Tal como Tim canta no clássico Vida Malvada, é caso para dizer que é amanhã que eles se fazem à estrada. O espetáculo no Lisboa ao Vivo, já há muito esgotado, tal como o do Hard Club, no Porto, marcado para 1 de fevereiro, é muito mais do que um simples concerto de apresentação do novo trabalho de originais, Duro. Afinal, tanto o disco como a digressão são uma espécie de território novo para a maior instituição rock portuguesa, que pela primeira vez se atira às feras sem o guitarrista e fundador Zé Pedro, desaparecido no final de 2017..Desde então, muitas foram as dúvidas, mas muitas mais as certezas que os fizeram não desistir, como todos os membros dos Xutos fazem questão de sublinhar nesta entrevista, depressa transformada num diálogo a quatro - embora por vezes mais parecesse a cinco, tal a quantidade de vezes que o nome de Zé Pedro se ouviu. Em entrevista ao DN, Tim, Kalú, Gui e João Cabeleira recordam como transformaram a dor da perda numa celebração da vida, tal como o amigo e companheiro gostaria, mesmo quando tudo foi posto em dúvida..Prestes a iniciar uma nova digressão, o que sentem hoje quando sobem a um palco? Sendo que esta acaba por ser duplamente especial, por ser a dos 40 anos, mas também por ser a primeira sem o Zé Pedro?.Tim - Eu ainda sinto sempre um certo nervosismo, claro, mas acima disso tudo há é uma enorme felicidade por poder continuar a fazer isto, por voltar com um espetáculo novo. Isso supera em muito as borboletas no estômago antes de entrar em palco, porque é estimulante..João Cabeleira - O nervosismo existe sempre, se não existisse é que seria mau sinal..Mas concordam que esta é uma digressão especial?.Tim - Vamos ver se é, nós vamos fazer por isso. Para já vamos começar por salas mais pequenas, porque o nosso objetivo principal é mostrar o disco novo, que é um álbum assumidamente rock e por isso queremos tocar nos bons palcos de rock que temos em Portugal, como é o Lisboa ao Vivo ou o Hard Club..Kalú - Inicialmente quisemos apostar na proximidade com os fãs....Tim - Depois, eventualmente, iremos passar para outros palcos maiores, como sempre fazemos, mas estes primeiros concertos vão ser assim, mais cara a cara..O alinhamento vai ser mais focado no novo disco?.Tim - Estes dois primeiros concertos sim. Vamos tocar o disco quase todo na íntegra, mas depois, à medida que formos mudando de palcos e de salas, o espetáculo também irá mudar. É essa dinâmica da estrada que faz de cada espetáculo sempre algo completamente novo..Como é que foi gravar este disco, feito em quase duas partes, uma com e outra já sem o Zé Pedro?.João Cabeleira - Foi demorado e foi... Sei lá... Acima de tudo, posso dizer que, no final, depois de tudo feito, gosto muito do disco. Até correu bastante bem, apesar de todas as dificuldades que sabemos. Acho que fizemos um bom trabalho..Em algum momento vos passou pela cabeça não continuar com o disco? Ou talvez fazer outra coisa, dar-lhe outra direção?.João Cabeleira - Não e até temos falado muito sobre isso, porque o trabalho já estava em andamento e não fazia sentido parar..Kalú - Até por respeito ao Zé, que já tinha trabalhado nalgumas músicas..Tim - Era um trabalho que tinha de se fechar..Kalú - Sim, até porque é um trabalho que vem na sequência do anterior, o Puro. E que com este take 2 se transforma num Puro e Duro. Logo na altura, há quatro ou cinco anos, foi pensado assim e não fazia sentido nenhum parar e deixar isto a meio. Até, repito, pela participação que o Zé tinha lá. Integrámos as guitarras possíveis do Zé em quatro temas e depois fizemos o resto, já só nós os quatro..E, em relação à banda, passou-vos pela cabeça não continuar, depois da morte do Zé Pedro?.Tim - Individualmente, acho que