Houve um tempo, mais do que agora, em que as audiências de televisão tinham o poder de construir carreiras ou pôr-lhes termo. Um tempo em que o valor dos repórteres se confundia com o impacto causado pela sua última história. Alguns deles alimentavam o desejo de se tornar pivôs. Que é como quem diz: jogar no campeonato dos rostos da informação tidos como figuras públicas confiáveis. The Newsreader, uma série australiana do último ano, em estreia na Filmin, dá vida a esta realidade de bastidores a partir de uma redação televisiva fictícia com sede em Melbourne, onde um jornalista novato, Dale (Sam Reid), sonha inocentemente com a oportunidade de se sentar em frente às câmaras para dar notícias, enquanto a pivô mais empática da casa, Helen (Anna Torv, estupenda), lida com o sexismo do chefe que numa altercação inflamada lhe chama, alto e bom som, "zona de guerra com duas pernas". O ano de todos os perigos é 1986..CitaçãocitacaoA riqueza de The Newsreader passa pela vida que emana da sua boa escrita televisiva, em que cada peça conta para criar uma experiência conjunta, seja um pedaço da nostalgia dos objetos seja o brilho nos olhos de quem foi bem-sucedido numa reportagem..Com a cronologia bem assinalada, o período narrativo da série começa em janeiro desse ano e, ao fim de seis episódios, fecha um ciclo com a notícia do acidente nuclear de Chernobyl. Antes deste, a grelha de factos passa pelo desastre do vaivém espacial Challenger, o aparecimento do cometa Halley, a libertação de Lindy Chamberlain (caso mediático da australiana injustamente condenada pela morte da filha), o atentado no quartel da Polícia de Russell Street, em Melbourne, e a crise da sida. No meio desta sucessão de eventos noticiosos encontramos a dupla improvável Dale e Helen, que unem forças (e não só) depois da estreia tragicómica dele como pivô. Helen, carregando a reputação de mulher difícil, acaba por revelar-se quebradiça na solidão da sua casa. Alguém capaz de passar uma esponja mágica sobre o pânico e a ansiedade assim que recebe a indicação de que está no ar, mas que fora do pequeno ecrã se desmancha em neuroses - umas ligadas a um passado vago, outras inerentes à toxicidade do local de trabalho..Seja como for, ela engraça com o jovem Dale e quer realmente ajudá-lo a ultrapassar as inseguranças (desde a colocação da voz a um toque de imagem), ao mesmo tempo que se deixa apaixonar. Por sua vez, Dale, que admira Helen como quem põe os olhos numa obra de arte de competência, aproveita o calor físico e romântico da abordagem dela numa perspetiva de crescimento profissional... Enfim, o retrato não será tão utilitário como se afigura no papel. E é precisamente por conseguir apurar a ambiguidade humana desta relação, com as subtilezas muito bem asseguradas pelos seus intérpretes, que The Newsreader vinga enquanto olhar incisivo sobre o trabalho e a intimidade: duas faces da mesma moeda num ambiente competitivo e de permanente deadline..O criador, Michael Lucas, e a realizadora, Emma Freeman, fazem do clima de pressão noticiosa a fonte de energia da série. É nesse contexto de resposta rápida que as personagens se vão revelando através dos laços de confiança, das afinidades mais silenciosas ou da amargura. No último caso temos o veterano pivô Geoff (Robert Taylor), que partilha o ecrã com Helen numa postura de desilusão face ao "novo" jornalismo (gaba-se de ter sido correspondente da Guerra do Vietname e é senhor para deselegâncias de última hora). Envenenado pela esposa, ele insiste em manter o lugar quando a sua saída era quase certa..No lado oposto da veterania está Noelene (Michelle Lim Davidson), uma jovem assistente de produção com as suas próprias ambições de produtora, mas sempre ciente de que o facto de ser mulher, e de origem coreana, não joga a seu favor num meio profundamente masculino - e, claro, um meio onde ser gay é uma nota de rodapé disfarçada até deixar de ser..Se esta e outras personagens de The Newsreader nos ajudam a entrar no espírito dos anos 1980, não é exatamente pela roupa e penteados (aí Anna Torv assegura, mais uma vez, o espetáculo de estilo on-air) mas pelo modo como transmitem a emoção de se trabalhar em conjunto numa altura em que, por exemplo, não existia Google. Voltamos àquela ideia de um tempo em que reportagem era sinónimo de saída impulsiva do escritório para se estar em cima do acontecimento e desenvolver contactos. Veja-se, no terceiro episódio, esse jornalismo de sangue na guelra que leva Helen a oferecer um cheque chorudo para entrevistar em exclusivo Lindy Chamberlain..A adrenalina está por toda a parte e mostra a tendência para uma filosofia de informação cada vez mais célere, que desafia a margem de erro. Nada que na essência esteja muito longe dos dias de hoje, embora a dinâmica ambiciosa das personagens e os seus dramas individuais contextualizados no ar do tempo forneçam outras camadas. A riqueza de The Newsreader passa pela vida que emana da sua boa escrita televisiva, em que cada peça conta para criar uma experiência conjunta, seja um pedaço da nostalgia dos objetos seja o brilho nos olhos de quem foi bem-sucedido numa reportagem. De resto, a correria e as discussões provam aqui que são o charme de uma classe que habita e é habitada pela tensão do mundo à sua volta - mas, diga-se de passagem, os tons de bege destes eighties são mesmo a cereja em cima do bolo..dnot@dn.pt