Toty Sa'Med: "Neste momento Lisboa é uma cidade muito crioula"
Chamava-se Antigamente É Que Era Doce o espetáculo que naquela noite fez de Óbidos uma espécie de quintal angolano. Toty Sa'Med e Kalaf cantavam canções dos anos 1960 e 1970. Foi em 2015. O músico dos Buraka Som Sistema viria a produzir o primeiro EP de Toty, Ingombota, então praticamente desconhecido.
Nele, o músico angolano cantou canções bem mais velhas do que a sua voz, canções de Ruy Mingas, Artur Nunes ou Bonga. No último dia, 18, subiu ao palco do EDP Cool Jazz na noite em que o festival dera carta-branca a Salvador Sobral. A voz de Amar pelos Dois escolheu-o para a primeira parte.
Antes, Joss Stone procurou-o na sua passagem por Angola com o projeto Total World Tour. E cantou com ele, em kimbundu.
Toty Sa'Med (n. 1989) conversou com o DN dias antes de voltar para Luanda. Depois da entrevista, Toty mostrou Lonjura, uma das novas músicas que está a preparar, e demorou-se nela. Foi feita a seis mãos, com Kalaf e Sara Tavares, para quem compôs Brincar de Casamento.
Na despedida, disse que Angola melhorou com a presidência de João Lourenço, que é hoje um lugar mais livre.
Toty Sa'Med faz uma previsão de 20 anos para que Angola esteja como ele a sonha. E lamenta não ser então jovem para percorrer as estradas que hoje ainda não existem.
Pode falar um pouco da casa onde cresceu e onde se ouviam coisas tão diferentes como rock psicadélico, bossa-nova ou música africana?
O meu pai viajava muito nos anos 1980, por causa de negócios que fazia cá na Europa. Como tinha um gosto musical um bocadinho diferente para a altura em Angola, ele aproveitava e comprava alguns discos de rock e de músicas do mundo nas paragens que tinha de fazer. Lembro-me de que foi mais ou menos em 1993/94 que leva para Luanda o primeiro leitor de CD. Aquela aparelhagem foi o início da minha odisseia musical. A música africana é óbvia porque estava em qualquer festa, qualquer convívio em casa, e se ouvíamos rádio estava a tocar música angolana, do Congo...
Nessa altura que relação tinha com o que ouvia?
Se calhar eu já tinha uma cabeça musical, porque lembro-me de que imitava os instrumentos menos audíveis. Cantava os baixos das músicas, os detalhes que pouca gente ouvia. Tentava procurar o que havia por trás da voz e da melodia mais percetível. Como ouvinte, o sentimento era quase o mesmo que é hoje, desde criança, desde bebé.
Bebé?
Mais ou menos 3 anos. Tenho memórias com 3 anos na sala de estar da minha casa a ouvir música aos berros.
Quando começou a fazer música de forma formal?
Faço parte de um grupo de privilegiados que tiveram um pai e uma mãe que podiam comprar um instrumento. Aos 13 anos compram-me a minha guitarra semiprofissional.
Era raro?
Sim, porque nem todo o mundo tinha a cultura de aprender o instrumento, nem dinheiro para comprar. Aprendi com base nuns livros que um tio meu tinha fotocopiado. Foi um processo lento porque foi sozinho, mas lá fui dando conta das coisas.
Como hoje se aprende no YouTube?
Sim. Aprendi com folhas. Mas esse grau de dificuldade também ajuda a perceber as coisas mais a fundo. Quando temos tudo explicado não temos necessidade de ir mais fundo.
Não teve um professor?
Não. Uma das primeiras músicas que aprendi a tocar, com um amigo, foi de uma banda portuguesa. Resistência: Não Sou o Único. Acho que quase todo o mundo da lusofonia que aprendeu a tocar guitarra deve ter passado por Não Sou o Único. Foi entre amigos que fui pescando acordes. Depois, o bar do meu pai surge como uma plataforma para me expandir com outros amigos da escola. Um amigo português que cantava fado desde os 9 anos fez comigo a primeira dupla.
