Lembro-me....de Corleone, uma vila siciliana, perto de Palermo, Itália. Todos os lugares do mundo têm uma lista dos filhos da terra mais ou menos célebres. Na lista dos dez de Corleone, só Placido Rizzotto (1914-1948) não foi da Mafia. Sindicalista, foi morto por ela; os outros foram todos gangsters. E alguns deles poderosos, como Salvatore Riina, chefão da Mafia e assassino do juiz Giovanni Falcone. Isso entre as pessoas de carne, osso e pistolas reais, porque o natural de Corleone mais famoso do mundo é uma personagem de ficção. Miúdo, Vito Andolini viu toda a família abatida por um chefe de clã, fugiu da sua Corleone natal e foi para Nova Iorque. Quando lá chegou, trocou o patronímico familiar pelo nome da terra. Vito Corleone, que irá tornar-se Don Vito Corleone, O Padrinho. Na lista das dez mais famosas personagens da história do cinema..Lembro-me....da primeira sensação no primeiro O Padrinho, uma música de Nino Rota. O cinema, a arte da imagem em movimento, ali, começou por ser um trompete solitário, longo e lento. O Padrinho era um monumento, soube-o, ainda não havia ainda uma palavra, nem uma imagem. A seguir, surgiu um imigrante italiano, já rico, queixando-se: "Eu acredito na América..." Mas a filha fora vítima de abuso sexual e a justiça de nada serviu. Aquele que o escutava, mas ainda não víamos, diz-lhe: "Foi à polícia, mas não veio a mim primeiro...".Vemos, então, Don Vito Corleone pela primeira vez. Um Marlon Brando que falou de voz partida, em sussurro e suave, de quem tem muita autoridade e firme. O queixoso queria pagar-lhe para fazer por ele a vingança da filha, mas Don Corleone quer mais. Então, o comerciante inclinou-se e beijou-lhe a mão. Só seis minutos e eu já sabia que o filme era sobre a família e sobre o poder. Não sabia ainda que haveria quase n horas de tanto prazer, repartidos por três filmes..Lembro-me....que ao longo de tantos minutos de O Padrinho (1972), O Padrinho II (1974), O Padrinho III (1990) nunca ouvi, nem uma só vez, a palavra que alimentava aquelas histórias: nem na versão conhecida de todo o mundo, Mafia, nem na versão siciliana, Cosa Nostra, nem na americana, Mob. Em 1971, quando se soube que a Paramount contratara Francis Ford Coppola para levar ao cinema o livro de Mario Puzo, o chefão de uma das famiglias mafiosas de Nova Iorque, Joe Colombo, ameaçou com qualquer ligação da comunidade italo-americana ao crime organizado..O estúdio achou prudente fazer um acordo: cortou aquelas palavras em todas as cenas do filme e contratou mafiosos reais para darem lições à ficção. Meses depois, no dia da festa da Unidade Italo-Americana, na Praça Colombo, em Nova Iorque, Joe Colombo foi baleado com três tiros na cabeça por um falso fotógrafo. A famiglia Colombo estava em guerra com a famiglia Gambino - e a pólvora não era seca, nem o sangue tinta de palco..Lembro-me....que Johnny Fontana, um crooner (como Frank Sinatra), estava com o astral em baixo (como Sinatra depois de Ava Gardner o abandonar) e queria entrar num filme (como Sinatra, com Até à Eternidade). Mas o patrão do estúdio recusou (como a Sinatra, os estúdios Columbia, em 1953, no filme de Fred Zinnemann). Quando, pois, a personagem de ficção Johnny Fontana se queixou da intransigência de Hollywood, Don Vito Corleone tranquilizou o afilhado: "Vou fazer-lhe uma oferta que ele não pode recusar.".E mandou o seu consigliere Tom Hagen (Robert Duvall) a Los Angeles. O produtor convidou o enviado para jantar - Hollywood conhecia a força da Mafia - mas, arrogante, ele insistiu em não dar o papel ao cantor protegido pela Mafia. Hagen ouviu a recusa: "Gostei muito do jantar mas tenho de ir já para o aeroporto porque o Sr. Corleone gosta de ouvir logo as más notícias." No dia seguinte, na mansão de Beverly Hills, o produtor acordou nos lençóis de seda com uma sensação desagradável: dormia ao lado da cabeça cortada do seu cavalo preferido. Johnny Fontana conseguiu o seu papel no filme e relançou a carreira. Parece tudo ficção, mas em O Padrinho a cabeça do cavalo nos lençóis não era um boneco, fora comprada de manhã no matadouro. Sinatra também acabou por entrar em Até à Eternidade, ganhou o Óscar de melhor ator secundário e relançou a carreira... E, agradecido, cantou sempre nos casinos da Mafia, no Nevada..Lembro-me....que um filme - e por maioria de razão uma trilogia - é feito também de frases e imagens metafóricas. Se a cabeça