Travão a fundo no Erasmus. Menos 71% dos alunos do superior foram estudar para fora

Saíram 1509 estudantes portugueses para fazer o Erasmus+ no estrangeiro. No ano passado foram 5192. A proporção é idêntica em relação aos alunos estrangeiros que vêm para Portugal.
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Hugo Manique, licenciado em Engenharia de Telecomunicações e Informática, estava em Erasmus na Roménia, em Iasi, quando rebentou a pandemia, em março. Decidiu ficar porque a situação parecia-lhe mais preocupante em Portugal, o que se inverteu dois meses depois. Regressou a Portugal no início de junho., concluiu o Erasmus e o curso online. Ainda assim, voltaria a candidatar-se a este programa de mobilidade mesmo agora. "Foi a melhor experiência da minha vida."

Mas a verdade é que, com a pandemia, baixou significativamente o número de estudantes do ensino superior que deixaram Portugal ao abrigo do programa Erasmus+, a atual designação. No primeiro semestre deste ano letivo, saíram 1509 portugueses, contra 5192 em igual período do ano passado, uma redução de 71%.

"Reflete as mobilidades reais, comparando o primeiro semestre deste ano com o do ano passado. Haverá um novo período de mobilidade no segundo semestre", esclarece ao DN o departamento de comunicação da Agência Nacional Erasmus.

Outros organismos indicam que foi idêntica a redução dos estudantes estrangeiros que procuram Portugal. A Erasmus Student Network (ESN) de Lisboa, associação que apoia os estudantes em mobilidade, vendeu 500 cartões neste ano. Já tinham vendido 1500 em 2019. Os estudantes estrangeiros escolhem maioritariamente Lisboa e Porto, seguindo-se Coimbra.

"Estes dados foram apurados através da nossa plataforma de gestão interna e pela venda do nosso cartão de associado, o ESNcard, que oferece variados descontos e ofertas aos estudantes internacionais", esclarece Rita Dias, a presidente da ESN Lisboa. Acrescenta: "Pelo nosso contacto e cooperação frequente com as universidades, concluímos que muitos dos estudantes optaram por mudar a mobilidade para o segundo semestre de 2020-2021. Este semestre, que normalmente tem um menor número de participantes, à partida, terá mais."

Raul Santos, diretor de comunicação da Universidade do Porto (UP), aponta proporções idênticas. "Neste ano, a mobilização é de um terço comparativamente com o primeiro semestre do ano letivo passado. Está em linha com o que se passa na Europa, obviamente com algumas variações entre países."

No primeiro semestre de 2020-2021, a UP recebeu 537 alunos estrangeiros, quando em igual período de 2019-20202 eram 1500. E os portugueses que decidiram estudar lá fora passaram de 992 para 322. Muitos já se tinham inscrito antes dos primeiros casos da doença em Portugal, só que grande parte desistiu.

Circulam menos alunos ao abrigo do Erasmus+, mas os que o fazem optam pelos mesmos países, independentemente dos casos de SARS-CoV-2 no destino. Portugal recebe sobretudo nacionais de Espanha, França e Itália, mas também da Alemanha e da Polónia. Escolhas em muito idênticas aos destinos dos portugueses: Espanha, Itália e Polónia.

Hugo Manique tem 21 anos, é da Figueira da Foz e tirou o curso de Engenharia das Telecomunicações e Informática no Instituto de Ciências do Trabalho e Empresa, em Lisboa. Atualmente faz um estágio remunerado de um ano numa empresa em Lisboa, onde já tinha estagiado nas férias estudantis.

Fez o último ano do curso na Roménia ao abrigo do Erasmus+. Ficou colocado em Isai, uma cidade pequena, mas suficientemente perto da capital romena, Bucareste, e de outras capitais europeias para visitar. Iniciou o programa Erasmus no primeiro semestre de 2019-2020, que se estendeu ao segundo semestre por proposta da universidade para concluir o projeto que desenvolvera, e estava radiante com a experiência - sem imaginar que tudo ia mudar.

Começaram a surgir os primeiros casos da covid-19 e a Roménia decretou restrições quase ao mesmo tempo que Portugal. Hugo lembra-se de que no seu aniversário, a 15 de março, já estava tudo fechado.

Eram cem estudantes Erasmus a viver na sua residência, onde estavam outros sete portugueses, que diminuíram para dois no segundo semestre. As aulas foram suspensas em março, para serem retomadas nos finais de abril, apenas online. Ele e outro português foram ficando, "até porque a situação na Roménia era melhor do que em Portugal".

