Capítulo 2: Um ano parados no meio do Tejo. "É como estarmos numa prisão. Já ninguém aguenta mais"
A noite de Ano Novo é capaz de ser uma das mais duras da vida de Thant Sin. Ao início da tarde do último dia de 2017 a mãe tinha-lhe ligado de Rangoon, antiga capital da Birmânia e hoje a segunda cidade do Myanmar, onde o homem nasceu há 29 anos. Lá era meia-noite, em Lisboa menos seis horas e meia. "Vais celebrar, filho?", e ele respondeu que sim, para a descansar.
Depois do jantar subiu ao convés do Rio Arauca, o petroleiro que desde 24 de julho do ano passado está arrestado por dívidas no meio do Tejo. Estava frio, mas deixou-se ficar ali sozinho a ver as luzes de Lisboa ao fundo. À meia-noite em ponto, mesmo ao seu lado, o céu explodiu.
Nos quase dez minutos que durou o fogo-de-artifício, Sin foi-se abaixo. "Foi a primeira vez que entrei num novo ano sem a minha mãe ao lado." Tradicionalmente, no seu país, segue-se o calendário budista - é em abril que muda o calendário. Mas a sua família era uma das poucas a cumprir a festa ocidental, culpa de um tio-avô que emigrara para a Austrália e trouxera a novidade no regresso. "Custa-me muito falhar o 31 de dezembro."
Ao mesmo tempo que o céu explodia, ele chorava. Na véspera tinham-lhe dito que tão cedo não abandonaria as águas do mar da Palha e, se ao menos pudesse andar em mar aberto, tinha o que fazer e tinha com que distrair-se. Mas naquela noite, primeiro a ver o fogo e depois a ouvir a alegria da cidade que entrava em 2018, sentiu-se terrivelmente sozinho. "Foi quando percebi que tinha ido parar à prisão sem culpa formada. Não foi isso, afinal de contas, que nos aconteceu?"
Quando chegou a Lisboa, há um ano e quatro meses, o Rio Arauca trazia 26 homens a bordo. Sin era um deles, atravessara todo o Atlântico desde a Venezuela até Setúbal, e daí até à capital portuguesa, onde o petroleiro foi arrestado. "Sou marinheiro de convés há quatro anos, estou habituado a fazer comissões de nove meses no mar e três em terra. Foi a vida que escolhi e não me queixo."
O que lamenta, na verdade, foi o que lhe aconteceu depois da chegada a Lisboa. O navio sofreu em julho o primeiro arresto por dívidas a países do Médio Oriente, a quem Caracas tinha assinado contrato de fornecimento de crude. Em outubro as compensações foram repostas e nessa altura Sin pôde sair da embarcação. Passou quase três meses na Birmânia, ou Myanmar, e voltou a embarcar no Tejo a 6 de dezembro de 2017.
"Fizeram-me um contrato de nove meses" - coisa que só acontece porque o petroleiro tem pavilhão nas ilhas Marshall, um dos países que garante menos direitos aos trabalhadores marítimos - "e, como já não havia arrasto, pensei que os ia passar no mar, como de costume". Está habituado à ondulação, aos dias em que o horizonte é da cor do céu. Insuportável não é passar muito tempo dentro de um navio, antes de um navio que não pode ir a lado nenhum.
Na véspera de ano novo os homens foram avisados de que o Tribunal Marítimo de Lisboa tinha dado uma segunda ordem de penhora ao Rio Arauca, desta vez por dívidas ao porto da capital portuguesa. E foi nessa altura que perceberam que estavam ali presos. "Acabei por ficar onze meses e dez dias e já não aguentava mais", disse ao DN na noite de sexta-feira, quando finalmente desembarcou. "Já ninguém aguenta mais. Há homens que estão lá dentro há um ano, sem nada para fazer." À espera de coisa nenhuma. É esse o seu desespero.
