Transumâncias e realidade

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Uma das discussões recorrentes no espaço público é a da ida e vinda de pessoas do setor público para o privado e vice-versa.

Ninguém negará que há situações verdadeiramente escandalosas e que, no limite, são responsáveis pela degradação de um debate que se quer equilibrado e sério. Ver um ministro, um secretário de Estado ou um qualquer outro responsável político ou alto dirigente da administração pública passar, de um dia para o outro, do governo para uma empresa privada com que ontem negociou é uma situação impensável e em que qualquer democracia digna do seu nome deve ser proibida e punida. Mas reconheça-se que, graças a um maior escrutínio por parte da opinião pública e consciencialização da comunidade, são situações, hoje, mais raras.

Claro que podemos fingir, como tanta gente que escreve e fala destes assuntos, que vivemos num país enorme, com mercados gigantes, com imensas grandes empresas e com uma multidão de excelentes quadros. Mas, lamento informar, isso não é verdade: somos um país pequeno, com mercados também pequenos, com poucas grandes empresas e pouca gente.

Bem sei que dá muitos cliques e popularidade gritar que os ministros quando saem vão sempre para as mesmas empresas, que vêm, muitas vezes, das mesmas empresas para o governo e que isto é tudo uma grande vigarice. Só que se esquece - ou se faz de esquecido - que estranho seria que alguém que chegou a ministro não tivesse capacidade para gerir ou ser consultor de uma grande empresa ou, tendo sido gestor de uma grande empresa, não tivesse habilitações para ser ministro. Deve um ministro quando sai do governo deixar de trabalhar ou tornar-se obrigatoriamente empresário ou trabalhador de uma empresa de vão de escada? E, lá está, num mercado com poucas grandes empresas e com pouca gente muito qualificada é normal que isso aconteça. Claro que se pode querer que as únicas pessoas que possam aceder a cargos políticos sejam professores universitários (curiosamente, dos que mais falam de uma suposta permanente transumância entre público e privado) ou profissionais da política.

Sendo curioso que os que mais se revoltam com as tais idas e vindas são os que criticam (e, muitas vezes, bem) os profissionais da política absolutamente dependentes dos seus partidos para sobreviver. Gente que vive nos partidos e que está dependente dos empregos que as direções partidárias arranjam, na máquina do Estado ou em estruturas estatais aparentadas, para os seus militantes. Isto de sol na eira e chuva no nabal é complicado.

A pequenez do nosso mercado interno tem, claro, muitas outras consequências. Nós somos o país em que os mercados mais relevantes vivem em situações de duopólio, oligopólio ou com um operador muito dominante. Em que as empresas de distribuição, por exemplo, de tão poucas, controlam totalmente muitos produtores (da próxima vez que comprar uma marca própria no supermercado onde normalmente vai, lembre-se que está a ajudar a destruir os produtores, a passar as margens de quem produz para quem apenas medeia). E, claro, se temos mercados pequenos e se dentro deles os operadores se vão concentrando menos funcionam todos os outros, seja o dos recursos humanos, quer os que dependem dos mercados principais.

Aliás, não é de espantar que em mercados como os da eletricidade ou das telecomunicações as pessoas que estão nas entidades reguladoras sejam originárias das empresas que agora regulam. É uma situação anómala? Talvez, mas quem percebe neste país do mercado da eletricidade que não tenha trabalhado na EDP ou quem percebe de telecomunicações que não tenha tido uma ligação à antiga PT?

Neste momento já não faz sentido pedir a retirada do Estado da economia. É verdade que se cometeram crimes como a privatização da REN, mas nas grandes privatizações apenas é criticável o facto de não terem sido verdadeiras privatizações mas nacionalizações por parte de Estados estrangeiros.

Deve-se pedir mais colaboração nos procedimentos administrativos, licenças e demais burocracia para que o Estado não seja um entrave mas sim uma entidade que ajude à dinamização económica. Sobretudo deve-se exigir mais e melhor regulação e regras absolutamente claras na circulação de pessoas entre o público e o privado.

Os mercados mais pequenos exigem uma regulação muito mais apertada, forte e atenta do que os grandes. Como Portugal é bom exemplo, é fácil chegarmos a monopólios, oligopólios e abusos de posições dominantes. No mesmo sentido, a existência de regras simples, claras, isentas de demagogia é fundamental. É sobretudo crucial que os políticos não caiam sistematicamente no populismo fácil que estas questões sempre despertam: dão popularidade e ajudam a preencher a agenda.

O escrutínio público é necessário e tem sido até aqui um instrumento importante para a deteção de abusos. O problema é que, com a profunda crise que vive a comunicação social, corremos o risco de o ver reduzido e, pior, ser substituído por terroristas de teclado e gente que não se importa de trocar valores por popularidade. Ou seja, em vez de termos escrutínio, termos caça às bruxas.

No entanto, como em tudo, as normas e o escrutínio são muito importantes, mas se não houver decência e sentido de comunidade poucas coisas resultam.

A realidade é aquilo que é e não aquilo que gostávamos que fosse. O primeiro passo para não se evoluir e não fazer as transformações necessárias é fingirmos que somos aquilo que não somos e que, por razões que nos ultrapassam, nunca seremos.

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