A coincidência de completar 20 anos de carreira e ter um novo romance, 'Homens imprudentemente poéticos', poderia não ter acontecido pois foi um parto difícil para Valter Hugo Mãe. Di-lo abertamente nesta entrevista sobre a inimizade de dois artesãos japoneses, um texto que recomeçou dezassete vezes: "Em algumas versões já tinha passado da página 100.".O esforço valeu a pena, pois este novo romance do autor é - mais uma vez - tão diferente que o torna uma das mais importantes vozes da literatura nacional, porque foge à vulgaridade do que a maioria dos autores da geração do terceiro milénio está a apresentar. Aliás, se já o tinha conseguido com a máquina de fazer espanhóis, por exemplo; se subira um grande degrau na busca e execução do romance que tem como cenário a Islândia, A Desumanização, volta a realizar uma escrita inesperada nesta narrativa japonesa..Onde transporta o leitor de uma forma elegante e íntima para aquela parte do mundo sem o fazer passar por um voyeur de costumes. Mais, o registo encontrado para estes homens imprudentes surpreende por poder ser assinado por um escritor daquele país, tal é o modo como evita a confluência baralhada do olhar ocidental e se cinge à verdade da natureza - presença importante -, impondo-se o relato com uma reprodução de personagens que não desvirtuam as prováveis pessoas..Estranha-se bastante a linguagem, "escangalhada" por um escritor que não se quer repetir e que ao teimar nessa meta entrega um dos muito poucos bons romances portugueses deste ano..É possível o escritor estar sempre a reinventar-se?.Essa é a grande questão e o que empecilha o paraíso aos escritores, porque para mim é muito claro o que quero da vida. Poderia dizer que gostaria de ter um filho, mas o que ainda quero da vida é escrever um livro que me falte e que valha a pena. Talvez escrever um livro que de uma vez por todas me acabe e dê a sensação de que não é preciso mais nada. Isso não vai acontecer, essa é a desgraça dos escritores..Ter um filho ou um livro. Qual é que lhe faz mais falta?.Como já escrevi sete romances o que gostaria era de ter um filho. Até digo mais, sabendo hoje o que sei trocava os meus sete romances por um filho. Quem não tem romance e tem filho, tem a obrigação de ser mais feliz do que eu..Essa necessidade tornou-se mais urgente ou não é de agora?.É uma coisa de há alguns anos para cá, desde os meus 36. Até aí não tinha jeito para crianças e achava-as adoráveis à distância; não tinha paciência nem sapiência, mas hoje acho que a solidão que sinto desde sempre talvez fosse só colmatável com a existência dos filhos..Voltemos à reinvenção?....Não é possível os escritores reinventarem-se continuamente mas é possível essa ilusão, até para serem capazes de se convencerem de que há coisas novas num texto..À p. 199, o personagem diz: "É ofensivo que [a arte] nunca se baste."É a tal exigência também para o escritor deste romance?.Não é efetivamente possível imaginar que um autor possa contentar-se com o que fez, pode estar apaziguado com o livro mas satisfeito não. Aí é um autor morto..É mais fácil escrever sobre um país afastado como é o caso?.Sim, pois contribui para a impressão da reinvenção. Escrever sobre um lugar distante ajuda-me a ter a ideia de que ainda estou a escrever alguma coisa pela primeira vez, mas é mais difícil como oficina. Seria relativamente mais fácil construir uma trama bem feita mecânica e tecnicamente sobre um universo reconhecível. Mas isso seria desistir e não honesto ou aliciante..A maioria dos colegas escritores de geração não se preocupam com esse desafio. Repete-se e é óbvia?.Isso assusta-me. Se as pessoas não se surpreendessem com o meu livro eu ficaria desolado. Talvez tenha a ver com a minha avidez pela poesia, um género que não se conforma com repetições ou parecenças, antes exige universos muito definidos, únicos e irrepetíveis. É de tal maneira cruel que muitos dos bons autores são lembrados por um ou dois poemas. Ninguém quer saber da obra completa porque ele supera-se numa só linha, daí que essa escola me traga necessidade de superação. Não concebo escritores de livros de pura narração sem precisarem de emanações irregulares e insuperáveis..Vamos à oficina. Esta linguagem é estranha na sua construção e com inversão frequente da colocação tradicional das palavras. Porquê?.Parece que faço uma espécie de quebra-cabeças onde a solução também pode ser outra. Tenho a aspiração a poder renovar as expressões, o que não significa que acredite piamente na possibilidade da originalidade. É o português de toda a gente visto a partir de outra perspetiva. Lembro-me de uma expressão do Carl Sagan para o pôr-do-sol, a de que ao invés de ver o Sol a descer deveríamos observar a Terra a subir. É isso que por vezes está em causa na poeticidade da minha escrita. A desconstrução ou o inusitado da frase que mostra o mesmo mas com outro enfoque..Traduzir a frase tradicional noutra original exige um trabalho exaustivo ou sai-lhe de rompante?.O que se torna cada vez mais patológico na escrita dos meus livros tem a ver com o ambicionar de um texto espontâneo. Só que a literatura não é um fruto da natureza e não vem da árvore, tem uma dimensão técnica ou falsa. O que faço é começar o livro tantas vezes como as necessárias até à versão que parece escrita com limpidez, como se fosse um fio contínuo em vez de o livro se empecilhar e sentir-se que a linguagem ou a trama deixou de ser elegante. Ao invés de ficar a corrigir, recomeço o livro..Este também foi recomeçado?.Talvez umas dezassete vezes e em algumas versões já tinha passado da página 100..Recordo a praga que Saramago lhe lançou ao dizer que o seu livro era um "tsunami literário". Ou seja, a precisar de réplicas?.