Em maio, a situação agravou-se na Roménia. Os dois jovens perceberam que "não se faziam testes e que um quarto dos infetados eram médicos".

"Decidimos regressar, conseguimos marcar um voo de Bucareste para Portugal na última semana de maio, regressamos no início de junho. Tivemos de apanhar um comboio de Isai. Supostamente estavam proibidas as deslocações, mas ninguém nos perguntou nada. E, no aeroporto, foi o único voo que saiu naquele dia", recorda Hugo Manique. Continuou com as aulas online em Portugal e fez os exames finais pela mesma via.

Segundo a Agência Nacional Erasmus, houve quem tivesse concluído os estudos, no país de destino ou via online , e esses receberam a bolsa de estudo na totalidade. Mas também houve quem iniciasse a mobilidade e desistisse de a realizar ou a atividade foi cancelada pela entidade de acolhimento, tendo o participante direito ao reembolso das despesas (viagem e alojamento). Os que não tiveram aproveitamento não recebem qualquer valor.

"A Agência encontra-se a analisar os vários pedidos de força maior que foram chegando e que continuam a chegar das instituições de ensino superior", esclarecem.

Apesar de todos os constrangimentos, Hugo Manique não tem dúvida de que iria para Erasmus apesar do aumento de casos da covid-19. "Nem hesitava. O segundo semestre foi claramente afetado devido à pandemia, mas, até agora, foi a melhor experiência da minha vida. Ir para um país onde não conhecia ninguém, em que todos os contactos eram com estrangeiros, com outras culturas, é uma experiência única. Tive conexões que nunca pensei ter na minha vida, aprendi muito."

Muitos estudantes acabaram por não sair neste semestre, adiando a experiência ou desistindo mesmo de a fazer. "Os estudantes que tinham essa intenção ficaram muito reticentes com a perspetiva de uma segunda vaga, atendendo também às restrições em cada país, tudo isso acabou por afetar a mobilidade", justifica Sílvia Carneiro, vice-presidente da Associação de Estudantes da Faculdade de Letras da UP, responsável pelo programa Budy FLUP, de apoio à integração dos estudantes estrangeiros.

A Faculdade de Letras tem sido a principal recetora de estudantes estrangeiros da UP. Neste ano recebeu 95 alunos contra os 300 de 2019. "O departamento de relações internacionais da FLUP está a tentar que tenham essa oportunidade no segundo semestre de 2020-2021, até porque as vagas não preenchidas neste semestre passam para o próximo", explica. Quem partiu continua a preferir Espanha, Itália, Alemanha, Polónia e Republica Checa.

O panorama é idêntico na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. "Saíram muito menos estudantes, não fazia muito sentido ir para o estrangeiro para ter aulas por Zoom", defende Sara Gonçalves, da direção da associação de estudantes. "Os que fazem o programa continuam a preferir Espanha, que é o país número um de destino. Os estrangeiros que vieram também são muito menos, maioritariamente franceses e italianos, alguns espanhóis e também ingleses."

Sofia Oliveira, 20 anos, é estudante de Línguas e Relações Internacionais na Faculdade de Letras na UP, neste ano era a última oportunidade para ir fazer Erasmus. Inscreveu-se no início de 2020 para a Eslováquia. "Está na Europa Central e a cidade onde ia ficar - Banska Bystrica, no centro do país - dava-me a oportunidade de viajar, tem um custo de vida mais acessível e as aulas eram em inglês. Fica muito perto da capital, Bratislava, e das capitais europeias como Viena, Budapeste, Praga e Zagreb."

Viajou com uma colega de curso e encontrou na Eslováquia uma estudante de Gestão de Lisboa. Veio a pandemia e, com ela, uma grande ansiedade.

"Medo das coisas não melhorarem e ter de ficar em Portugal, mas no verão a situação ficou mais calma do ponto de vista epidemiológico. Eu e a minha família considerámos que era positivo vir à mesma para a Eslováquia, mas se a situação se agravasse, eu estaria pronta a regressar. Seria sempre uma experiência diferente", conta Sofia.

Chegou à Eslováquia a 9 de setembro. "Obviamente" que não foi recebida com uma megafesta, houve apenas algumas atividades de pequena dimensão.

Na altura, não havia casos ativos na cidade eslovaca que a recebeu. "Fazíamos a nossa vida com menos preocupação, os alunos podiam estar uns com os outros, sair livremente." Entretanto, as coisas mudaram significativamente. O número de casos tem vindo a aumentar, com uma média de 2000 diários. A Eslováquia, que tem sensivelmente metade da população portuguesa, obrigou ao uso da máscara em todo o lado, limitou os ajuntamentos, fechou restaurantes e bares, apenas permitindo o takeaway e os que têm esplanadas, entre outras medidas.