cada um de nós pensou nisso em determinado momento. E houve mesmo muitas conversas a esse respeito, neste mesmo local onde estamos agora. Mas, como o Gui disse na altura, houve um período em que o Zé não podia viajar de avião e fizemos uma série de concertos sem ele, pelo que esse medo do desconhecido, do como vai ser a partir daqui, de certa forma não existiu, porque já tínhamos passado por uma situação semelhante. A solução passava antes por reencontrar uma nova identidade para os Xutos, agora só entre nós os quatro..João Cabeleira - Tivemos um período de reflexão entre 30 de novembro e o final do ano. Tínhamos um concerto agendado para a passagem do ano, em Albufeira, que após algumas dúvidas optámos por fazer, e essa acabou por ser a nossa melhor decisão. Estava cheio de gente, a receção foi ótima e serviu para mostrar que, apesar de tudo, continuávamos ali. E depois disso tivemos um resto de digressão fantástico em 2018..Tim - Sim, foram concertos realmente fantásticos, em que sentimos sempre um carinho enorme por parte do público. Foi muito importante, porque foi genuíno, nunca tivemos aquela sensação de palmadinha nas costas. Desde o funeral do Zé Pedro que começámos a sentir isso. Logo nesse momento muita gente nos pediu para não acabarmos e, quer se queira quer não, isso também nos deu muita força..Consideram que essa digressão, com momentos como aquele do Rock in Rio, com o Presidente da República e o primeiro-ministro em palco, serviu não só para fazer o luto, mas também para celebrar a vida do Zé Pedro?.Tim - Com certeza, foi mesmo isso, fazer o luto e celebrar, não há outra forma de o dizer. Parece meio estranho, mas é verdade..Como é que viverem essa dicotomia, entre a tristeza pela morte de um amigo e a alegria da celebração da sua vida?.Tim - [silêncio] O melhor que poderíamos ter feito pelo Zé Pedro foi isso, dar grandes concertos e fazer as pessoas felizes, porque era isso que ele sempre queria fazer. Muitas vezes, nalguns desses concertos, fechava os olhos e sentia-o ali, ao nosso lado. Mas também houve outras alturas horríveis, em que senti mesmo a falta dele. Mas ainda bem que fomos para a estrada, porque isso acabou por nos unir enquanto banda. Se nos tivéssemos fechado em casa, tristes e melancólicos, a coisa não ia acabar bem de certeza, porque quando nos encontrássemos outra vez estaríamos todos diferentes e ia ser muito mais complicado..Acabaram de festejar 40 anos no início do mês. O que veem quando olham para trás?.Kalú - Eu olho para trás com muita alegria, porque fizemos imensas coisas boas, se assim não fosse não durávamos tanto tempo, de certeza [risos]. Foram 40 anos com altos e baixos, com alegrias e tristezas, com muito sucesso e com menos sucesso, mas mesmo assim com um saldo extremamente positivo. Tivemos tudo aquilo a que tínhamos direito, mas continuamos na luta e estamos preparados para durar ainda mais alguns anos..Qual foi o momento mais baixo destes 40 anos?.Tim - Foi em 1990, quando regressámos de uma digressão fantástica em França, com os Mano Negra e fomos ao Porto, ao Pavilhão Infante Sagres, apresentar pela primeira vez o álbum Gritos Mudos. Já imaginávamos que não iria correr bem, porque era uma quinta-feira e chovia bastante, mas nunca esperei ter só 400 pessoas para nos ouvir. E aquele bocadinho entre as sete e meia da tarde e as nove da noite, que era a hora marcada para o início do concerto, foi uma coisa horrível em que me passou tudo pela cabeça, inclusivamente se valia a pena continuar. Mas naquele momento não havia nada a fazer e, quando chegou a hora e as luzes se apagaram, lá fomos para o palco e até acabou por correr bem..E o mais alto?.Tim - Ui, sei lá, foram tantos... Alguém que diga aí