Como estão as relações com a Sérvia, que continua a recusar reconhecer a independência do Kosovo? Sei que tem afirmado ser sua intenção construir a melhor relação possível, normal até, entre o Kosovo de que é presidente e a Sérvia. Como descreve a situação atual? É uma situação complicada, infelizmente, criada pelo nosso vizinho do norte, pelas suas intenções desestabilizadoras não só contra o Kosovo mas na Bósnia, no Montenegro e outros países da região. Mas apesar dos ataques contra nós e das intenções de desestabilizar o nosso país, o Kosovo sempre foi um vizinho pacífico e construtivo. Sempre estendemos a mão da amizade e da cooperação, mesmo tendo em conta a Sérvia não só não se ter desculpado, como não ter feito justiça pelas vítimas que causou na antiga Jugoslávia durante o regime de Milosevic, e especificamente no Kosovo. Acredito firmemente que existem princípios básicos, ou pré-condições, para a criação de uma situação de paz sustentável na nossa região... e um deles é a justiça. Não só na nossa região, mas se olharmos para a História mundial vemos que não há nenhum território onde se tenha conseguido esta paz sustentável sem justiça para as vítimas causadas pela guerra. E embora tenhamos tido o maior número de mortes de crianças durante a guerra em comparação com outros países da região, per capita, de mais de 20 mil mulheres terem sido violadas pelas forças de Milosevic, e de termos perdido milhares de civis em poucos meses, nunca foi feita justiça em nenhum destes casos. Isto leva-nos a um pedido muito básico que é: lidar com o passado. Lidar com o passado é muito importante se queremos ver a nossa região andar para a frente e, apesar do empenho do Kosovo para um diálogo Estado a Estado com a Sérvia para garantir que há boas relações comerciais, que não há entraves à livre circulação de bens e pessoas e que não nos bloqueamos mutuamente a nível internacional, a Sérvia tem feito o oposto. Continua a desenvolver uma campanha agressiva contra o Kosovo, internacionalmente, continua a abusar do diálogo ao passar informação errada a alguns países, sobretudo os que estão geograficamente mais afastados, dizendo que o diálogo está centrado no estatuto do Kosovo - que obviamente não está -, e tem levado a cabo uma série de iniciativas desestabilizadoras, com a ajuda da Rússia, mantendo tensões e conflitos vivos e deixando a região completamente fora da integração europeia, indo contra o que desejamos e defendemos. Apesar de tudo isto, os nossos esforços são sinceros, somos muito assertivos nas nossas intenções, falamos honestamente com os nossos amigos da UE, dos EUA e mais além, temos relações excelentes com todos os outros nossos vizinhos e os passos que damos é no sentido de estabelecer boas relações com a Sérvia, mas infelizmente não posso dizer que a Sérvia esteja a fazer o mesmo..Há críticas ao Kosovo em termos de respeito pelas minorias étnicas, sobre a forma como este novo país lida com as pessoas que não são de etnia albanesa. Sei que nasceu em Mitrovica, cidade que costuma ser palco de confrontos entre grupos étnicos. Qual é a situação das minorias étnicas, sobretudo os sérvios, no Kosovo? Essas críticas não são baseadas na realidade e para quem tem dúvidas deixo o convite para virem ao Kosovo e verem com os próprios olhos. Vou partilhar alguns factos: o Kosovo tem um dos padrões mais elevados de proteção de minorias étnicas consagrado na Constituição, e que não se encontra em mais nenhum país, da UE ou fora dela. As minorias têm assento garantido no parlamento, estão representadas em todas as instituições, têm direitos que não se encontram em nenhuma outra Constituição europeia. Quisemos garantir que, tendo sido nós vítimas de repressão, mais ninguém no Kosovo se sentiria assim. A multietnicidade é, aliás, uma das nossas maiores forças, é o princípio básico da nossa Constituição. E é por isso que quando alguém propõe uma suposta solução em que tenha de se dividir territórios com base na origem étnica, nós recusamos sempre. Não acreditamos na monoetnicidade, acreditamos sim que a multietnicidade faz não só um país mais diverso mas também mais forte, pois a diversidade é uma riqueza. Depois, se olharmos para os relatórios internacionais, vemos que não houve nenhum ataque religioso especialmente relevante no Kosovo, na última década. Além disso, se olharmos para os números exatos, crimes motivados por diferenças étnicas representam 0,03% dos crimes. Mas ainda assim estamos empenhados em reduzir esse número para zero. De acordo com a OSCE, há mais ataques e roubos nas mesquitas do Kosovo do que em igrejas. Tudo isto mostra que os atos de ódio étnico no Kosovo estão a descer. E neste momento são muito mais baixos no Kosovo do que no resto da região. Pessoalmente estou muito empenhada em mostrar a todas as comunidades do Kosovo, incluindo aos sérvios que lá vivem, que a nossa intenção é que todos se sintam seguros , mas também que vejam uma perspetiva