Três anos depois de iniciar os trabalhos, a Comissão Eventual para o Reforço da Transparência fechou nesta semana as votações, com um saldo bem diferente das propostas que estavam em cima da mesa: o impedimento aos deputados advogados de exercer em sociedades que trabalhem para o Estado ficou pelo caminho; a mesma proibição para os profissionais liberais ficou pelo caminho; a interdição total de acumulação de funções em sociedades financeiras ficou pelo caminho; a obrigação de os lobistas revelarem que interesses representam ficou pelo caminho. Na maior parte dos casos - em todos os que se referem ao Estatuto dos Deputados -, as mudanças resultaram de propostas do PSD viabilizadas pela abstenção do PS. Um voto decisivo, de tendência contrária às propostas que os socialistas apresentaram na comissão, que iam num sentido bastante mais restritivo do que aquele que acabou por ser aprovado..Da geringonça ao Bloco Central.Os artigos da lei que foram alterados na votação na especialidades (artigo a artigo) do Estatuto dos Deputados já tinham passado na votação indiciária (de caráter indicativo), aprovados pelo voto conjunto das bancadas da esquerda - PS, BE e PCP (PSD e CDS já então votaram contra). Na última quinta-feira, eram 16.57 quando as propostas de alteração do PSD - que reabriram a possibilidade de os advogados exercerem em sociedades que trabalham para o Estado - deram entrada na comissão. Ainda seriam alteradas, verbalmente, no decorrer das votações. E, numa abstenção, desfez-se a convergência entre os partidos da geringonça, substituída por um entendimento do Bloco Central. Pedro Delgado Alves, coordenador do PS na Comissão da Transparência, defende que o apertar da malha sobre os deputados advogados fica acautelado pelo facto de os titulares de cargos políticos (logo, também os deputados) ficarem impedidos de deter mais de 10% ou uma participação superior a 50 mil euros em sociedades (uma norma que passa a abranger advogados ou arquitetos). Uma regra a que acresce o impedimento de litigarem (a título próprio) contra ou a favor do Estado. Sobre a proposta que ficou pelo caminho argumenta que "havia o risco de o regime ficar excessivamente limitado", na medida em que a inibição de trabalhar para o Estado abrangia não só o deputado mas, "por contágio", uma terceira entidade (as sociedades), que "ficaria dependente" da decisão do parlamentar. Delgado Alves admite mudanças de posição ao longo do processo, sem nunca falar em recuo. A versão final é uma proposta "equilibrada", afirma o deputado socialista, defendendo que o conjunto de novas regras (que ainda têm de passar a votação final) se traduz "numa reforma muito profunda do regime, que se esperava há cerca de 20 anos e nunca tinha acontecido"..Além do Estatuto dos Deputados, é alterado o Regime de Incompatibilidades e Impedimentos de Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos e criado um novo regime que regulamenta o lobbying. "São alterações que nos põem a par do que acontece na União Europeia e nos restantes países europeus", diz Pedro Delgado Alves, sublinhando a criação de uma declaração de rendimentos e património "única", "mais clara", com "mais entidades abrangidas". Mas também a definição de regras sobre hospitalidade e ofertas ou a introdução de Pelo PSD, Álvaro Batista assume que o objetivo da proposta de alteração foi manter aberto o espaço aos advogados e demais profissões liberais. "Com o que estava no anteprojeto, um grupo muito importante da nossa sociedade estava a ser condicionado na sua participação [no Parlamento]. Os advogados praticamente tinham de deixar de exercer as suas funções", diz o parlamentar, defendendo que a Assembleia da República deve ter "gente de todas as origens". O mesmo argumento é usado pelo CDS, também contrário a estas limitações, que o centrista António Carlos Monteiro classifica como um "erro". Não é o único - o CDS é contra a criação de uma Entidade da Transparência, um organismo novo que vai funcionar junto do Constitucional e que passará a receber e fiscalizar as declarações de património e rendimentos. E também é contrário ao Comité de Ética, outra entidade que vai surgir, neste caso no Parlamento..Para o PSD "há coisas boas e menos boas" na versão final dos diplomas. "Achamos que se foi demasiado longe no que respeita aos impedimentos e incompatibilidades", diz ao DN, apontando como exemplo que um deputado "não possa exercer funções no Conselho de Administração de uma seguradora". "Tem que haver transparência no contacto de entidades públicas com a sociedade civil e grupos de pressão, mas estabelecer limitações porque é moda... não", conclui Álvaro Batista..À esquerda, a visão é bem diferente."Estas alterações de última hora entre PS e PSD mostram que muito do essencial que era necessário fazer ficou esvaziado", diz José Manuel Pureza - "os mecanismos de influência ficam intocados". "Dissemos que a regulamentação do lobbying arriscava-se a não ser coisa nenhuma" e essa suspeita confirma-se, defende o deputado bloquista, acrescentando que o Parlamento "bem pode ter comités de Ética" - nem um nem outro destes mecanismos atuará onde estão o principal conflito de interesses, argumenta José Manuel Pureza. Para o BE, o trabalho da comissão salda-se por alguns "passos positivos, sendo o "mais importante" a Entidade da Transparência (proposta pelo BE)..Para o PCP, o balanço dos trabalhos da comissão é "muito negativo". A começar pelo "volte-face relativamente à questão das sociedades de advogados", que "representava um progresso" na medida em que impunha um "impedimentos nos negócios entre o Estado e as sociedades" que tenham deputados como advogados. Agora um parlamentar/advogado só "não pode intervir pessoalmente. Isso é facílimo". das soluções que saíram da Comissão, o PCP também é contrário quer à criação da nova Entidade da Transparência, quer à definição de uma nova Comissão Parlamentar