um, vá....Kalú - O concerto dos 20 anos, no Pavilhão Atlântico, quando o Gui subiu ao guindaste, esse é que foi, literalmente, o ponto mais alto [risos]. Foi a primeira vez que lá fomos e demos um grande concerto..Tim - Eu gostei de todos os concertos que lá demos, mas gostei especialmente daquele do X....Kalú - Esse foi o dos 25 anos. Foi muito engraçado porque o palco estava completamente limpo, não havia monitores nem nada, apenas nós lá em cima..João Cabeleira - Temos também aquele no Estádio do Restelo, dos 30 anos, em que entrámos pela porta oposta ao palco e tivemos de passar pelo meio do público. Tocámos mais de três horas nessa noite..Tim - E há aquele famoso concerto no Coliseu do Porto, dos 15 anos, em que levámos uma banda suporte que eram os Toda a Gente e mais Alguém. Até metemos a malta dos Peste e Sida e dos Censurados a tocar com os Delfins. Houve essa primeira parte, em que toda a gente tocou com toda a gente, a seguir houve um intervalo de um quarto de hora e depois viemos nós apresentar o disco novo [risos]. Não fez muito sentido, mas foi muito divertido..Parece que as vossas melhores memórias estão sempre associadas a aniversários redondos..Kalú - A culpa disso é do Zé, que a cada cinco anos nos obrigava a festejar em grande os aniversários..Tim - Sim, o Zé tinha um grande fetiche com os números. É por isso que o álbum 88 se chama assim, porque ele considerava o oito o número da sorte. Se repararem há sempre muitos números nas músicas e nos discos do Xutos & Pontapés, por causa dessa mania dele. Há também o 7.º Single....Gui - Ele até tinha números para os amuletos que usava. Tinha umas pulseiras com números, que de vez em quando mudava, quando achava que já não davam resultado [risos]. Lembro-me tão bem de o ouvir dizer: "Isto já não presta para nada, tenho de mudar tudo outra vez.".Tim - Ah, grande Zé....Gui - Também tinha uma pancada com o 28..Tim - Isso era o número da carreira que ele apanhava [risos]..O Gui e o João Cabeleira chegaram mais tarde aos Xutos. Como é que ambos recordam essa entrada na banda, que já na altura era enorme?.Gui - É verdade, ainda no outro dia estava a pensar que quando entrei para a banda já os Xutos eram velhos [risos]. É verdade, porque naquela altura poucas bandas duravam tanto tempo, uns gajos com cinco anos já eram uns veteranos..Tim - Eu lembro-me de ter ido ver um ensaio da banda deles, os Vodka Laranja, e de depois os ter ido ver ao vivo, ali para os lados do castelo. Fui ao ensaio porque o Francis tinha saído da banda e eu tinha entregado uns discos dos Xutos ao Gimba, para ele tirar as malhas de guitarra e vir dar uns toques connosco. Foi nesse ensaio que eu vi aqui o amigo João a tocar guitarra. Quando voltei disse-lhes que aquilo com o Gimba não tinha dado em nada, mas que havia lá um tal de João que lhe dava muito bem..Gui - O próprio Gimba ainda hoje diz que o Tim só lá foi para roubar o Cabeleira [risos]..Tim - E depois acabou por ser o Zé a convidá-lo..E o João, como é que recorda esses tempos?.João Cabeleira - Recordo que essa banda acabou pouco tempo depois de ter sido convidado, graças a Deus, porque assim tive oportunidade para ingressar nos Xutos & Pontapés, uma banda da qual eu já era grande fã. Já tinha visto muitos concertos deles e ficava sempre fascinado quando os via..Kalú - Lembro-me de ver o Cabeleira nos nossos concertos..João Cabeleira - Sim, até há uma fotografia de um concerto no Rock Rendez-Vous, tirada de cima do palco, que me mostra logo na primeira fila..O Rendez-Vous foi uma segunda casa para os Xutos & Pontapés....Tim - Houve uma altura que tocávamos lá quase semana sim, semana não..Kalú - E fazíamos as faltas dos outros. Sempre que falhava uma banda lá íamos