de emprego, educação e sucesso no país. Nasci e vivi em Mitrovica durante 18 anos e, sobretudo depois da guerra, falei com albaneses no sul, com sérvios no norte, com bósnios e turcos e outras minorias étnicas que viviam na cidade, e todos partilhavam os mesmos problemas: desemprego, falta de oportunidades económicas, e, no caso das mulheres, discriminação. Por isso mesmo é que a solução deve ser conjunta, multiétnica. Por essa razão, quem acredita que a solução está na segregação e na divisão étnica, está errado. E basta olharmos para o mundo como um todo para concluirmos que esse tipo de solução nunca foi bem-sucedida, nunca resultou. A nossa polícia é multiétnica, os nossos juízes são multiétnicos, e no que diz respeito ao nosso combate ao crime e à corrupção, os nossos juízes e procuradores albaneses trabalham em conjunto com juízes e procuradores sérvios. No passado, aqueles que estavam envolvidos no crime organizado, por exemplo, eram ambos albaneses e sérvios, e ninguém queria saber da etnia. Hoje o esforço efetivo para combater o crime e a corrupção é multiétnico, porque estão todos a trabalhar em conjunto e estão a ser muito bem-sucedidos nessa parceria..Fez referência à corrupção, que pesa muito na imagem do Kosovo e que afeta a perspetiva de integração na UE. Foi eleita com base numa plataforma forte de combate à corrupção. Está otimista? Absolutamente. Posso dizer que a corrupção é uma coisa do passado porque é muito importante que se diga que as novas instituições eleitas estão ativamente a trabalhar na plataforma anticorrupção. A primeira grande reforma das novas instituições está no sistema judicial, porque acreditamos que sem o primado da lei não podemos ser bem-sucedidos em nenhuma outra área, seja na economia, na integração, no investimento na população mais jovem, na igualdade de género. Tudo isto está relacionado com o facto de se ter um sistema judicial forte capaz de garantir segurança e igualdade a todos. Esta é a nossa prioridade porque está diretamente relacionada com o nosso sucesso em todas as outras áreas. E os nossos esforços na reforma judicial não têm sido levados apenas porque a UE exige, mas sobretudo porque é o que acreditamos ser melhor para os cidadãos. Estamos a trabalhar juntamente com a UE e claro que precisamos do apoio de alguns Estados membros, sobretudo para o acesso a instrumentos financeiros que garantam que os mecanismos que estamos a construir sejam bem-sucedidos. Ao mesmo tempo também precisamos de apoio político e moral, porque esta não é uma batalha fácil..Ainda há cinco países da UE que não reconhecem o Kosovo, mas gostava de lhe perguntar especificamente sobre integrar a ONU. Soube que recentemente fez um apelo à Índia, porque com a oposição de grandes países como a Índia, e sobretudo a Rússia ou a China, é impossível chegar a membro. Quão otimista está em relação a uma mudança de posição? Vivíamos num tempo em que a maior parte do mundo nem sequer sabia identificar o Kosovo num mapa. Quando o nosso antigo presidente Ibrahim Rugova viajava pelo mundo de uma ponta à outra a falar da independência do Kosovo na altura ninguém via isso como uma opção. E a verdade é que o Kosovo conseguiu algo que se julgava impensável: a independência e a soberania, com o apoio de tantas nações democráticas de todo o mundo. É um milagre, depois de tanto sacrifício e esforço para os cidadãos do Kosovo poderem hoje desfrutar da liberdade que lhes é concedida como direito. É um feito extraordinário - mesmo que muitas pessoas o tomem como garantido... e eu não sou uma dessas pessoas. Sou otimista, mas ao mesmo tempo sou muito paciente, porque entendo que com países como a Índia as coisas não são tão rápidas como desejaríamos. No que diz respeito a tornarmo-nos membros da ONU, fomos reconhecidos pela maioria dos membros da UE, mas o problema é com a Rússia, que está a ameaçar fazer uso do seu poder de veto. Infelizmente por causa da falta de reformas dentro do sistema da UE, países como a Rússia bloqueiam realidades pelo mundo, bloqueiam a proteção de direitos humanos pelo mundo, bloqueiam uma série de decisões que o Conselho de Segurança da ONU já devia ter resolvido há muito tempo. Mas no caso do Kosovo há um argumento ainda mais forte para que a ONU se mantenha de braços abertos para nós, que é a opinião do Tribunal Internacional de Justiça, onde tive a sorte de representar o meu país ao lado de outros advogados. O TIJ foi muito claro quando afirmou que a independência do Kosovo está em linha com a lei internacional, mas ao mesmo tempo foi muito claro em dizer que não pode ser comparada com a intenção de outros territórios mundo fora se tornarem independentes. Na verdade, o TIJ teve em conta a nossa história para concluir que os desenvolvimentos recentes que aconteceram no pós-independência foram atos levados a cabo pelas pessoas do Kosovo e que representavam a vontade dessas mesmas pessoas, e que assim foram semelhantes ao processo