Chamar ladrão de ideias e de músicas a Kurt Cobain pode não ser a melhor forma de começar uma biografia de 500 páginas como fez Charles R. Cross, mas é assim que na terceira página o autor cataloga o biografado. A partir daí tudo é atribuído ao vocalista dos Nirvana e tudo lhe é retirado, acabando por pairar como um anjo que morreu cedo de mais porque não cabia no inferno que criou na Terra. Na sua autobiografia, Elton John escapa ao retrato perfeito que poderiam fazer de si e começa estas 350 páginas de uma montanha-russa de altos e baixos na carreira a dizer que no início "não parecia uma estrela pop" porque tinha um nome foleiro e vestia-se mal. A Leonardo Cohen quase tudo é perdoado e se usado contra si só o engrandece. A David Bowie coube uma espécie de novela gráfica em que os autores começam por dizer a cansada frase sobre o cantor: "Bowie foi um mestre do artifício e do disfarce.".De tão diferentes, o lançamento de quatro biografias quase em simultâneo a pensar nas prendas de Natal poderia ser um desastre comercial, mas os leitores perdoam tudo aos ídolos mortos e apreciam saber como foram essas vidas. Até porque, apesar de serem personalidades muito diferentes, qualquer um destes deuses ressuscitados para o Natal podem interessar a um único leitor - por fazerem parte de uma mesma época analógica.. Kurt Cobain: o jovem que não teve muito tempo para viver.A Biografia Definitiva de Kurt Cobain tem por título Mais Pesado do Que o Céu. O autor, Charles R. Cross, não se poupou a recriar o mundo pop - grunge, no caso - em todo o seu esplendor que os Nirvana criaram. A tríade drogas, sexo e música enchem as páginas do livro que revela passo a passo a vida de Kurt Cobain. É rara a página onde não há droga e qualquer pretexto serve para trazer o tema à baila: "O médico que acompanhava o tratamento de Kurt, Robert Freemont, foi encontrado morto. O filho afirmou tratar-se de um suicídio por overdose e que o pai se viciara de novo em drogas." Uma página depois: "Doze horas mais tarde, estava deitado no chão da casa de banho do quarto de hotel, a sofrer nova overdose." Segunda página depois: "[Kurt] respondeu: 'Estou todo janado.'".Quanto a sexo? Ao contrário do que seria de esperar, o biógrafo não é muito explícito sobre essa parte da vida do vocalista dos Nirvana, passando a maior parte do tempo em preliminares. Basta ver que entre conhecer Courtney Love na p. 257, ficar seduzido e irem para a cama é preciso chegar à p. 284. A grande revelação é que o cantor era quase virgem em relações mais íntimas e até disse a Courtney Love que se podia contar os seus casos amorosos pelos dedos das mãos..Música? Após a imensidão dos dramas psiquiátricos de Kurt Cobain, é a música o que de mais há nesta biografia. É muito curioso perceber os princípios de Cobain e da banda, e mais ainda observar a trajetória relâmpago que os Nirvana têm, até o músico dar tudo por terminado. Com o aproximar-se do fim, a biografia enquadra o que mais foi explorado no pós-Kurt Cobain: o suicídio. Cross recupera o lado intelectual de Cobain e mostra a carta de suicídio, onde este dizia: "Como Hamlet, tenho de escolher entre a vida e a morte. Eu escolho a morte." A nota de partida é introduzida no texto de uma forma emocionada: "Apertada na mão esquerda, rígida e fria, Kurt tinha uma carta com três páginas." O suicídio é bem relatado, de forma dura e fria, aproveitando para enquadrar a família..Após terminar a biografia original, Charles R. Cross acrescenta a pequena história sobre este livro, que foi publicado em setembro de 2001 para coincidir com o décimo aniversário do lançamento do álbum Nevermind. No entanto, o atentado do 11 de Setembro às Torres Gémeas eclipsou a biografia e inclui até o testemunho de alguém que estava no World