nós tocar. O que era porreiro, porque nos permitia ensaiar num palco em vez de estarmos sempre a ensaiar na garagem. Tocámos lá 48 vezes....Pode dizer-se que a vossa música é uma música de intervenção?.Tim - As músicas são um espaço de comunicação e cada álbum permite-nos sempre abordar diversos assuntos. Compomos sempre primeiro a música e só depois criamos as letras. Isso faz que esse tal espaço de comunicação possa ser utilizado de muitas formas e uma delas é essa faceta mais de posicionamento e de intervenção, desde sempre presente nalgumas letras dos Xutos & Pontapés. É um espaço que acaba sempre por ser contagiado não só pelas nossas vivências, mas também pelo contexto de cada época e pela atualidade das notícias. Canções como Alepo, Direito ao Deserto, Estupidez, Fim do Mês ou Ai a Minha Vida, em que a temática é apenas a vida das pessoas..Acreditam que, ouvindo essas canções, se consegue perceber como foi a sociedade portuguesa nestes últimos 40 anos?.Tim - Sim, na temática, sem dúvida..João Cabeleira - E há canções, como os Barcos Gregos, que passados todos estes anos continuam perfeitamente atuais: "Eu vou para longe, para muito longe,/ fazer-me ao mar, num dia negro./ Vou embarcar, num barco grego./ Falta-me o ar, falta-me emprego,/ para cá ficar.".Como é que uma banda sobrevive às diferentes modas e tendências, mantendo-se fiel a si própria ao longo de 40 anos?.Tim - Ao contrário do que se possa pensar, também somos influenciados pelas modas. Neste momento, por exemplo, a música portuguesa está a atravessar uma fase de canção autoral. Há mais autores do que bandas, é essa a tendência atualmente. Nós continuamos a ser uma banda, mas se calhar, nestes dois últimos discos, também fomos influenciados por isso. Já houve alturas em fomos mais punk, outras mais rock, noutras até mais funk, mas sempre tentando nunca perder essa tal identidade..João Cabeleira - Pessoalmente, até gosto de ouvir coisas bastante diferentes daquilo que tocamos. Sou grande fã dos Motorhead mas nunca pensei tocar assim nos Xutos..Kalú - Mas se calhar trazes essa influência para cá, como nós trazemos outras. Houve uma época em que andava completamente agarrado aos Nine Inch Nails e acabei por trazer isso para aqui. Foi assim que surgiu o tema Um Deus, do disco Puro..Conseguem escolher uma música favorita, de todas as que já fizeram ao longo destes 40 anos?.Kalú - Fizemos 157 músicas até hoje, mas se tivesse de escolher apenas uma seria a Remar, Remar, porque foi feita numa altura muito importante para a banda e significou um momento de não desistência. Ritmicamente é muito bonita e o João faz um solo brutal. Foi a primeira música que o João gravou connosco e apaixona-me até hoje..João Cabeleira - Também é a minha preferida, até pela mensagem....Gui - É sempre difícil escolher, mas há uma de que gosto especialmente, a Quero Mais, que é a última faixa do álbum 78/82, da qual anos mais tarde até fiz uma versão, com os Lulu Blind, para a coletânea XX Anos XX Bandas. Também gosto do Remar, Remar, claro, mas tenho muita inveja do solo do João [risos]..Tim - Não consigo escolher uma, é como pedirem a um pai para dizer qual é o filho favorito..Então e se for a música que melhor resume estes 40 anos dos Xutos & Pontapés?.Tim - Isso é fácil, À Minha Maneira. Tem uma entrada do Zé Pedro, que simboliza o começo da banda, uma parte em que tocamos todos juntos, a representar o nosso esforço, tem a declaração de princípios no refrão e acaba em total apoteose..Kalú - É um bom resumo destes 40 anos, sim, senhor..Xutos e Pontapés - Concerto de apresentação do novo disco, Duro..Lisboa ao Vivo, Lisboa. 25 de janeiro, sexta-feira, 22.00..Hard Club, Porto - 1 de fevereiro, sexta-feira, 22.00.