"Todos estamos ameaçados e o Ministério da Cultura poderia manifestar solidariedade"
Diz que não faz música de intervenção, mas por mais do que uma vez interveio no espaço público a partir do palco. Nos anos 1990 desafiou Cavaco Silva, acorrentou-se às portas do Coliseu do Porto quando a sala de espetáculos da cidade onde nasceu e vive, esteve para ser vendida a uma igreja. Recentemente, num concerto, voltou a desafiar o poder global. A partir de Águeda, a voz - que é acusado de não ter - chegou a Kiev e a Moscovo. Tem 61 anos e não tem planos para reformar a voz da alma.
Voltaria a dizer o que disse, três semanas depois?
Claro. Infelizmente, a realidade é o que é, estamos perante uma agressão ao mundo e, sobretudo, a uma população civil que se encontrava em situação de paz. É uma agressão desproporcional do ponto de vista militar, político, meios e capacidade. Está a gerar uma multidão de desalojados e mortos, inclusive entre a população civil. Acrescentaria que, apesar de ser uma agressão da Rússia à Ucrânia, está a criar vítimas também entre os russos. Os soldados russos também são vítimas, as mães russas choram a mesma dor que as mães ucranianas e é uma agressão ao povo russo, pois continua a ser-lhes sonegada a verdade sobre esta guerra. Continuam a dizer-lhes que é uma operação especial, mas é uma invasão.
Esta mensagem foi pensada com antecedência ou no concerto?
Esta é uma música que tem 30 anos e que se chama "Talvez Fo***", a letra é explícita e fala dos vários conflitos que existiam há 30 anos. Começa por dizer "há bombas em Belfast e em Beirute", "há fascistas em Berlim e em Moscovo, o discurso que de velho se faz novo". Reitero que estas frases têm 30 anos, mas infelizmente algumas delas mantêm-se atuais. Pior que isso é que se mantém atual esta opressão das grandes potências, sobretudo sobre pessoas mais fracas, e infelizmente a canção pode ser sempre metaforizada em situações como a que vivemos hoje. Se quiser, há uma adaptação de parte da letra que diz, "eu e tu o que é que podemos fazer?" e o público responde com a frase que sabemos. Atenção, esta frase na música é a coisa menos obscena de todas, porque quando falamos de bombas em Beirute ou, neste caso, em Kiev, essa sim é a verdadeira obscenidade. Não nos vamos perder em semânticas, não nos vamos perder na objetividade da questão. Portanto, a música continua atual e, neste caso, o tirano que é visado é aquele que sabemos que tem ambições imperialistas e czaristas, e que está a provocar uma onda de indignação e dor. Claro que foi pensado, mas a minha postura de palco não é propriamente emocional, não há decisões emocionais no palco no sentido de manifestações políticas. As manifestações políticas ou cívicas são pensadas.
A primeira reação pública veio da embaixada russa em Portugal e o comunicado diz, e cito, "a embaixada recebeu queixas de compatriotas russos zangados e chocados" e diz ainda que as suas palavras foram "grosseiras e inaceitáveis sobre os cidadãos da Federação da Rússia, bem como os seus mais altos dirigentes". Os diplomatas russos em Portugal disseram que vão avisar os órgãos competentes. Qual foi a sua primeira reação a este comunicado?
Em primeiro lugar, perceber que a embaixada russa recebe cartas e lhes dá atenção e, provavelmente, terá recebido milhares de cartas ao longo dos anos sobre a violação dos direitos humanos na Rússia e fico muito contente que a embaixada vá dar atenção a essas cartas que devem ser às centenas. Em segundo lugar, a ironia dessa missiva é que diz que os cidadãos russos que estavam no recinto e pagaram bilhete, o que é uma mentira sendo que o espetáculo era gratuito, mas mesmo não pagando bilhete estamos disponíveis para ressarcir esses milhares de cidadãos russos que lá estavam e que, segundo a embaixada, estão zangados. Esta mensagem não foi para o povo russo, embora até admita que haja cidadãos que estejam de acordo com Putin e que se tenham sentido melindrados com as minhas frases. Temos pena, vivemos num país democrático onde temos direito de emitir opiniões e as pessoas também têm todo o direito de emitir contraopiniões. Agora, o que não têm direito é de emitir contraopiniões que são ao nível estatal, é um comunicado emanado por uma embaixada, portanto, pelo governo russo, e que em si transporta uma ameaça implícita.
Sentiu-se ameaçado?
