O navio invisível à vista de toda a gente
Está mesmo em frente às Portas do Sol, um dos miradouros mais fotografados de Lisboa. Em bom rigor está mesmo diante do Terreiro do Trigo, a meio caminho entre Santa Apolónia e a Praça do Comércio. Os cruzeiros que chegam todos os dias a Lisboa passam-lhe rente, assim como os cinco mil passageiros que cumprem diariamente a viagem entre o Montijo e o Terreiro do Paço.
O petroleiro venezuelano Rio Arauca está arrestado por dívidas no meio do Tejo desde o dia 24 de julho de 2017. Ou seja, há um ano e quatro meses. Chegou a Lisboa com 26 homens a bordo, hoje tem 16 - a tripulação mínima de segurança. Se o cabo de âncora se partir, são eles os únicos a conseguir impedir que o navio embata contra a ponte, por exemplo.
Apesar dos oficiais serem rendidos de quatro em quatro ou de seis em seis meses, há membros da tripulação que embarcaram há mais de um ano e não voltaram a sair. O navio tem bandeira das ilhas Marshall, um dos países com as leis laborais mais flexíveis. Como diz o especialista em direito marítimo Vasco Becker-Weinberg, "o que está a acontecer não é ilegal, mas é desumano".
Há uma semana saíram quatro homens, todos birmaneses. Estiveram um ano a bordo e contaram ao DN o desespero que é viver a olhar para uma cidade, sem poder tocá-la. O suicídio a bordo é causa de 15 por cento das mortes na Marinha Mercante. "Era como se estivessemos presos, mas sem culpa formada", dizia Sin, de 29 anos. "Já não aguentávamos mais."
A cada dois meses há uma empresa que lhes leva abastecimentos - está a fazê-lo por missão humanitária e porque tem contratos antigos com a PDVSA, petrolífera estatal da Venezuela. Mas a verdade é que as autoridades e o armador não deixam ninguém subir a bordo para perceber o que se passa.
A história do Rio Arauca é, bem vistas as coisas, a história de uma hecatombe social e económica que está a acontecer a milhares de quilómetros - e desaguou no Mar da Palha. A altura em que a embarcação chegou ao Tejo é a mesma em que a OPEP anuncia o colapso do setor petrolífero venezuelano.
Hoje, Caracas está a produzir metade dos barris de crude que vendia há cinco anos. O país tem as maiores reservas de petróleo do mundo, mas a sua economia tem um problema de falta de diversidade. O setor representa mais de 95% das exportações venezuelanas.
Desde que o Rio Arauca chegou ao Tejo dois milhões de venezuelanos fugiram do país, 52% dos trabalhadores da PDVSA abandonaram os seus empregos, cada cidadão perdeu em média 11 quilos de peso. Nos mares, por onde circula a riqueza que pode salvar a Venezuela, o país viu mais de uma vintena de petroleiros serem arrestados por dívidas.
O que acontece em Lisboa é, no entanto, um caso único. A Venezuela deve neste momento mais de um milhão de euros ao porto de Lisboa por utilização das instalações - a cada dia que passa a dívida aumenta.
Mas como a PDVSA tinha alugado a embarcação a uma empresa cipriota em regime de leasing, a tripulação continua a ser paga para estar ali a fazer coisa nenhuma. Com pavilhão nas ilhas Marshall, vale a lei de um país do Pacífico Central - aqueles homens estão presos ali dentro um tempo que a legislação portuguesa, cipriota ou venezuelana jamais permitiriam.
Ao longo da última semana, o DN esmiuçou ao pormenor a história de um petroleiro que está no meio do Tejo há demasiado e em que ninguém aposta numa data de saída. São três capítulos para perceber ao pormenor este navio invisível à vista de toda a gente. Ao nosso lado, no meio do Tejo, estava escondida a tragédia do mundo.
Leia aqui:
Capítulo 3 - Como uma crise a 6500 quilómetros desaguou no Tejo