tsanko Arnaudov, e ainda Francisco Belo, depois de ter orientado Marco Fortes. Com Zinchenko a modalidade evoluiu e Portugal é agora visto como uma referência no lançamento do peso, mas ele não quer esse mérito: "Faço o que gosto e sinto-me recompensado.".Zinchenko foi um dos mais credenciados lançadores do disco da sua geração, contando no palmarés com duas participações olímpicas. Foi aos Jogos Olímpicos de 1992 em representação de uma equipa unificada, resultante da separação da URSS, e quatro anos depois voltaria a marcar presença nos Jogos já como atleta da Ucrânia. Além disso foi duas vezes finalista (5.º lugar) em Mundiais (1987 e 1993) e conta no currículo com quatro títulos de campeão da União Soviética e três da Ucrânia. Integrou a equipa do Sporting que na época de 1998 garantiu a subida ao Grupo A da Taça dos Campeões Europeus de Atletismo. Um feito enorme para a modalidade e para o clube de Alvalade. Foi já como leão que fez a sua melhor marca de sempre ao lançar o disco a 68,88 metros... recorde nacional da Ucrânia..Quando chegou a altura de acabar a carreira pensou em ser treinador, mas Portugal não tinha uma política desportiva que o permitisse e não havia tradição no lançamento (disco, peso, dardo...) e por isso viu-se finalmente no papel de emigrante e sem emprego! Nessa altura já estava encantado com Portugal e não quis ir embora. Recebeu convites para ir treinar para o Dubai, Qatar, "sítios com dinheiro para ganhar", mas tinha a vida "organizada em Lisboa, casa em Massamá...". É lá que vive ainda hoje com os seus quatro gatos. A mulher, Valentina Fedyushina, credenciada atleta russa do lançamento do peso, que representou a Áustria depois da separação da URSS e que é uma das maiores empresárias do atletismo a nível mundial, vive na Rússia e o filho trabalha atualmente no Panamá..Sem nada para fazer resolveu então apostar numa oficina de automóveis. "Não percebia nada de mecânica", mas confiou "em dois camaradas que sabiam o que faziam". Eram licenciados e trabalhavam como mecânicos em Portugal. Até que um dia Marco Fortes, que o conhecia desde pequeno, pediu-lhe ajuda para melhorar a sua performance no lançamento do peso. E foi assim que se tornou treinador em Portugal. E devidamente credenciado para tal: "Sabia que depois da carreira queria ser treinador e por isso fui tirar o curso de treinador de atletismo na faculdade, em Kiev.".Depois passou por mais um período de cerca de cinco anos sem treinar. Mas em 2013 "apareceu um miúdo", que ele já conhecia, com jeito para o lançamento do peso, filho de uns amigos búlgaros emigrantes em Portugal. "Queriam que o treinasse e aceitei. Ele acabou por ir para o Benfica e eu fui com ele", contou, referindo-se a Tansko Arnardov. Um atleta que desde que é treinado pelo ucraniano teve uma evolução de dois metros! Passou de 18.05, em 2013, para 21.06, em 2016. Depois apareceu Francisco Belo, que nos últimos europeus terminou em 5.º lugar..Zinchenko entretanto desfez-se da oficina e dedicou-se apenas ao treino. Hoje, com 59 anos e quase 23 em Portugal, é treinador de atletismo a tempo inteiro. É português há menos de dois anos. Nunca tinha pensado pedir a nacionalidade portuguesa, mas a mulher fartou-se de o chatear, dizia que "era mais fácil viajar com um passaporte português", e ele fez-lhe a vontade, pois nunca sentiu essa necessidade de ser português no papel: "Sou ucraniano, mas sinto-me português, gosto de Portugal e sou feliz assim.".Nasceu em Zaporizhzhya, na "zona russa" da Ucrânia, uma cidade industrial com 140 fábricas, algumas com 20 mil trabalhadores. No ano passado foi lá dez dias e sentiu-se "um estrangeiro em casa". Era tudo diferente, nada como na altura em que ele lá viveu. Hoje nem se pode dizer que fica triste com o que se passa na Ucrânia. "Estou tão distanciado emocionalmente que já quase não sinto tristeza por aquilo", confessa, explicando que gosta de "quase tudo em Portugal". As pessoas, o sol, a comida, o vinho - "não há mau vinho em Portugal e os meus amigos ucranianos e russos estão sempre a pedir" - e a pacatez de um pequeno e gracioso Portugal. Não gosta muito de futebol e evita multidões, por isso não vai nesta sexta-feira ao Estádio da Luz ver o Portugal-Ucrânia. Gosta isso sim de fotografia e atletismo. De Portugal conhece "todos os sítios com uma pista de atletismo (risos)". Há quem conheça o Douro, ele lembra-se de Espinho. Há quem vá a Fátima, ele sabe o caminho para o estádio em Pombal de cor....Tamila Holub. Da Ucrânia às danças de salão e às piscinas olímpicas.Tamila Holub chegou a Portugal em 2002. Tinha 3 anos e "parecia um floco de neve de tão fofinha que era". O pai veio primeiro para trabalhar numa fábrica, a mãe, professora, veio depois e criou uma escola para estrangeiros russos e ucranianos. Ela ficou um ano na Ucrânia com a avó materna e só depois se juntou aos pais em Braga. Nasceu em Cherkasy, a cerca de 300 quilómetros de Kiev, e não se recorda de grande coisa do sítio onde nasceu. "Só algumas memórias da minha avó. Três anos dá para pouca coisa", confessou