Muitas vezes esse lado mais laboratorial, de experimentação, é feito de forma mais privada.
Lá é muito mais fácil sairmos para a rua num bar, numa festa de família. Muitos dos músicos em Angola começam na igreja. As igrejas evangélicas africanas têm formado muitos músicos. Senão, vêm de famílias com músicos. Eu sou um bocadinho um caso à parte.
O que tocava com a banda no bar do seu pai?
Paulo Flores, Carlos Burity, Bonga. Mas na vasta maioria o pessoal da banda gostava muito de pop rock: Maroon 5, Coldplay, U2, algum rock brasileiro que dava nas novelas.
Quando começa a aproximar-se do que está a fazer?
Há uns seis, sete anos comecei a ir atrás, a pesquisar músicas do Ruy Mingas, André Mingas, Filipe Mukenga, mais tarde David Zé, Artur Nunes, Urbano de Castro, os Kiezos, banda mítica dos anos 1970 e, mais para trás, Angola Ritmos. Todo o mundo conhecia estes nomes, mas eu não dava importância.
Já ninguém os ouvia?
Houve uma altura em que se perdeu a ligação com a raiz em Angola. A maior parte dos músicos tentavam seguir uma linha mais vanguardista do semba, e então deixava aquela sonoridade e aquele reportório para trás. Com o tempo fui pesquisando e em conversas com outros músicos de outras partes do mundo fui-me apercebendo de que para ir para a frente com a música tem de se ir à raiz. Eu estava a ir para a frente sem voltar atrás. O meu EP Ingombota é um reflexo disto: tudo o que absorvi, transformado com as influências que fui recebendo: rock, jazz, blues, música latina, na Meu Amor da Rua Onze meio bolero meio bossa-nova.
No EP há duas canções que conhecemos da voz de Ruy Mingas. Já estiveram juntos?
Tenho a grande honra de conviver com ele normalmente. Sou muito amigo das filhas. Às vezes almoçamos na casa dele. Ele gosta de fazer aqueles almoços de sábado à angolana, que começam as 12 e acabam à meia-noite. Com música, sempre. Acaba por ser um ponto de encontro, de convívio entre músicos. Idolatramo-lo muito, e com muita razão, pelo músico e pela pessoa que ele é.
O que é que ele disse quando o ouviu cantar aquelas canções?
Ficou muito contente porque alguém está a continuar aquela linha. Os mais velhos gostam muito quando nós, os mais novos, cantamos em kimbundu. Às vezes mal, porque nós não falamos.
Herança do colonialismo?
As línguas nacionais eram censuradas pelo motivo óbvio: quando se coloniza ataca-se primeiro o lado cultural. Todas as colonizações foram assim. A cultura foi branqueada, ocidentalizada. Quem falava as línguas nacionais era considerado um bocadinho atrasado socialmente. Infelizmente não tivemos muito incentivo na nossa adolescência. Houve uma altura em que tivemos aulas suplementares de kimbundu, mas era uma escola privada. Não havia incentivo social nem político - até hoje não há - para o aprendizado das línguas nacionais. Achávamos que elas eram de pessoas não sofisticadas. Fomos ensinados assim porque, de certa forma, as pessoas que nos ensinaram foram ensinadas pelo colonialismo, incluindo pessoas do governo.
Que atração é esta, então, pelo kimbundu?
Surge primeiro por causa da música. As músicas em kimbundu tinham um sabor, uma métrica, um feeling especial. Mais tarde surge pela necessidade de autoafirmação cultural e de abraçar a própria cultura. Há uma altura da nossa carreira em que nos damos conta de que precisamos de identidade. O que é que nos diferencia do resto do mundo? A nossa língua e as nossas influências musicais. Então porque é que não fundimos isso? Isso tudo começa com Angola Ritmos anos 1950, eles pegavam na música tradicional angolana e punham uma estética latina. Depois o Rui e o André Mingas e o Filipe Mukenga foram buscar o jazz. Quando vamos aos arquivos da Rádio Nacional, começamos a perceber que os cotas já tinham feito esta fusão. Então dissemos: o passado para nós é que é o verdadeiro futuro. Fomos buscar a música e descobrimos a língua.
