Terminou o calvário dos 16 estrangeiros que viviam num petroleiro no meio do Tejo
Sexta-feira, 3 de maio de 2019, oito da manhã. Foi a essa hora que os 16 marinheiros do Rio Arauca pisaram finalmente terra. Depois de passarem meses atrás de meses ancorados ao largo de Lisboa, o Porto de Lisboa assumiu a responsabilidade de retirar estes homens e substituí-los por uma nova tripulação. Já em fevereiro, o Tribunal Marítimo tinha determinado que a sua condição era insustentável. Havia homens embarcados desde dezembro de 2017, a ver a capital portuguesa ao longe, sem nunca lhe poder tocar. Hoje voltam a casa.
São quatro ucranianos, um espanhol, um russo, um venezuelano, um polaco e oito cidadãos do Myanmar, a antiga Birmânia. Era destes últimos a condição mais grave - enquanto os oficiais eram revezados de seis em seis meses, os marinheiros asiáticos permaneciam a bordo períodos superiores a um ano. Não são permitidos pelas leis europeias, mas eram-no pelas Ilhas Marshall, país onde o navio tinha pavilhão.
O Rio Arauca chegou a Lisboa a 24 de julho de 2017 e foi imediatamente arrestado por dívidas, primeiro a credores internacionais, depois ao Porto de Lisboa. A cada dia que passa, aliás,a conta vai crescendo. Em novembro de 2018, o DN denunciou toda esta história numa série de reportagens chamada "O navio Invisível à vista de toda a gente".
Nessa altura, conseguiu falar com quatro tripulantes do Myanmar que tinham passado quase um ano a bordo. Falaram do desespero dos seus dias. "É como estarmos numa prisão, já ninguém aguenta mais", dizia então Thant Sin um dos tripulantes do petroleiro venezuelano. "Estamos presos sem culpa formada."
Esses homens tinham passado 11 meses e 11 dias a bordo, havia outros que já lá estavam há mais tempo e ali continuaram. E foi por isso mesmo que foram agora retirados. O despacho que o tribunal emitiu em fevereiro diz que, apesar de terem condições de salubridade, as autoridades não podiam impedir estes homens de abandonarem o navio. As queixas estavam a agravar-se.
A dívida venezuelana ao Porto de Lisboa ultrapassa os dois milhões de euros e está longe de resolvida. Aliás, continua a aumentar - 20 mil euros por cada dia que passa no Tejo. Por isso mesmo, o petroleiro vai continuar no Mar da Palha, em frente ao Terreiro do Trigo. Como não pode permanecer sem uma tripulação mínima de segurança, que garanta que o navio não bata contra um pilar da ponte caso parta a âncora, segue ainda hoje para bordo uma nova tripulação - que será provavelmente portuguesa e será rendida frequentemente até o caso estar resolvido.
O Rio Arauca está ao serviço da PDVSA, a petrolífera estatal venezuelana, que mergulhou numa crise profunda e tem vários navios arrestados por dívidas em portos de todo o mundo. Há vários outros petroleiros venezuelanos arrestados pelo mundo, dois deles - como noticiou a SIC em fevereiro de 2019 - no porto de Setúbal. Mas estão em terra, sem tripulação.
O que torna este caso absolutamente único é que a exploração do navio era venezuelana, o armador do barco era alemão e o seu pavilhão estava nas ilhas Marshall, o que impedia as autoridades portuguesas de deixarem o navio ancorar. Isso obrigava a manter uma tripulação a bordo e permitia que as estadias a bordo se prolongassem além do tolerável.
O navio era abastecido de dois em dois meses de comida pela Knudsen Suppliers, tal como o lixo era recolhido a cada trimestre pela Autoridade Marítima. Mas aqueles homens ali estavam, numa situação cada vez mais difícil de suportar. Como explicava um especialista em direito marítimo contactado pelo DN, "não era ilegal, mas era imoral."
A história do Rio Arauca ainda não terminou. O navio pode continuar no meio do Tejo durante anos - a menos que os tribunais determinem a sua venda para saldar a dívida. Mas há um problema que foi resolvido na sexta-feira, 3 de maio, e que durava há 616 dias - a liberdade dos homens que se viram presos no meio do rio.
As autoridades não os deixaram falar com a imprensa, seguiram diretos para o aeroporto. Por isso, o único relato que haverá do caso do Rio Arauca será provavelmente a dos quatro birmaneses que falaram do seu desespero em novembro. E nessa altura eles explicaram a sensação de alívio, e de que pareciam renascer de novo. Há, para todos os efeitos, uma crise a 6500 km de Lisboa que desaguou no meio do Tejo. E que lhes deu cabo de uma boa parte da vida.