Do chamado cinema independente americano para o reconhecimento mainstream. Tem sido este o percurso de Todd Haynes, cineasta de filmes como Velvet Goldmine e Carol, agora de regresso com um provocador melodrama baseado em factos verídicos, May December - Segredos de Um Escândalo. O filme é a história de um casal marcado por um escândalo: uma mulher de 36 anos apaixonou-se e abusou sexualmente de um adolescente. Anos mais tarde, o casal tem filhos e vive um casamento aparentemente bem-sucedido ao ponto de haver uma atriz que se imiscui no seu quotidiano para interpretar a mulher, que foi presa, num filme de Hollywood que irá ser rodado. Aos poucos, esta observadora de fora é testemunha de traumas e constrangimentos de um escândalo que foi realmente um bombom para os tabloides americanos nos Anos 1990..Parece tentador comparar esta intriga à de Diário de Um Escândalo, de Richard Eyre, onde Cate Blanchett era uma professora bem casada que, num momento de tentação, se envolve sexualmente com um aluno seu menor. Os filmes, ambos bem-sucedidos, não podiam ser mais díspares. Em comum, terem material para grandes interpretações. No filme britânico, Cate Blanchett e Judi Dench brilharam muito e foram nomeadas para os Óscares e aqui há um trio de atores sob quem o olhar de Haynes se deleita: Julianne Moore, a mulher mais velha, Natalie Portman, num relato cruel de atrizes de método, e Charles Melton, o menor que se tornou maior..Foi com o investimento pessoal e financeiro de Natalie Portman que May December chegou a Cannes: na competição e no mercado conseguiu ser vendido para alguns territórios - Portugal já estava com distribuidor e foi lá que a Netflix garantiu a aquisição para os EUA e mais alguns países..Conforme Todd Haynes contou ao DN num hotel de San Sebastián, o orçamento foi muito reduzido, mesmo com um elenco encabeçado por duas vencedoras de Óscar: "As pessoas vão pensar que isto teve um orçamento da Netflix, mas foi mesmo sem dinheiro. Foram apenas 23 dias de rodagem. Como é possível não termos tido mais investimento? É para verem como estão as coisas nos EUA! Filmes com duas mulheres no cartaz e sem explosões afastam investidores. Mas este é o filme que me apetece ver. Bem, mas vamos ter esperança: o sucesso de Barbie pode mudar tudo. Esse sucesso já está a mudar algumas coisas, esse e o do filme-concerto da Taylor Swift.".Apesar de não ter tido unanimidade no Festival de Cannes (ficou de mãos a abanar no palmarés), May December - Segredos de Um Escândalo está bem lançado na temporada pré-Óscares, em especial as três interpretações principais. Felizmente, não é apenas um filme de atores, é também um exame sobre tabus e novas famílias, um comentário excitante sobre as novas morais da América, as redes sociais e a complexidade dos juízos de valor..Haynes é sempre intrigante na forma como aborda o que é mais íntimo no âmago do comportamento feminino. Não há realizador americano hoje a filmar as falhas morais desta maneira..Além do mais, a sua câmara evoca e convoca sempre inúmeras possibilidades de cinema, algures entre o tom mais abstrato e a perturbação encenada com um realismo seco..Voltando aos atores, mais uma vez Haynes proporciona a Julianne Moore uma obra-prima, isto já depois de Seguro, Longe do Paraíso e Wonderstruck - O Museu das Maravilhas. De alguma forma, é lícito poder ver entre ambos uma colaboração no sentido mais literal da palavra e é o realizador quem sublinha a importância do primeiro filme, Safe - Seguro, em 1995: "Aquela mulher do filme era um autêntico ponto de interrogação, alguém que não se reconhece a si própria. E foi a Julianne a revelar-me o que ela era de facto. Fiquei siderado: diante de mim estava uma atriz que completava o meu conceito. O enigma da personagem tinha sido resolvido! Sou da opinião de que um ator deve trazer sempre muita coisa para a personagem, vir o máximo informado e surpreender sempre o realizador.".E porque este é um filme onde é proibido fazer juízos de moral, Haynes não acredita na loucura da personagem de Julianne Moore: "Ela podia ter esperado 18 meses para ter sexo com o rapaz, mas decidiu não o fazer. Essas leis são subjetivas, visam proteger os vulneráveis e têm toda a razão de existirem, mas não deixam, ao mesmo tempo, de implicar alguma arbitrariedade, dependendo de cada caso, de cada pessoa. Esta mulher cumpriu pena, expiou a sua dívida à sociedade e depois continuou junto dele toda uma vida e com a construção de uma família. Os seus filhos foram amados e, para eles, não é importante perceber como é que os pais se conheceram.".Sobre a nova moda da imprensa americana fazer competição do tempo dos aplausos dos filmes nos festivais, Haynes só se ri: "Pois...creio que essa moda desses cronómetros não vai pegar, quanto mais não seja porque muitas obras de arte só nos atingem dias de depois. Depois de vermos certos filmes ficamos sem saber o que sentir - isso já me aconteceu com alguns dos meus filmes preferidos. Às vezes é bom falar com alguém a seguir ou beber um copo. Antigamente, as pessoas iam rever o filme que tinham gostado muito. Ao crescer, tive filmes que me deixaram muito perplexo. Todas essas armadilhas para quantificar os gostos e colocar em competição os filmes são artificiais. São tentativas de ter acesso àquilo que se entende de valor artístico de uma obra de cinema...".Já agora, como é que Todd Haynes olha para os filmes de Todd Haynes? "Fizeram-me recentemente uma retrospetiva em Paris e revi finalmente obras como Carol e I Am Not There e reagi bem, por muito que os veja como algo exterior. Por exemplo, em Carol já nem me lembrava o que acontecia na intriga. Sinto que misteriosamente deixo de ser dono deles."