ao DN a atleta olímpica, que está atualmente na Carolina do Norte (EUA)..Entrou na natação por causa de um problema de saúde: "Tinha problemas respiratórios e os médicos aconselharam-me a natação e realmente ajudou bastante. Tinha 6 anos. A natação passou a ser uma rotina e a minha saúde melhorou. Quando me mudei para a competição do Sp. Braga tinha uns 9 e era terrível, não tinha técnica nem muita vontade para treinar. Depois comecei a divertir-me a nadar. Primeiro com as raparigas, mais tarde para tentar ganhar aos rapazes (risos). Quando percebi que os resultados eram bons, comecei a apostar mais na natação.".Foi quando passou de cadete a infantil e conseguiu os mínimos para os campeonatos nacionais de natação que a questão da nacionalidade se levantou. Tinha um dos três melhores tempos a nível nacional, mas como não era portuguesa não podia competir na série rápida, tinha de entrar na série extra, a mais lenta, e nem podia lutar por medalhas ou por um lugar numa final. "Eu já tinha 12 anos e lembro-me de os meus pais conversarem e acharem que se calhar já era tempo de eu pedir a nacionalidade portuguesa. Engraçado, foi o desporto que me fez portuguesa", contou Tamila ao DN, que "fez questão" de retribuir nas piscinas o carinho que recebeu fora delas..Escolheu competir por Portugal e não tem palavras para descrever o sentimento de representar a bandeira nacional nos Jogos Olímpicos. Pelos documentos é portuguesa desde 2012, mas "emocionalmente há mais tempo". Apesar de os pais lhe ensinarem russo e ucraniano tomou contacto com a cultura portuguesa muito cedo. "Eu cresci em Portugal. No início não foi fácil, a adaptação custou um pouco, mas a partir de certa altura comecei a pensar é isto que eu quero, nadar e competir pelo país que me ajudou e acolheu, e me deu a possibilidade de treinar, competir, que me ajudou a crescer e ensinou aquilo que eu sei hoje. Por isso senti muito orgulho. Portugal é o meu país e foi com ele que consegui alcançar os Jogos Olímpicos.".Apesar de não querer ser "banal", Tamila não consegue fugir a um dos maiores atrativos de Portugal: "A comida é muito boa, adoro bacalhau." Tanto como das pessoas. "Agora que estou longe percebo melhor quando dizem que Portugal é um pais acolhedor. Tem o tamanho perfeito, não é um país grande, é acolhedor, quente, o tempo é espetacular, as praias são incríveis. Eu adoro a história do país, tantas lendas, tantas batalhas e monumentos que ainda podemos ver. Gosto das pessoas, só humor, do positivismo e daquela sensação de bem-estar que Portugal leva e trás", elogiou o nadadora..Tamila não pensa voltar à terra onde nasceu. A não ser de férias: "Quando eu era miúda e alguém me ofendia por motivos nacionalistas eu dizia que queria voltar, mas hoje nem penso nessa hipótese. Primeiro porque a situação politica não é minimamente estável e seria complicado sentir-me segura e estável, poder continuar a treinar e sentir que tenho um futuro num país que parece não se preocupar com os seus habitantes. Gosto da cultura ucraniana. Gosto de ir lá de férias, ainda tenho lá família. A última vez que fui de férias há quatro anos gostei de ver a harmonia entre as pessoas. Não fazia diferença se eras ucraniano ou russo, via-se uma amizade que sempre existiu entre duas culturas tão semelhantes. Por isso os últimos cinco anos deixam-me triste.".A nadadora gosta de futebol, "mas não tanto como de natação". Para ela "ainda é um pouco doloroso" perceber como as outras modalidades são ignoradas em relação ao futebol: "Isso como atleta deixa-me triste. Não trabalhamos menos do que um jogador de futebol, até diria que trabalhamos mais e é triste perceber que o nosso trabalho não é tão valorizado." Mesmo assim acompanha a seleção e "é um orgulho" ver que cresceu num sítio onde o futebol é uma coisa verdadeiramente fácil e jogada com os pés... um orgulho enorme dizer que é do país de Cristiano Ronaldo. Quanto ao jogo desta noite? "Acho que vou torcer por Portugal.".Tamila bateu dezenas de recordes nacionais ao longo dos últimos anos. Em 2016 deu a Portugal um título europeu de juniores na natação (o primeiro desde 2005), ao sagrar-se campeã continental nos 1500 metros livres, a sua prova de eleição. Já no ano passado arrecadou o 12.º lugar no Campeonato do Mundo da modalidade e deixou os responsáveis da natação portuguesa a sonhar com medalhas. Hoje é atleta olímpica e procura evoluir nas piscinas americanas. Teve cinco convites de universidades norte-americanas e escolheu a Carolina do Norte por ter "um grupo forte" para "puxarem" por ela..Fã da fundista espanhola Mireia Belmonte, Tamila adora ler e por isso quando não está na piscina vinga-se nos livros. A Pérola, de John Steinbeck, A Montanha de Água Lilás, de Luís Sepúlveda, e o Orgulho e Preconceito, de Jane Austen, são apenas alguns exemplos: "Se não estou na água nem a dormir estou escondida algures com um livro nas mãos." E se não fosse nadadora, gosta de pensar que seria uma dançarina: "Cheguei a andar nas danças de salão e danças latinas. Adoro ver as competições de dança."