Todos estamos ameaçados. No momento em que calarmos esta ameaça, no momento em que chutarmos para canto esta intimidação russa, nós portugueses, estamos a dizer claramente que pedimos desculpa e que vamos estar caladinhos porque temos muito medo deles. Portanto, metaforicamente falando, a invasão russa já começou porque, também metaforicamente, esta mensagem da canção agora adaptada para inglês para russo ouvir, também é uma metáfora. Não quero que o presidente Putin vá procriar consigo próprio, quero é que ele pare com a guerra. Isto é claramente uma metáfora, mas também é um sinal de respeito pelo povo russo. Sou um russófono por cultura, a Europa também é baseada numa Rússia cultural, uma Rússia que vai beber há grande música, ao grande cinema, à grande tradição da literatura. Portanto, nós somos também a Rússia, mas não aquela que é violenta, mas sim a que é cultural e temos muito orgulho nessa Rússia que assumimos. Aliás, a própria Rússia também é Europa no sentido cultural do termo e o povo russo quer ser democrático, quer eleger o seu presidente e, no fundo, é isto que não está a acontecer. Portanto, não são palavras contra os russos, são palavras contra os mísseis russos.
Voltando ao comunicado da embaixada, a mesma pediu ao governo português para intervir em sua defesa e o ministro dos Negócios Estrangeiros repudiou estas ameaças em nome da liberdade de expressão e em geral. Isso bastou-lhe?
Sim, aguardo algum desenvolvimento. Acho que o Ministério da Cultura poderia manifestar alguma solidariedade institucional, atendendo a que é um espetáculo, atendendo a que é um homem num palco, atendendo que é um público que está envolvido e música envolvida. Por outro lado, acredito - e não quero levar isto a um incidente diplomático maior -, e compreendo a posição do governo e estou satisfeito com ela. Mas acredito que uma chamada do embaixador para um pedido de explicações não ficaria mal. Não quero forçar o governo a fazê-lo, mas provavelmente creio que seria um passo interessante a ter em conta.
Entretanto, passaram três semanas e em Portugal há artistas que mostraram desacordo consigo. O exemplo mais público e conhecido é o de São José Lapa que o acusou de não ter voz e de não ser o porta-voz dos outros artistas. Vindas estas reações de dentro do seu meio, são para si surpreendentes?
Sou pai e vi imagens terríveis de crianças esventradas, de bombas a caírem em residências, de mães a darem as mãos aos filhos, vi a imagem de um pai ajoelhado durante duas horas perante o seu filho que morreu. Portanto, creio que neste espaço que é também jornalístico, temos de saber priorizar os assuntos, mas não os podemos tornar apenas assuntos jornalísticos, pelo menos para mim não são. Tenho o maior respeito pelas pessoas que me contestam, exatamente porque quero ser respeitado quando contesto os outros. Só queria acrescentar que a voz mais importante que temos é a voz interior, o artista é a voz da alma e a sua voz é a que se ouve longe e perdura no tempo. Não quero defender as minhas qualidades canoras, aliás, não sou cantor, sou escritor de canções, mas a minha voz de dentro pelo menos agora ecoou na Rússia.
José Cid, por exemplo, criou o hashtag Je Suis Abrunhosa e dezenas de outros autores, compositores e intérpretes têm saído em sua defesa. A sua mensagem inicial que era de condenação à guerra, transformou-se depois numa dicotomia entre os que apoiam o que fez e os que o repudiam. Estava à espera que esta discussão entrasse no espaço público?
A partir do momento em que a embaixada faz uma ameaça a um cidadão português, creio que a todos nós enquanto portugueses - com as questões que têm sempre de se salvaguardar num regime democrático -, acho que os portugueses devem manifestar-se em relação a isso. Fosse qual fosse o artista ameaçado por uma embaixada, tivesse dito o que tivesse dito, eu enquanto cidadão pronunciar-me-ia imediatamente. Em primeiro lugar, vamos colocar as coisas na sua devida proporção: o apoio ou repúdio é acessório, a grande questão é os civis que são mortos de forma ignominiosa, a ação militar é ilegal, é violentíssima, usa armas que são proibidas por várias convenções e isso é o que está em causa. E se falamos de apoio ou repúdio, também temos de ser honestos em relação à imensa massa da população que felizmente se reviu nas minhas palavras e se manifesta assustada com a ameaça russa. Nomeadamente, a grande maioria dos meus colegas da classe artística, mas como é natural há vozes discordantes. Saliento, no entanto, que esta é exatamente a lição que estamos a dar ao mundo, que um artista pode exprimir uma opinião e ter quem o apoie, ter quem o conteste, mas com isso não subir o tom e chama-se a isso democracia.
Há ou não, no seu entendimento, limites à crítica política? Poderia ter passado esta mensagem de outra forma, talvez numa linguagem diferente ou menos vernácula, dizem alguns que o criticam...