cortada de um cavalo é a "oferta que não se pode ignorar", que sentido faz um peixe embrulhado num colete? No fim da II Guerra Mundial, parte da Mafia compreendera já que não podia desperdiçar o mais lucrativo dos negócios criminosos, a droga. Vito Corleone opunha-se, mas até o seu filho e herdeiro Sonny (James Caan) e o seu filho adotivo e consigliere Tom Hagen aconselharam-no a ouvir as propostas dos clãs que já estavam metidos no tráfico de heroína..O guarda-costas de Don Corleone era Luca Brasi, o mais bruto dos seus homens (ironia, o ator era o profissional de luta-livre Lenny Montana, que gaguejava de emoção nas curtas deixas quando contracenava ao lado do mítico Marlon Brando). O Padrinho enviou esse mais temível e também mais leal dos seus homens saber o que queriam os outros capos da Mafia. O guarda-costas acabou estrangulado e deitado ao rio. O peixe embrulhado era anúncio de que Brasi dormia com os peixes; e a escolha de matar Brasi, o mais temível dos soldados da Mafia, pretendia demonstrar que Don Corleone já era..E lembro-me de frases simplesmente frases. De Sollozzo, um dos capos que queriam passar para negócio da droga: "Não gosto da violência, Tom, sou um homem de negócios e o sangue é muito caro." De Peter Clemenza, um mafioso funcionário que foi comprar cannoli (doces) que a mulher lhe pediu e, de caminho, foi matar um traidor como o chefe lhe ordenou. Num descampado, Clemenza saiu para urinar enquanto um cúmplice tratou do assassínio. O funcionário voltou ao carro e disse ao colega: "Deixa a arma e traz os cannoli." A banalidade do mal e sem ideologia... Filme O Padrinho: começa-se com grande música e vai-se por aí fora com grande literatura..Lembro-me....das laranjas espalhadas numa rua (Mott Street?) de Little Italy, Manhattan, quando Don Corleone as comprou num pequeno comércio e foi abatido. Décadas antes, em O Padrinho II (a trilogia tem sequelas e prequelas, causas e consequências, e vice-versas), em outra rua de Little Italy (Murberry Street?), Don Fanucci passeava durante a procissão de São Rocco - ainda não era a Mafia, era a Mão Negra, menos forte, menos inteligente e tão brutal. Fanucci é um exibicionista, fato branco, gravata com cachucho, dente de ouro e acenos de cardeal - desprezava os compatriotas imigrantes acabados de chegar e o negócio dele era a extorsão dos pobres. Quando passou por uma carroça de laranjas, pegou uma, ostensivamente, sem olhar para o pobre diabo do comerciante. O que ele queria era seu. Fanucci não sabia que estava a ser seguido por Vito Corleone, que sabia que o pantomineiro não tinha força, só passava ao bairro a ideia de que tinha. O jovem Vito (ainda não Marlon Brando, mas Robert de Niro) irá matá-lo e fazer do crime um negócio mais sério, inteligente mas de laranjas igualmente agoirentas..Lembro-me....que o atentado a Don Corleone tornou uma ópera lenta e majestosa um frenesim de acontecimentos. Mas sempre com a noção do Guerra e Paz, onde há galopadas na invasão da Rússia e precipitada retirada de Napoleão, e tudo não deixa de ser contado com tempo e arte. Há tempo para tudo, mas não para todos: azarinho de Sonny e de Tom Hagen e dos seus respetivos atores, James Caan e Robert Duvall..Os cinco tiros ao Padrinho atiram-no para o hospital e Sonny tomou as rédeas da poderosa indústria da famiglia. A guerra entre clãs, porém, teve uma consequência maior: o irmão mais novo dos Corleones, Michael (Al Pacino), criado para uma vida dentro da lei, que o heroísmo de soldado na II Guerra Mundial augurava, decidiu por dever de família (sentido moral, não de crime) tornar-se mafioso. Mata para vingar o pai e teve de se exilar para a terra de origem da família, Corleone, Sicília..Entretanto, Sonny foi morto em Nova Iorque na guerra entre mafiosos. Esqueçam o drama do filme, fiquem com a tragédia do ator: James Caan, que começou por ser indicado para ser Michael, ao ser o filho Corlene que mais depressa chegou a topo acabou por ter uma vida que durou só um O Padrinho, em vez de três. O sucesso colossal da saga deixou-o com um sentimento de injustiçado, nunca tendo mais um papel no cinema do mesmo nível. Caan passou por papéis menores, um deles em série de TV sobre a vida num casino (Las Vegas), o que lhe deve ter trazido memórias mafiosas amargas..Já Robert Duvall, depois de aconselhar o "rei" sucessivo - o pai Vito e os irmãos Sonny e Michael, em O Padrinho e