Trine Dyrholm: "Tenho muito medo da vida real"
Não é todos os dias que o cinema europeu nos dá um objeto com esta carga de abalo. E é precisamente um abalo que este filme provoca: Rainha de Copas lida com a perceção mais íntima dos dilemas sórdidos da culpa sexual, neste caso um desejo inexplicável no feminino.
May el-Toukhy, a realizadora, e a argumentista Maren Louise Kaehne, confrontam o espetador com o insondável na natureza humana, neste caso uma atração erótica entre uma mulher de meia-idade e o seu enteado adolescente. A complexidade do argumento é tão grande que o filme não pode ser visto apenas pelo ponto de vista de drama sobre incesto, é muito mais do que isso.
Fala do desejo sexual, do lugar da transgressão e da fronteira entre a moral e o inconsciente. Mas o que é mais arrojado é que encena este caso sem tabus nem falsos pruridos, de tal forma que a já muito "famosa" cena de sexo explícita entre a atriz Trine Dyrholm e o ator (na verdade, não adolescente) Gustav Lindh faz sentido, por muito que choque. Sejamos claros, este é filme de choque, um olhar duríssimo sobre as consequências de um trauma ético, onde não há preto e branco na questão do abuso sexual, apenas zonas cinzentas.
"Pensei muito sobre o desejo sexual desta mulher, mas, ao mesmo tempo, nunca quis verbalizar o que senti", começa por nos dizer uma muito sorridente Trine Dyrholm, vencedora de inúmeros prémios com este papelão, inclusive uma nomeação de melhor atriz nos Prémios do Cinema Europeu. "A realizadora quis que este filme ficasse em aberto para ser interpretado. Há uma cena na qual vemos a personagem a dançar e é nesse momento em que encontramos um ponto de ligação com ela. Não é preciso palavras e aí percebemos que o incesto talvez venha do passado e de algo de muito selvagem que nem ela consiga explicar. Aquela dança diz muita coisa, ela terá aberto uma porta e agora é tarde demais. Faço arte e cinema para poder contar histórias como esta, em que o que é preciso é partilhar todas as emoções do mundo, sobretudo aquelas que não podemos falar", conclui.
Trine Dyrholm, atriz que aprendemos a venerar em filmes como A Festa e A Comuna, ambos de Thomas Vinterberg ou Nico, 1988, de Suzanna Nicharielli. Aliás, se Rainha de Copas deu nas vistas no circuito dos festival tudo se deveu à aclamação em torno da atriz. De Sundance à Berlinale, era comum ouvir-se um coro de elogios. Que por certo referem a maneira corajosa como se faz à personagem, sem "defesas", um pouco como acontecia com Cate Blanchett em Diário de Um Escândalo, de Richard Eyre, outro melodrama que colocava um mulher madura no centro de um caso de envolvimento sexual com um menor. Costuma-se dizer que muitas vezes uma grande atriz pode carregar às costas o filme e a verdade é que o cliché aplica-se aqui. E Dyrholm não fica com marcas nas costas nem corcunda - eleva-se e mantém-se digníssima.
"Claro que há pessoas que não aderem ao filme mas sinto um grande envolvimento geral do público. É muito interessante perceber que Rainha de Copas toca não só mulheres como homens e pessoas de todas as idades. Esta é uma mulher muito complicada mas a maioria consegue perceber a sua dor. Não se trata de uma questão cultural e isso é muito importante. Conheci recentemente um casal na terceira idade que me deu os parabéns: eles ficaram muito envolvidos em torno do filme", revela a atriz dinamarquesa de 48 anos.
Mas se o filme é um tratado sobre o que é íntimo no desejo, não é também de subestimar as questões de intuição feminina. A dada altura, ouve-se Tainted Love, clássico dos Soft Cell, e fica a sensação que a solidão de um casamento supostamente "perfeito" pode ser a causa de uma certa repressão. Nesse aspeto, Rainha de Copas encena explicitamente recalcamentos nórdicos.
De olhos bem abertos, a "Meryl Streep dinamarquesa", como é conhecida, falou ainda do processo para criar esta complexa mulher: "Fiz este filme sem rede. Entenda-se: sem rede perante a câmara. Mas sou um atriz que gosta de estar no precipício e de estar intensa em cada momento. Prefiro deambular entre estados conscientes e inconscientes. Gosto de me colocar em situações de risco porque viver é arriscado! Tenho muito medo da vida real, por isso é bom poder fingir e imaginar outras vivências. Gosto mesmo de personagens complexas, de complexidade... Por exemplo, pergunto sempre sobre o oposto das personagens, tipo se ela é uma boa mãe, em que situação pode falhar? Aqui interpreto uma mulher que seduz o enteado, mas o que é importante é encontrar aquele momento em que a vemos de um outro modo, a sua versão mais doce... Foi muito importante para mim que ela não se tornasse um "tema" e que não fosse calculada, percebe? Gosto muito de trabalhar assim, sobretudo quando ouço o "ação" e não sei bem o que se vai acontecer!"
Com Rainha de Copas, aconteceu um dos seus grandes triunfos da carreira. Uma atriz do tamanho da vida num filme sem perversões psicologizantes...
*** Bom