Trade Center a ler o volume e ao aperceber-se do que estava a acontecer "largou o livro e fugiu"..Mais Pesado do Que o Céu é a grande biografia deste Natal, afinal Kurt Cobain é um símbolo de um fim de época e, mesmo que o facto de ter disparado uma bala a si próprio impeça um final feliz, também ninguém augurava um outro fim para o cantor. Fez jus a todos os da sua espécie que subiram aos palcos e gravaram discos, deram cabo de si como protagonistas de um romance trágico bem escrito. A leitura faz-se, aliás, como se estivesse a ler um romance. Sabia-se o fim, mas faltavam os pormenores, e os leitores agradecem as 400 entrevistas que o autor fez para escrever este livro e esta narrativa.. Citação: "Kurt viveu num mundo analógico, um mundo de suportes analógicos e físicos, marcado, no seu caso, por uma situação quase constante de pobreza. A renda em Olympia era de 137,50 dólares, que ele raramente conseguia pagar a tempo. Ainda assim, o mundo pré-digital das compilações em cassete, dos videogravadores VHS e dos jogos de tabuleiro em segunda mão encontrados em vendas de garagem (muito antes do eBay) foi o ideal para a criatividade artística do Kurt. Inspirou-o a criar arte (pinturas e desenhos) e a escrever canções. Só quando se tornou famoso e teve dinheiro para gastar, nos últimosd dois anos de vida, é que se deu ao luxo de pedir às pessoas que trabalhavam para ele para procurarem modelos anatómicos transparentes e os estranhos globos terrestres que colecionava.". Mais Pesado do Que o Céu, por Charles R. Cross, Pim! Edições.Elton John: o geniozinho deslumbrado que se tornou muito certinho.Se o autor da biografia de Kurt Cobain acha que droga vende livros, Elton John não lhe fica atrás na autobiografia que publicou recentemente. Aliás, o também recente filme biográfico do cantor - Rocket Man - já se abastecia bastante dessas substâncias para ilustrar uma vida que todos os seus fãs bem conheciam, portanto não se estranha. Aliás, bastava ter acompanhado a sua carreira desde que houve ecos em Portugal para se perceber que quem usava aqueles óculos e roupas inexplicáveis teria um grande futuro no show business..No caso desta autobiografia, Eu Elton John, o slogan "sexo, drogas e 'rock'n'roll" cai mesmo bem. Elton apimenta a narrativa com muito sexo, seja com a "esposa" inicial seja com amantes homens, pois acaba nas mãos de um marido dedicado; também se intoxicou a todo o custo mas não chegou à suprema overdose, não deixou de tentar o suicídio, apesar de não o ter consumado....O que o distingue de Kurt Cobain é ser certinho, ter aprendido a vestir-se de forma espalhafatosa, não lavar o cabelo apenas uma vez por semana e com sabão em barra mas usar implantes, ser compositor de baladas românticas e ter sido a verdadeira estrela do funeral de Lady Di na cerimónia da igreja através de um dos seus maiores sucessos, Candle in the Wind, composto em honra de Marilyn Monroe..Para os leitores portugueses, Elton John tem dois momentos avessos: ter vindo ao festival de Vilar de Mouros em 1971 quando as vedetas pop desconheciam este país e ter deixado a plateia do Casino Estoril frustrada porque meteu-se no avião à última hora e foi resolver questões conjugais. Mas Portugal não conta assim tanto para Elton John, mesmo que esta autobiografia possa contribuir para se conhecer o Sir e alegrar os tempos livres até ao fim de ano. Afinal, a profusão de histórias que o cantor conta em centenas de páginas não deixa nenhum fã desinteressado. Mesmo que certas inconfidências sejam apenas para afagar o ego..Entre as histórias divertidas está a de ter apresentado Elvis Presley à sua mãe: "Fazia sentido, a minha mãe tinha-me apresentado a música do Elvis e agora eu ia apresentá-la ao próprio Elvis." Elton gasta uma página a