Em outubro, findo o primeiro arresto, toda a tripulação do navio foi rendida, 26 homens substituídos por outros tantos. Mas o SEF garantiu que houve mais desembarques - 20, aos quais se somam os quatro que saíram na última sexta-feira. De quatro em quatro, ou de seis em seis meses, os oficiais a bordo continuam a ser substituídos. A tripulação, essa, está praticamente toda há um ano a bordo.
O primeiro comandante era canadiano, hoje é russo. Os primeiros tripulantes eram essencialmente venezuelanos, hoje são todos birmaneses. Na semana passada, como já se viu, desembarcaram quatro: Thant Sin, o marinheiro de convés de 29 anos, Chan Aung, que tem 24 e é empregado de câmara, Thura Lwin, mecânico de 46, e Myint Tun, chefe cozinheiro de 47. Os dois primeiros dão a cara pelo ano que passaram a bordo, os dois segundos apenas o nome e a idade - têm muita família no mar e temem represálias.
Aung, o miúdo, diz-se um bocado traumatizado. "Foi a minha primeira comissão. Eu vinha com sede de aventura e o que vivi foi um teste, sim, mas contra o tédio." O dinheiro que ganha é bom, dá-lhe para ajudar a família, e por isso não nega outra comissão. "Mas nunca mais quero estar um ano num navio fundeado ao lado de uma cidade, porque isso lembra-me todos os dias a vida que estou a perder."
Cada homem tinha o seu quarto, mas Aung decidiu tapar a vigia do seu - melhor a escuridão do que uma visão torturante. "Passava os dias ao computador, ligava tantas vezes de Skype à minha família que um dia foram eles próprios a pedir-me para não o fazer tantas vezes." Na Birmânia, afinal, a vida seguia. A sua é que tinha sido interrompida.
"Neste caso, não há nenhuma lei que tenha sido violada", diz ao DN Vasco Becker-Weinberg, especialista em direito marítimo e professor na Universidade Nova de Lisboa. "Mas isso não quer dizer que esta situação não seja eticamente reprovável. Passar um ano dentro de um navio sem poder sair, à vista de uma cidade, é desumano."
De dois em dois meses, a Knudsen Suplliers transporta para bordo do Rio Arauca os abastecimentos necessários. "Fome não passam, levamos-lhes um cabaz com produtos iguais ao que qualquer família portuguesa gasta em casa", disse Paul Knudsen, que comanda essas operações. "Tabaco e bebida é que não entram, e é mais difícil uma tripulação não ter acesso a isso quando não há nada para fazer."
Tun, o chefe cozinheiro, nunca se empenhou tanto atrás dos tachos como nesta comissão. "A hora das refeições era a única distração, por isso eu tinha de aprumar-me. Cheguei a assar leitões, todos os fins de semana fazia um bolo, recheava os bifes de frango e fazia risotos em vez de fazer só arroz simples. E assim as coisas acalmavam."
Todos os sábados, o comandante do Rio Arauca organiza um exercício de simulação de incêndio a bordo, para que os homens tenham o que fazer. "Verificamos as máquinas diariamente, o que às tantas se torna também aborrecido", diz Lwin, o mecânico. "Nada parece fazer sentido, mas o que é que faz sentido quando se passa um ano a bordo de um navio que não se mexe?"
Lwin tem uma teoria. Só há dois motivos para ainda não ter havido um motim a bordo. "O primeiro é que os salários continuam a ser pagos." E isso acontece porque, apesar de a frota petroleira da Venezuela estar em falência, apesar de haver cada vez mais poços, barris de crude e navios abandonados, a tripulação é contratada por um armador cipriota a quem Caracas aluga as embarcações em regime de leasing.
Mas o principal motivo, diz ele, é cultural. "Se cá tivesse ficado uma tripulação venezuelana, como a que chegou originalmente a Lisboa, tinha havido protestos e revolta." São latinos, explica, e os latinos fervem em pouca água. "Nós somos budistas, estamos habituados a ouvir o arroz crescer." A paciência birmanesa está a aguentar um petroleiro no mar da Palha, que ninguém sabe quando irá sair.
Leia sexta-feira no DN online o terceiro e último capítulo desta reportagem: Como uma crise a 6500 quilómetros desaguou no rio Tejo.