... Gostaria de manter alguma sanidade desta discussão. Se estamos a falar de uma questão semântica, todas as palavras existem num contexto, posso dizer a um amigo meu, "o teu carro é fantástico, vai-te fo***". Estas palavras têm a carga semântica que o contexto lhes imprime. Para já, estamos num contexto de espetáculo e não posso permitir que se confunda a aparente vernacularidade de uma palavra, com os fragmentos de uma bomba que estilhaça fígados e trespassa olhos ou com mulheres que são violadas. O que é que dirá a mulher que está a ser violada? O que dirá o homem a quem a granada decepou a perna? Dirá, "russo, se calhar não devias ter feito isso, rapaz", "olha que me estás a magoar, diz a senhora", há alturas em que dizer "talvez fo***" é uma obrigação política. Peço desculpa, mas não vou continuar uma discussão semântica, para isso acho que devem convidar um académico.
Esta opção pela mensagem através do choque, mantê-la-ia hoje?
Não é um choque. Aliás, fiz isso várias vezes e não recebi nenhum telefonema da TSF, pelos vistos foi preciso utilizar essa palavra. E atenção que uma palavra é um conjunto de letras, as palavras não criam órfãos, não vazam olhos, não estripam fígados, não matam. Estarmos a remeter isto para a vernacularidade é estarmos a fazer o papel dos russos. Se pudesse ir à televisão russa dizer isto, "preferem bombas ou preferem dizer vai-te fo***?".
Lembro-me de o ativista de então, na segunda maioria absoluta de Cavaco Silva, lhe ter pedido e a Maria Cavaco, para "talvez fazer". Estamos de novo com uma maioria absoluta, juros a subir, inflação galopante, combustíveis a preços absurdos, urgências fechadas, esquadras fechadas, escolas sem professores. Estes tempos de agora, depois dessa maioria absoluta dos anos 1990, não despertaram em si, até agora, esse seu lado de contrapoder?
Em primeiro lugar, vamos pôr as coisas em perspetiva uma vez mais. Em 1993, tinha havido cargas policiais e das que me lembro, uma brutal na Manuel Pereira Roldão que produziu uma série de feridos. A polícia de choque investiu sobre grevistas. Em 1994, uma série de polícias enviados pelo então governo do professor Cavaco Silva, governo democraticamente eleito, agrediu violentamente uma manifestação que se opunha ao aumento das portagens. Agrediu ao ponto de disparar balas, uma delas que causou a lesão permanente de um cidadão da margem sul. Mas recordo, foi a última grande carga policial que houve enviada por um governo contra a sua própria população e sabe porquê? Foi porque, na altura, milhares de portugueses utilizaram uma linguagem séria, forte e fraturante, nomeadamente usando algumas das minhas canções como "Não posso mais" e mesmo a "Talvez Fo***". Portanto, a música também cumpre o papel galvanizador das vontades. Neste momento, a situação é outra, atravessámos uma pandemia, estamos à porta de uma recessão que tem a ver com uma série de fatores convergentes e nem todos eles da responsabilidade do governo. Sabemos que, apesar de tudo, houve uma resistência do SNS à pressão que houve durante a pandemia, houve uma vitória clara do SNS enquanto paradigma de uma política social. Há uma tentativa de melhorar as condições de vida e existem políticas sociais de fundo, existe o RSI e uma série de atividades com vista ao apoio à escolaridade. Portanto, os índices são muito diferentes do que eram em 1994, a própria atitude governativa e a forma como se exerce a maioria absoluta são muito diferentes. E mais, a vigilância na altura não se fazia como se faz hoje nas redes sociais e numa imprensa que é absolutamente escrutinadora do ambiente político, felizmente. Creio que as maiorias absolutas não são necessariamente maléficas, a do professor Cavaco Silva, especialmente a primeira, não creio que o tenha sido. E maléfica no sentido de criar contundências sociais, não foi, mas a segunda talvez tenha sido maléfica nesse sentido de uma política neoliberal de privatização de setores estratégicos que acaba por levar ainda mais longe no governo de Passos Coelhos. Mas são governos diferentes e aí não interviria dessa maneira.
Enquanto observadores de política nos últimos 30 anos, reparámos que muitos artistas deixaram de ter esse lado revolucionário ou mais agitador, a não ser quando é para reclamar, e bem, mais verbas para o Ministério da Cultura. Mas há exceção disto, não tem havido com regularidade esse contrapoder feito a partir dos palcos. Acha que somos um país mais adormecido desde o Pedro Abrunhosa acorrentado ao Coliseu?