desenvolver o tema, começando por descrever a decrepitude do Rei do Rock - "Algo de muito mau se passava com ele. Estava gordo, cinzento e a suar. Os olhos eram dois buracos negros sem expressão. Escorria-lhe pela testa um fio de tinta preta do cabelo" - e aproveitando para dar razão à mãe: "Não lhe dou mais do que um ano - disse ela ao sair do camarim. E tinha razão.".Eu Elton John tem várias virtudes, designadamente uma boa ilustração do panorama musical da época. O olhar de Elton percorre o fim de um mundo que os Beatles mudaram por inteiro, as suas primeiras experiências enquanto pianista, os primeiros concertos e até uma aparição no famoso The Cavern em Hamburgo (onde John, Paul, George e Ringo se tinham transformado definitivamente no que foram); depois mostra esse novo mundo através da sua própria progressão, fazendo que os fãs do Elton John dos seus melhores álbuns, os iniciais, fiquem satisfeitos. A descrição de Honky Chateau ou de Madman Across the Water faz pensar que as frivolidades posteriores não faziam falta, mas o inglês não tem a fibra de Bob Dylan H de quem muito fala - e não se lhe pode pedir mais. Há um bom momento formativo do cantor quando diz: "Comecei a preocupar-me mais com a minha imagem em palco. Queria ser um frontman, mas estava preso atrás de um piano. Não podia pavonear-me como o Mick Jagger nem destruir o meu instrumento como o Jimi Hendrix ou o Pete Townshend.".Para os que apreciam a parceria entre Elton e Bernie Taupin, há um certo desgosto ao saber a facilidade como compunham canções que pareciam mais hinos gloriosos do que fast-music: "O Bernie escreveu a letra de Your Song numa manhã enquanto tomava o pequeno-almoço e depois de me passar o papel para as mãos demorei quinze minutos a escrever a música.".Noutro registo, o que Elton prefere para esta autobiografia, há um longo desfile de curiosidades: quando apresentou a Rainha Mãe à avó, o frustrado casamento com Renate, o saber de uma doença chamada sida, pôr a tocar Don't Give Up de Peter Gabriel e Kate Bush e chorar, ou o lado místico: "Houve alturas em que foi difícil não achar que a vida me estava a dar uma palmadinhas nas costas por ter alcançado a sobriedade...". Citação: "Um ano depois da morte do John, recebi um telefonema da Yoko. Disse-me que precisava de falar comigo, que era urgente, que eu tinha de ir imediatamente a Nova Iorque. Meti-me logo num avião. Não fazia ideia do que se tratava, mas a Yoko parecia desesperada. Quando cheguei ao edifício Dakota ela disse-me que tinha encontrado um monte de cassetes com músicas inacabadas que o John estava a compor antes de morrer. Perguntou-me se eu podia acabá-las para as incluir num disco póstumo. Senti-me lisonjeado, mas não queria fazê-lo. Era muito cedo; não era a altura certa. A ideia apavorava-me. Tentar terminar músicas que o John Lennon começara - eu nunca seria presunçoso a esse ponto.". Eu Elton John, por Elton John. Porto Editora.Leonard Cohen: não se pode falar mal deste bardo, essa é a verdade.Se nas autobiografias se aguarda pela revelação de pormenores - alguns escabrosos, se possível -, nas biografias o registo depende da figura retratada. Ora se para Elton John tudo o que estiver escrito é pouco, já para Leonard Cohen o reflexo do espelho deve ser mais cuidadoso, afinal o leitor quer envolver-se com esta figura outsider da pop, um cantor/poeta que se apresenta de fato e gravata e atravessa gerações de forma impune. Sobre a roupa, a biógrafa Sylvie Simmons esclarece logo: "Eu nasci de fato completo." A autora segue o figurino correto deste género de livros; vai à procura das origens e, cronologicamente, percorre a vida do biografado desde o táxi que transporta mãe e filho para casa. Talvez por ter "nascido de fato completo", o texto explica que "poucos vizinhos podiam ombrear no estatuto com os Cohen", dando assim a perceber como iria ser o bardo décadas depois de lançar Let Us Compare Mythologies em 1956 (com uma edição de 500 exemplares) e logo ser olhado como um fenómeno..Um dos pontos altos da biografia é a parte das musas, principalmente a que inspira uma das suas declarações de amor mais importantes, a da canção So Long, Marianne do álbum Songs from a Room. Se a paixão pela sueca, complexa e conturbada, é reinventada amiúde e noutros moldes noutras mulheres que entraram na vida de Leonard Cohen, a autora também não deixa de revelar os problemas que existiam na sua personalidade: "É tentador sugerir que Leonard Cohen sofria de um transtorno maníaco-depressivo.".A tríade de sexo, drogas e música incorpora-se também na biografia de Cohen a 100%, não faltando à autora ótimos cenários de relações amorosas intempestivas, do drogado desesperado e do compositor sério. Não se pode dizer que este livro seja imparcial, basta ler o último parágrafo. No entanto, nada fica por dizer sobre Leonard Cohen.. Citação: "Leonard não era um adolescente. É bem possível que nunca tenha chegado a ser um adolescente. As suas canções, assim como a sua poesia, eram obra de um homem maduro. As suas letras eram sofisticadas e as melodias despidas de adornos excessivos, o que dava aos seus versos espaço para respirar e reverberar. Cantava sem arrebiques e os seus gostos em matéria de produção, tal como em quase tudo o resto, eram austeros e discretos. À parte darem por si como os dois últimos convivas numa festa de casais, é difícil imaginar em que circunstâncias Leonard e Phil Spector alguma vez poderiam acabar na cama um com o outro, em termos musicais. Porém, graças aos bons ofícios de Marty Machat, assim aconteceu.". I'm Your Man: A Vida de Leonard Cohen, por Sylvie Simmons. Editora Tinta da China.David Bowie: o cantor que se deixou marcar pelos Velvet Underground.Bowie - Uma Biografia é para jovens e o tom dessa relação com o leitor surge logo ao início. Se o leitor é adulto e for ao engano não perde tudo, porque os autores são muito didáticos e fazem uma lista infindável das várias personalidades que David Bowie possuía, incluindo mesmo certos ângulos da sua vida num linguajar inesperado. Como era o seu fascínio sobre a banda Velvet Undergroud, da qual Bowie diz: "Era rock puro e duro, que falava dos marginalizados, drogados, homossexuais e prostitutas", e que nunca deixou de ser uma inspiração e uma chave para ir mais além na sua carreira..Mais uma vez, nenhuma destas quatro biografias escapa à palavra de ordem do tempo em que estes ídolos tiveram importância: sexo, drogas e 'rock'n'roll'. A vida de Bowie teve muito disso, sexo, homossexualidade, cocaína, experiências musicais, sedução pelo suicídio, bastantes viagens espirituais - até Marte também -, maquilhagens e transformação. No final, fica-se sem saber se o público-alvo desta biografia é mesmo o dos teenagers ou os adultos em crescimento.. Citação: "Disposto a enriquecer a minha faceta de ator, aceitei um importante papel teatral. A minha máscara seguinte foi a de John Merrick, o homem elefante, e o palco, a Broadway. O contexto de Merrick era fascinante e foi ao ver o seu crânio exposto na Universidade de Londres que percebi como abordar o papel. Os meus colegas do elenco esperavam ver chegar aos ensaios uma estrela de rock contratada como publicidade, mas bastaram algumas representações para os convencer de que a marca Bowie encerrava um artista completo, que não era em vão que andava a trabalhar há muitos anos. As críticas foram excelentes e os próprios atores que tinham desconfiado de mim tratavam-me agora como igual.". Bowie - Uma Biografia, por María Hesse e Fran Ruiz. Editora Suma de Letras