Sofia Oliveira vive numa residência com outros 30 estudantes - eram cem em anos anteriores. "Apesar de todas as restrições, acabamos por estar juntos, partilhamos a cozinha, temos convívios, embora mantendo as distâncias. Acredito que esteja a ser mais difícil para colegas que foram para outras cidades", explica. Não há registo de infetados entre Erasmus na sua cidade.

O combate à propagação do vírus na Eslováquia é diferente de Portugal. Sofia fez o teste à presença do SARS-CoV-2 antes de viajar para o país, esteve cinco dias de quarentena e fez novo teste. Voltou a dar negativo e pôde ir finalmente para a residência. Sempre que há dúvidas sobre a possibilidade de infeção com o SARS-CoV-2 fazem testes serológicos, que são de fácil acesso e custam 17 euros. Neste fim de semana, vão testar toda a população.

"A universidade enviou toda a informação sobre como devemos agir em caso de suspeita, todos os contactos são com o nosso coordenador de Erasmus. Um colega comprou um pack de testes serológicos para todos, para não sairmos e estar em ajuntamentos", explica Sofia.

Começou o ano letivo em regime misto (aulas presenciais e à distância), que passaram todas a ser online há duas semanas. Ainda assim, não pensa regressar. É o seu desejo, apoiado pela família em Portugal, uma irmã mais nova e os pais. "Sentimos que aqui estou mais segura, uma vez que não me desloco para as aulas. Se estivesse em Portugal, teria de sair de casa, ainda por cima com tantos casos na Universidade do Porto. Aqui, os meus contactos resumem-se aos estudantes de Erasmus, não há festas, não ando em transportes e, se ficar infetada, não corro o risco de infetar a minha família, que seria sempre a minha preocupação. Sinto que a possibilidade de contágio é mais diminuta, mas a situação está muito complicada, temos de ter cuidado."

DestaquedestaqueInfetados na Universidade do Porto subiram para 268.

Raul Santos sublinha que os estudantes Erasmus infetados na UP apanharam o novo coronavírus fora das suas faculdades, em convívios e nas habitações que partilham. Acrescenta que os espaços estão limitados, as distâncias estão a ser cumpridas e as aulas estão a decorrer num sistema misto, presenciais e online, privilegiando-se o ensino à distância sempre que possível, Somam 268 alunos da universidade infetados, entre eles 110 de Erasmus. Na segunda-feira foi encerrado um dos bares na Faculdade de Medicina, que estava concessionado, por uma funcionária ter testado positivo à presença do novo coronavírus.

Os exames são em janeiro e, se forem online, Sofia Oliveira pensa regressar a Portugal pelo Natal. "A situação é muito incerta, está sempre a mudar. Quando cheguei, não havia pessoas com máscara, não havia restrições severas, pareciam menos preocupadas do que em Portugal. Agora noto o contrário."

Não está a viver as emoções que os colegas de anos anteriores lhe transmitiram, as que sonhou quando entrou para a universidade, já com a perspetiva de fazer Erasmus. "Sabia perfeitamente que a minha experiência de Erasmus nunca seria a que toda a gente falava. A minha perspetiva foi sempre pensar que tenho muita sorte. Estamos a viver uma pandemia e, ainda assim, estou a fazer a experiência. O facto de estar sozinha noutro país, numa cultura diferente e a viver com pessoas de outras nacionalidades, ter um outro conhecimento, é sempre um privilégio. E também estou preparada para ir embora se for necessário."

Também em Portugal as atividades de receção aos erasmus foram canceladas. Sílvia Carneiro diz que estão a tentar fazer iniciativas online: "Estamos a tentar que possa haver troca de experiências, mesmo à distância. O intercâmbio acaba por ser muito mais reduzido, há intercâmbio entre os alunos de Erasmus, mas menos com os portugueses. Com o sistema de aulas misto, passam menos tempo na faculdade e o contacto entre eles é muito menor."

Sílvia sente que os estrangeiros têm muitas dúvidas, muita falta de informação, sobretudo porque as regras mudam rapidamente. "Tentamos traduzir mais rapidamente essas informações. Claro que os tentamos sensibilizar para os cuidados que devem ter, agora o que fazem fora da universidade já não é nossa competência."

E faz sentido manter o programa em pandemia? Sílvia defende que sim. "Temos de continuar com a nossa vida, é de extrema importância para os estudantes, é a oportunidade de uma vida."

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