Testemunhas anónimas de assédio ameaçadas com revelação de identidade
"Isto é absolutamente vergonhoso e inaceitável! (...) Um Professor ou assistente que partilhe gravações áudio de entrevistas aos Órgãos de Comunicação Social de alunos/as vítimas de assédio moral ou sexual, gravações essas a que foi retirada a distorção de voz, identificando quem são, não pode ter lugar na nossa Faculdade! Não à impunidade! (...) A minha solidariedade para as alunas que, tendo dado entrevistas, são agora duplamente vítimas. Para deleite de alguns professores e assistentes."
A indignação, expressa no Twitter, é de Miguel Lemos, o assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) que impulsionou o combate ao assédio na escola, propondo criação de um mecanismo de queixa específico - o qual, como noticiado pelo DN, resultou em 50 queixas "validadas" em apenas 11 dias, e que na semana passada foi notificado de que lhe foi, por ordem do reitor da Universidade, instaurado um processo disciplinar.
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O docente refere-se à circulação de áudios de entrevistas concedidas a canais de TV por membros da faculdade, a coberto de anonimato e com voz distorcida, e aos quais foi retirada a distorção de voz, permitindo reconhecer os entrevistados, cuja identificação, incluindo nome e posição (há alegadamente um docente, um funcionário e vários estudantes) está também a ser partilhada. Uma exposição que, comenta ainda Miguel Lemos, "nega todas as entrevistas da diretora [Paula Vaz Freire] quando diz que não há um clima de medo e de tensão na faculdade", e o leva a propor a criação "urgente" na FDUL de "um estatuto de whistleblower para os alunos/as que deram entrevistas e que viram a sua identidade revelada. Importa garantir que não sejam prejudicados na sua progressão académica."
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Outra docente da FDUL, a professora de Direito Penal Inês Ferreira Leite, sublinha o caráter repressivo e condicionador da ocorrência: "Há um efeito dissuasor. As pessoas já tinham medo de se queixar, de falarem sobre as suas experiências. Se podiam falar sob anonimato a jornalistas, agora nem isso, ficam com receio de serem expostas. Do ponto de vista da prevenção geral é péssimo."
Lembrando que foram abertos processos disciplinares a dois docentes da faculdade que questionaram o statu quo - "O professor Jorge Duarte Pinheiro colocou em causa os critérios de um concurso para assistente no Conselho Científico e está com um processo disciplinar; o professor Miguel Lemos, por falar no Conselho Pedagógico da possibilidade de ter havido pressões sobre os alunos para não falarem de assédio, e por fazer uma pergunta, está com um processo disciplinar" -, algo que, comenta, "não se compreende", Inês Ferreira Leite conclui: "Não sei se a intenção foi pressionar, não posso dizer isso, mas tudo isto tem como efeito dissuadir as pessoas de exprimirem as suas críticas."
Por outro lado, esta penalista considera existir "um problema de quebra de confiança por parte das TV", que pode "inclusivamente implicar responsabilidade civil se se vierem a provar danos [se por exemplo alguém fosse sujeito a processo disciplinar e/ou despedido por causa da divulgação da sua identidade]". Quanto à responsabilidade penal, opina a jurista, "existiria se se provasse que havia um aproveitamento da gravação lícita, feita pelas televisões, e sujeição dessa gravação a meios ilícitos ou fraudulentos para conseguirem obter a identidade dos visados e a divulgação pública dessas gravações".
É possível porém que não tenha existido utilização de meios ilícitos: existem, como indicou ao DN um perito em meios digitais e se constata em fóruns na internet, programas de acesso livre que permitem reverter a aplicação de filtros para distorcer a voz.
Facto que alguns tuiteiros se apressaram a fazer notar, em resposta a um tuite da jornalista da RTP Rita Marrafa de Carvalho no qual esta denunciava a divulgação dos áudios "desencriptados".
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"Por curiosidade abri o vídeo da CNN no VLC [aplicação de áudio] e basta alterar o pitch [intensidade de som] para reverter a distorção das vozes em 30 segundos", escreve a conta @RGRebelo. Trata-se, explica este tuiteiro, de "uma distorção absolutamente amadora, sem qualquer fator de aleatoriedade nem múltiplos efeitos. Sem querer desculpar quem faz esta caça às bruxas, diria que as TV também saem muito mal desta situação. Uma distorção bem feita é irreversível, agora se aplicam simplesmente filtros como 'pitch shifting' qualquer pessoa com um PC [computador] reverte suficientemente o efeito." E sugere: "Se a intenção é ocultar mesmo a identidade dos entrevistados, usar a voz original ainda que distorcida hoje não faz muito sentido, há ferramentas de text-to-voice [texto para voz] que produzem um discurso mais inteligível e onde nem sequer há nada para reverter por não ser a voz original."
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Jacinto Godinho, jornalista da RTP e membro da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, tende a concordar com este tuiteiro: "Pode haver negligência se foi usado um filtro muito básico na distorção". Mas admite estar-se perante uma situação complicada do ponto de vista deontológico, já que "o jornalista garantiu o sigilo à fonte mas não percebe da técnica, e estão sempre a aparecer novas tecnologias. Tem de se ter a certeza de que a forma utilizada é segura."
Essa mesma ilação parece ter sido retirada pela direção de informação da RTP que, contactada pelo DN, "repudia e lamenta qualquer procedimento que possa pôr em causa o sigilo profissional e a proteção das fontes, princípios fundamentais no exercício do jornalismo e pilares essenciais do Estado de Direito Democrático", adiantando porém estar "absolutamente atenta a este fenómeno e encontra-se já a analisar e a aplicar formas alternativas aos meios tradicionais de proteção das fontes que permitam o exercício pleno e sem constrangimentos da atividade jornalística."
Também a TVI repudia "todas as práticas que possam revelar a identidade de fontes jornalísticas que solicitaram para sua proteção pessoal o anonimato", e considerando "de extrema gravidade" e "um ataque sem precedentes ao jornalismo e à liberdade de expressão" aquilo que descreve como "os factos agora relatados nas redes sociais".
E anuncia que "vai de imediato participar criminalmente contra os autores de tais práticas e solicitar a intervenção da Entidade Reguladora para a Comunicação Social e da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista para garantir o efetivo respeito pelo anonimato das fontes de informação."
NOTA: texto alterado às 22H04 para incluir a reação da TVI.
SEGUNDA NOTA: Esta sexta-feira, após a publicação deste texto, fonte da RTP assegurou ao DN que não estão incluídos testemunhos prestados àquela estação entre os objeto de alegada identificação.