É o melhor dos elogios mas é também um pontapé no rabo porque coloca uma responsabilidade. Tenho uma fotografia muito bonita com ele, onde estou de olhos fechados e tem o seu dedo esticado a tocar-me no peito, como se indicasse o coração. Lembro-me do que dizia quando nos fizeram essa fotografia: "Nunca obedeças ao que te vão pedir e nunca sejas igual, segue sempre a tua pulsão.".Tal como o oleiro aceitava mal que o barro não tivesse vontade. Ou seja, usa vários bocados de barro?.Passei por muitas versões e o próprio jogo da importância das personagens foi-se alterando. A grande frustração era pressentir que há alguma coisa que não está evidente apesar de estarmos a escrever exatamente para que a revelação aconteça. Não sei o que está obscuro, mas sei que está ali e que alguma coisa se vai poder apreender através do meu texto. É como se houvesse um conhecimento dentro da escuridão, ao qual só posso aceder através do exercício literário. Por isso, a grande frustração da escrita está quando o pressentimento é de tal maneira retumbante mas as capacidades de escrita não nos oferecem o interruptor nem o conhecimento. E isso, na escrita, é a maior violência..Há muito de autobiográfico nas páginas deste romance?.Sim, o livro é todo ele de busca na escuridão. É curioso que a cegueira seja um dos tópicos e de alguma forma todos eles sejam cegos. Para mim, todas as personagens estão incapazes de percecionar..No entanto, uma das personagens mais fortes é a montanha....Porque me fascina muito a relação dos japoneses com as montanhas. Têm um conceito intrincado de montanha e de selvagem porque as montanhas são tendencialmente selvagens e os lugares sem a deturpação humana são lugares elevados. Há uma sacralização da elevação como algo a que o homem não tem direito porque é verdadeiramente território dos deuses, onde só o esplendor da liberdade da natureza se impõe..Na viagem que fez ao Japão sentiu o mesmo que outros portugueses, tal como Venceslau de Morais?.Estamos empobrecidos em relação à visão no que se se compara a Venceslau de Morais porque antes de chegarmos já temos muita informação e imagens. Podemos até iludir-nos com a sofisticação dessas imagens, que superam o que vamos encontrar. Mas o Japão consegue ser ainda um dos lugares que, apesar da globalização, é onde nos sentimos mais deslocados e instigados a regressar a premissas elementares da vida por sermos desafiados nas mais pequenas coisas. A nossa normalidade é distinta da deles, muitos dos seus rituais parecem bizarria e isso expõe-nos bastante. Tendemos a transformar os japoneses nos animais de um Zoológico porque os vemos como quase bichos de outra espécie..Sentiu que a imagem que tinha dos japoneses invadiu os seus próprios sonhos?.Sim, sei que um dos meus desafios era, tal como em A Desumanização, impedir o deslumbre no momento da escrita do livro. O ficar muito impressionado pela maneira de como comem, a destreza com os pauzinhos ou o mexer das mãos naquela tecnologia, onde há coisas que são do foro do circo e inesperadas. Era muito tentador explicá-las no livro e debitar todas essas coisas..Seria perder tempo?.Seria as coisas do espanto do turista, por isso precisei de me desespantar e atentar numa profundidade que se destitui do aspeto quase folclórico com que vemos a normalidade deles. Tentei simplificar a gastronomia exuberante. Não me podia render ao deslumbre..O penúltimo livro passava-se na Islândia, este no Japão. Se o próximo for em Portugal, conseguirá transcender os lugares comuns?.Espero que sim, mas posso dizer desde já que não tenho planos para voltar a Portugal no próximo livro. Está a saber muito bem esta coleção de lugares, como se estivesse a aproximar coisas num mapa-múndi falso, onde estreito os oceanos e coloco na minha vizinhança os países de que gosto como se os pudesse ver da minha janela..Como os cronistas das caravelas?.Sim, a recolha da meraviglie do mundo. Estou muito fascinado com esta possibilidade porque escrevi cinco romances que se passariam em Portugal e agora dá-me gozo que o lugar me tire o tapete debaixo dos pés. Pensar desde o interior de outras cabeças é aliciante e coloca-me em risco. Mesmo que à décima versão diga "não volto a isto, não preciso de me torturar"..Foi escrito nas Caxinas?.A maior parte foi nas Caxinas, mas teve um momento de dez dias fundamentais da organização das ideias que escrevi em Bragança. Gosto daquela quietude e do vazio..Foi propositado o estado de stress a que obriga o leitor?.É um estado de alerta, que pressente alguma coisa iminente..O título surgiu quando?.O título tem um efeito encantatório e é a contingência do livro. Só o achei na penúltima versão e estava antes em vez do lugar certo, por isso coloquei-o mais para o fim.