Convido-vos a virem a um espetáculo meu, infelizmente não é possível convidar-vos a espetáculos passados em que várias vezes exprimi opiniões tão contundentes em relação a matérias que me pareceram úteis. A sua análise está correta, mas por exemplo, a canção "Para os braços da minha mãe", apesar de ser uma balada, fala de um processo migratório que fez uma ferida profunda na sociedade civil portuguesa na altura. Estamos a falar da Troika, mas escrevi outras sobre outras questões. O que diz é muito verdade, mas atenção que é um fenómeno que atravessa a Europa e o ocidente, mas que tem a ver com o triunfo do neoliberalismo no campo político. Triunfo no sentido em que o neoliberalismo se impõe primeiro, com alguma resistência no período "reganiano", mas o neoliberalismo agora acelerado pelas redes sociais, no sentido em que existe uma globalização e consumimos o mesmo produto. Esta sensação de neoliberalismo triunfante, que visa a eficiência, o resultado e o lucro, aplica-se também às artes. A arte nas redes sociais só se consolida perante ela própria, julga ela, se tiver muitos likes. E, para ter muitos likes, essa mesma arte tem de se adaptar ao modelo social e político. Por exemplo, a música pop com as raparigas elegantemente vestidas, se tirarmos o som ao VH1 ou à MTV, não perdemos nada porque estamos a ver corpos de homens e mulheres fantásticos a dançar. Mas, na verdade, a música pop triunfante na qual grande parte dos artistas se mimetizam, é uma música que representa o embrulho do neoliberalismo. Portanto, há um afastamento da classe artística, até por falta de causas, julgam eles, porque o neoliberalismo diz que está tudo bem, mas não está.
Acha que hoje em dia são todos politicamente corretos?
Se quiser, é isso. E a agenda do politicamente correto sabemos qual é, há uma agenda de ditadura de opinião. Por exemplo, esta questão com a Rita Pereira, para mim é absolutamente emblemática e essa própria discussão já carrega um pouco a carga do que é discutido no primeiro mundo ao nível das redes sociais. Portanto, já não é uma questão de ideologia, é uma questão de forma. A conversa, que é legítima e tem fundamentos históricos no absoluto horror que foi a escravatura e a colonização, e aproveito para ressaltar a visita do Papa ao Canadá, também ela visa sair do politicamente correto e referir dentro da Igreja Católica, visa sair dessa caixa e ir buscar um assunto que fere os preceitos que são a discussão que a Igreja Católica admite ter. De resto, a pedofilia é discutida dentro da Igreja Católica por iniciativa também do Papa Francisco que retira estes módulos de discussão do baú do tabu e os coloca dentro daquilo que deve ser a orientação da discussão encíclica. Aquilo que se passa na discussão civil deve fazer a mesma coisa, temos de discutir o assunto de raça, temos de discutir o assunto de género, temos de discutir o assunto do fascismo que emerge e perante o qual, como na Alemanha nazi dos anos 1930, o silêncio não é uma opção.
Há muitas diferenças entre o país dos anos 90, quando surge o fenómeno Pedro Abrunhosa, e o país de hoje. Que Portugal consegue ver hoje quando anda na rua?
A pergunta é demasiado interessante. É um Portugal diferente e há uma frase lindíssima e óbvia que diz que "o que não muda, morre". Portugal não morreu, mudou e este é um outro país que claramente tem um crescimento económico que se processa na década de 80, mas também recentemente. Tem retrocessos, nomeadamente na privatização de algumas empresas que, quanto a mim, foi errado fazer, como é caso da ANA, da TAP e algumas empresas do setor financeiro. Mas as condições de vida dos portugueses, basta ler o António Barreto, para perceber que o país mudou. No outro dia vi um documentário na RTP Memória sobre Fátima nos anos 1940 e parecia que estávamos a ver a Europa medieval nos anos 40 de 1300. Em 48 anos de democracia evoluímos imensamente, mas o que se vê na rua é diferente do que se vê nas redes sociais. Na rua vê-se algum apaziguamento, comigo as pessoas são de uma gentileza extrema, o povo português é de uma bonomia comovente e até pode contestar, mas contesta com bonomia e com uma certa alma latina. Contesta agora, mas a seguir bebe um copo de vinho branco e uma salada de pepino e tomate em frente ao mar, é esta bonomia de quem oferece o que tem para dar a este país da verdade. É o país onde me revejo, por isso nunca saí daqui, mas claramente vejo um país que foi mudando. Há talvez setores que têm de ser devidamente acautelados e diria que o primeiro teria de ser na área social, na justiça evidentemente, a reforma é imperiosa, mas sobretudo a habitação para as camadas mais jovens. Acho que é a grande falha dos governos da democracia, não ter havido um acautelamento do direito à habitação que é um direito fundamental da Constituição. Os jovens saírem de casa dos seus pais antes dos 30 anos, para mim, deveria ser o grande desígnio para os próximos anos e já o deveria ter sido para os governos dos últimos dez anos.