O Padrinho II - recusou-se a ganhar muito menos do que o cachê de Al Pacino. Perdeu O Padrinho III, que teve o canastrão George Hamilton como consigliere, que é como se a Madre Teresa fizesse o papel de Madonna. Felizmente para o cinema, Coppola, dez anos antes de rodar o seu último O Padrinho, em 1979, aproveitou Robert Duvall, em Apocalypse Now, para nos aconselhar a inspirar de manhãzinha o bom cheiro do napalm numa praia do Vietname..Lembro-me....de a estada de Michael na Sicília ter sido marcada por uma das mais desperdiçadas tangentes à glória: a desconhecida atriz Simonetta Stefanelli mostrou o belo olhar no seu casamento com Michael Corleone. Olhar ainda mais belo porque acompanhado pelo esplendor de mais uma música de Nino Rota: Apollonia, chama-se o tema, o nome da personagem interpretada por Stefanelli. Depois, ela entrou para um carro e explodiu, em vez do marido, para quem estava destinado o atentado..Aparentemente, Simonetta Stefanelli morreu mesmo. No ano seguinte à sua prestação-cometa, 1973, posou nua para a Playboy. Hoje tem uma loja de malas, a Simo Bloom, na Via Chiana, em Roma. Depois da invenção da internet, é anunciada regularmente a sua morte. Os fascinados espectadores da saga de O Padrinho tendem a acreditar no essencial tão bem contado por Coppola..Lembro-me....que O Padrinho foi estreado nos Estados Unidos em março de 1972. John Wojtowicz, um rapaz apaixonado por um travesti que se fazia chamar Elizabeth, foi ver o filme de Coppola para saber como se assaltava um banco. Ele precisava de dinheiro para a cirurgia que mudaria o sexo do seu amor. A 22 de agosto, Wojtowicz e dois cúmplices (Elizabeth não sabia de nada) assaltaram o banco Chase Manhattan, em Brooklyn, e correu mal. O Padrinho, como todas as obras de arte, não era bom livro de instruções. Fizeram-se sete reféns no banco, durante vários horas, multidão na rua e suspense de TV na América. Um dos assaltantes morreu e Wojtowicz e o outro cúmplice foram presos e condenados. Disto, em 1975, o realizador Sidney Lumet fez o filme Um Dia de Cão, e escolheu dois irmãos de O Padrinho, Al Pacino (Michael) e John Cazale (Fredo). Preso, o assaltante de banco Wojtowicz, que se inspirara (mal) em O Padrinho, recebeu uns milhares de dólares por ter inspirado Um Dia de Cão. Deu parte do dinheiro a Elizabeth, que fez a operação e casou-se com outro..Lembro-me....que ao voltar para os Estados Unidos, Michael tornou-se Don e casou-se com Kay (Diane Keaton), antiga namorada, beta e alheia aos costumes bárbaros dos sicilianos. Ela está convencida de que o marido ia regenerar-se e aproveitar a acumulação primitiva do capital feita no crime (diria Karl Marx) para aplicar esse dinheiro em operações honestas (como jurava o novo padrinho Corleone)..Os sicilianos são bons e maus. Há Carlo, cunhado dos irmãos Corleone, casado com Connie, a única filha de Don Vito Corleone - e bate-lhe. Há Sonny, que não admite que batam na irmã (na década de 1940 já havia sicilianos e mafiosos, que não deixavam certas mulheres, as irmãs, pelo menos, levar porrada) e agride o cunhado Carlo. Este, por causa da repressão familiar, conluia-se, de forma escondida e traidora, com outros chefes mafiosos. Foi com Carlo que se preparou o assassínio de Sonny..Chegado à sua vez de ser capo, Michael manda matar Carlo. Isto chega aos ouvidos e à convicção vacilante de Kay. O marido é aquela coisa esquisita de chefe de criminosos? Por uma fresta de porta, ela vê o seu Michael, que conheceu nas melhores universidades da Costa Leste, a receber o beijo na mão dos seus súbditos. Sim? Não? Oh, a dúvida do género humano, quando lhe interessa não querer saber....Lembro-me....do melhor ator de toda a saga, John Cazale, tão perto da morte real (por cancro), e um Fredo tão frouxo num mundo de durões. Fredo, daqueles que traem, não por maldade mas por fraqueza. Olhos esquivos, mãos suadas e a suspeita de que só sobrevive porque na famiglia manda a família. Mas que também sabe que será da família que virá o castigo. Um dia, morre la mamma do clã, a viúva de Don Vito Corleone. Há muito, Michael sussurrara a Fredo: "Eu sei...".Por dever com a família, Michael manda um capanga levar Fredo para o meio do lago, um bote. Não volta, Fred foi dormir com os peixes. Michael sabe que cometeu o pecado que não queria. Isto é a última cena de O Padrinho II. Ao longo de todo O Padrinho III, ele ainda ali estava.