de Ética, da qual sairá um Comité de Ética, sobre o qual António Filipe levanta dúvidas de constitucionalidade. Também no caso da regulamentação do lobbying, o PCP, tal como o Bloco de Esquerda, é totalmente contra..A nova Comissão de Transparência e Estatuto dos Deputados, que terá como missão emitir pareceres sobre conflitos de interesses e abrir inquéritos a irregularidades graves que violem o Estatuto dos Deputados. Esta comissão designará, de entre os seus membros, um Comité de Ética, que poderá determinar a retenção de uma parte dos abonos atribuídos aos deputados, proibir o visado de integrar delegações da Assembleia da República pelo prazo máximo de um ano, ou limitar o direito de acesso de um parlamentar a informação confidencial, em casos de violação de confidencialidade..Esperava mais desta comissão", diz o deputado independente Paulo Trigo Pereira. "Tendo em conta o tempo que esteve a trabalhar [desde 2016], podia não só ter-se ido mais longe como ter feito um trabalho com maior robustez", acrescenta, apontando "alguns progressos e algumas grandes desilusões"..No primeiro ponto insere-se a criação de uma declaração única de rendimentos e património, o seu alargamento a um maior número de cargos ou a criação de uma Entidade da Transparência. Nas desilusões, Trigo Pereira enumera os "recuos em relação a propostas iniciais que constavam dos anteprojetos, nomeadamente tudo o que tem a ver com as ofertas e hospitalidade: pode-se aceitar quase tudo, de toda a gente"..O que vai mudar na transparência da vida política.Registo de interesses e declaração de património.Atualmente, os deputados têm de entregar dois documentos a duas instâncias diferentes: o registo de interesses, que é entregue na Assembleia da República; e uma declaração de património e rendimentos, que fica no Tribunal Constitucional. A ser aprovada a nova legislação, passa a existir uma declaração única de rendimentos, património, incompatibilidades e impedimentos, que terá de ser entregue na Entidade para a Transparência..A obrigação de entrega deste documento abrange não só os deputados mas também um vasto leque de titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos. Presidente da República, Governo, autarcas, mas também gestores públicos, de empresas participadas pelo Estado (quando sejam designados por este) ou administradores de entidades públicas independentes. A obrigação estende-se ainda aos candidatos a Presidente da República. E aos juízes do Tribunal Constitucional, magistrados judiciais, magistrados do Ministério Público e Provedor de Justiça..A entidade fiscalizadora.Do processo legislativo em curso vai sair a criação de um novo organismo, a Entidade para a Transparência, que funcionará na esfera do Tribunal Constitucional, e à qual caberá a fiscalização das declarações de rendimentos, património e interesses..Os moldes em concreto em que funcionará este organismo, e a sua composição, serão acertados na comissão da transparência nas próximas semanas..As sanções por incumprimento.Haverá três momentos obrigatórios para entrega das declarações: aquando da tomada de posse, uma vez terminado o desempenho de funções e três anos após o término do mandato. A declaração também terá de ser atualizada sempre que houver uma alteração patrimonial num montante superior a 30 mil euros (50 salários mínimos)..Em caso de não-apresentação das declarações, se a situação se mantiver após a notificação do visado, a sanção passa pela perda de mandato, demissão ou destituição judicial, consoante os casos (ficam excecionados o Presidente da República, o primeiro-ministro e o presidente da Assembleia da República). Caso a ausência se reporte ao final do mandato ou aos três anos sobre o fim das funções, o visado ficará impedido de desempenhar qualquer cargo sujeito à apresentação da declaração por um período de um a cinco anos. Mas não só: a não-apresentação da declaração será punida como crime de desobediência qualificada, com uma pena de prisão até três anos. A mesma moldura será aplicada a quem omitir, com "intenção de os ocultar", bens patrimoniais ou rendimentos superiores a 30 mil euros..As prendas.Na versão que foi aprovada esta semana na especialidade (votação artigo a artigo), os titulares de cargos políticos ficam obrigados a declarar as prendas que recebem, mas apenas se estas tiverem um valor superior a 150 euros, caso contrário essa obrigação não existe. Uma versão diferente da que estava no anteprojeto que foi a votos, que impunha a obrigatoriedade de declaração de todas as prendas, ao estabelecer que "todas as ofertas recebidas pelos titulares de cargos políticos e pelos titulares de altos cargos públicos" durante o "desempenho das suas funções" seriam "objeto de registo pela entidade de que sejam membros" e publicitadas "no respetivo sítio da internet". Este artigo foi eliminado, por proposta do PS, com o voto dos socialistas e do PCP, o voto contrário do BE, CDS e do deputado Paulo Trigo Pereira e abstenção do PSD..Quanto ao destino a dar às ofertas de valor superior a 150 euros, caberá às respetivas entidades tomar essa decisão..Caso aceitem prendas acima daquele valor, os titulares de cargos políticos e altos cargos públicos ficam impedidos de intervir em atos, procedimentos administrativos ou contratos que envolvam a entidade que fez a oferta. Caso se trate de um cargo eletivo, quem recebe a oferta tem de declarar "interesse particular" no caso de qualquer decisão que envolva a entidade ofertante..Fora desta obrigação de declarar o que recebem, ainda que seja de valor superior a 150 euros, fica a "aceitação de ofertas, de transporte ou alojamento que ocorra no contexto das relações pessoais ou familiares". Os titulares de cargos políticos também podem aceitar convites compatíveis com a "relevância de representação própria do cargo" ou "cuja aceitação corresponde a ato de cortesia ou urbanidade institucional".