de independência de países que são hoje membros da ONU, que não foi conseguido através do uso de violência do Kosovo contra outras nações e que não violou nenhum dos princípios fundamentais da organização internacional. Pelo contrário, admitiu que o Kosovo é um país que se formou como tantos outros que hoje são membros da ONU e também confirmou que a grande maioria dos crimes foram cometidos pela Sérvia no Kosovo. E outro elemento importante, que desmonta a discussão entre a Rússia e a Sérvia acerca da resolução 1244, o TIJ clarifica que essa resolução era suposto ser um regime legal para o Kosovo apenas até ao momento em que se define o estatuto final. E quando isso aconteceu, em 2008, esse regime legal já não se aplica mais porque há um novo já criado pelas novas instituições do Kosovo, escolhidas pelas pessoas. Qualquer hesitação que algum país possa ter em relação ao Kosovo pode ser dissolvida pela opinião do próprio TIJ. Como disse um juiz brasileiro no Tribunal Internacional, o juiz Trindade, "os países existem para as pessoas e não vice-versa e quando países como a Sérvia abusam da integridade territorial e da soberania para cometer crimes de guerra, crimes contra a humanidade, genocídio, perdem automaticamente o direito de usar o princípio da integridade territorial e da soberania, e especialmente de usá-las como escudo de proteção, porque não pode haver nada que proteja países que cometam crimes desta natureza. Portanto, todos estes fatores são argumentos importantes que espero que sejam considerados pelos países quando tomarem a sua decisão de integração do Kosovo na ONU..Nesta sua visita a Portugal, e ambicionando desenvolver as relações bilaterais, o ponto de partida é a boa memórias da participação dos militares portugueses na KFOR? Toda a gente no Kosovo está muito agradecida pela presença portuguesa na NATO. A NATO e todos os soldados da KFOR, ainda hoje, mesmo 20 anos depois da guerra, são considerados os nossos salvadores. Uma pesquisa recente demonstra que quase 90% das pessoas do Kosovo confiam muitíssimo na KFOR, sendo, por isso, um dos raríssimos casos no mundo em que a presença internacional é acarinhada, mesmo depois de duas décadas. Tivemos sempre boas relações com os militares portugueses no Kosovo e tive oportunidade de mostrar a minha gratidão nesta vinda a Lisboa, mas acho que o mais importante a retirar daqui é o fortalecimento das relações humanas entre pessoas e países e a ponte que se criou entre os dois países, uma ponte que queremos que seja cada vez mais forte. O que é importante ter em mente, nestes casos, é que embora o Kosovo tenha sido uma zona de guerra, é hoje um país e uma sociedade próspera, com grandes perspetivas de crescimento internacional e desenvolvimento de negócios, através da partilha de conhecimento, da educação, para, assim, garantirmos que nos visitam mais, porque há uma série de vantagens turísticas tanto em Portugal como no Kosovo, nós sobretudo no segmento de turismo de montanha. E se é certo que o primeiro grande contacto entre as duas nações já está assegurado desde a chegada da comitiva militar portuguesa, porque não estabelecer novas pontes, como por exemplo cooperações na indústria tecnológica, parcerias universitárias, aumento bilateral do investimento. É por isso que estou cá: precisamos de criar novas forças e cooperação na área da defesa, que é uma das minhas prioridades..O islão no Kosovo é bastante moderado, mas olhando para um país com uma maioria muçulmana, é surpreendente ver uma mulher como presidente ou nem por isso? O Kosovo é uma sociedade multirreligiosa e multicultural. A nossa Constituição define o país como um Estado laico. Claro que há diferentes religiões no Kosovo mas somos reconhecidos no mundo pela nossa tolerância religiosa. Há famílias em que um elemento é muçulmano e outro é católico e está tudo bem. Temos uma comunidade católica muito ativa, com a qual trabalho de perto, e como sabe os pais da Madre Teresa são do Kosovo e ela ainda é uma das figuras mais admiradas por todos, entendida como um exemplo pelos bons exemplos que nos foi dando. A religião nunca foi o motivo pelo qual o Kosovo não avançou. Respeitamo-nos, estimamo-nos e, mesmo sendo um Estado laico, defende a liberdade religiosa sob todas as suas formas. A nossa sociedade mostrou-nos que está emancipada em termos de igualdade de género e a prova disso é ter votado numa mulher, tornando-a a pessoa mais votada na história do país, coisa que alguns países na UE ainda não atingiram. A minha eleição não foi o resultado de um cálculo político, eu fui a pessoa mais votada, razão pela qual o parlamento confirmou a minha eleição como presidente. Apesar de ainda estarmos a batalhar contra a discriminação, podemos servir de exemplo a outros países no que diz respeito a conquistas no âmbito da vida pública e sobretudo na forma como as mulheres estão representadas - e tudo através do voto dos cidadãos..leonidio.ferreira@dn.pt