Por falar nela, Toty Sa'Med não é o seu nome, pois não?
Não. Toty é o meu nome de casa, é um nome de carinho, logo desde que nasci, vem de Totinho. Sa'Med vem de Santos Medeiros, que são os meus sobrenomes. O meu pai é Medeiros, de São Tomé, de origem portuguesa também. E a minha mãe, angolana, é dos Santos.
Qual é o estado deste trânsito cultural entre Lisboa e Luanda?
Acho que Portugal, e principalmente Lisboa, devia assumir mais fortemente o papel que tem nas entrelinhas, que é o de ponto de encontro das culturas da lusofonia. Isto fora do contexto político do que é a lusofonia. Acho que a lusofonia reside mesmo é na cultura, é o seu ponto forte. Lisboa acaba por ser a confluência de todas essas culturas. Vê-se isso todos os dias na rua, quando nos cruzamos com outros músicos angolanos, da Guiné, de Cabo Verde, Moçambique, São Tomé, Brasil, Goa, Macau, Timor. Às vezes vamos para um festival e estamos lá todos juntos. Isto não acontece em mais cidade nenhuma.
Como é que Lisboa poderia assumir mais esse papel?
Com os agentes culturais. E é preciso assumir, sem perder a identidade da cultura portuguesa, que neste momento Lisboa é uma cidade muito crioula. Por isso é que acabamos por nos encontrar todos cá.
É uma espécie de casa?
Exatamente. Acho que isso até é justiça poética, quase. Como se diz em inglês: give back. Acho que isso é bonito, que Lisboa assuma esse papel.
Continua a ir ao arquivo da Rádio Nacional angolana?
Estive lá há cerca de três meses, porque eu queria começar um trabalho na música mais étnica, mais ancestral, que é pouco conhecida.
Soa a quê?
À verdadeira música africana, sem influência, aquela música das aldeias africanas com os instrumentos sem influência das violas, das baterias, dos tambores industrializados. São instrumentos feitos a partir de plantas e de peles de animais... Acho que não podemos parar de pesquisar enquanto músicos, artistas.
O que pode dizer sobre as novas músicas que tem vindo a preparar?
O processo tem muito que ver com os encontros que vou tendo com outros artistas, seja em Luanda seja em Portugal. Essa convivência também leva às composições. Por exemplo, numa das minhas estadas cá estive hospedado em casa do José Eduardo Agualusa e aproveitámos para fazer duas ou três canções.
Como é que começam?
Normalmente, primeiro definimos uma linha. Conversámos sobre algumas coisas, por exemplo sobre a relação entre Luanda e Lisboa, e compusemos uma canção. Sentamo-nos, conversamos sobre isso, e às tantas eu começo uma melodia qualquer. Aquilo vai dando uma inspiração ao Agualusa e ele vai criando palavras em cima daquelas melodias simples. Depois vamos montando aos poucos.
Com o Kalaf a relação já é mais antiga.
Antigamente É Que Era Doce [no FOLIO - Festival Literário de Óbidos, em 2015] foi um dos primeiros espetáculos que fizemos juntos, e a partir daí tivemos a ideia de fazer o meu EP, que é produzido por ele. Ele desafiou-me. Eu estava em Luanda sem muitos objetivos de carreira ou sem muitas opções. Além de músico e escritor, o Kalaf é uma pessoa com uma sensibilidade e uma visão pouco comuns, é mesmo um visionário. Tive muita sorte em encontrá-lo como parceiro.
E o Mia Couto como entra nestas novas músicas?
Tenho uma letra do Mia Couto também, essa foi feita à distância. Conhecemo-nos em Óbidos. A parte musical é da Sara Tavares e também tem arranjos meus. A letra é do Mia, do Kalaf e do Agualusa. Essa é uma música com cinco partes.