"Era Atena, não Afrodite: uma guerreira, um príncipe das trevas. Com a mente de um filósofo europeu e a aparência de um mosqueteiro, reunia qualidades anteriormente combinadas em homens. A novidade é que agora se encontravam concentradas numa mulher - e, para gerações de mulheres artistas e intelectuais, essa combinação proporcionou um modelo mais potente do que qualquer outro que conhecessem." Assim descreve Benjamin Moser a norte-americana Susan Sontag (1933-2004), na biografia Sontag - Vida e Obra, que lhe valeu o Pulitzer em 2020 e chega na próxima semana às livrarias portuguesas. Uma publicação em sintonia com o grande ciclo do mês de março na Cinemateca, intitulado Imagens de Pensamento, uma via alternativa para (re)descobrir uma das mais proeminentes (e fotografadas) intelectuais do século XX, filósofa, professora, ensaísta, ficcionista, ativista pelos direitos humanos, muito particularmente os das mulheres, e também... cineasta..É esta última faceta que o ciclo recupera, juntamente com mais de uma dezena de filmes que se relacionam com o seu universo de ideias, e outros que constam nas suas listas de predileções cinéfilas, seja um clássico de Hollywood como O Diabo é uma Mulher (1935), esse derradeiro título da dupla Josef von Sternberg/Marlene Dietrich, uma delícia de série B como The Tingler (1959), de William Castle, ou o perturbadoramente moderno Gertrud (1964), do dinamarquês Carl Th. Dreyer..Susan Sontag realizou quatro filmes, e todos eles são canais dramáticos para as suas ideias e metáforas em movimento..Era uma escritora em ascensão quando, em 1968, um adido cultural da embaixada sueca lhe fez o convite para realizar um filme em Estocolmo. Tratava-se de um gesto de diplomacia inerente ao esforço de internacionalização do cinema sueco, que passara já pelo financiamento de filmes de Jean-Luc Godard e Agnès Varda, entre outros realizadores. Mas era também uma forma de reconhecimento: para além do famoso livro Contra a Interpretação, lançado por essa altura, um outro ensaio que Sontag escrevera sobre A Máscara (1966), de Ingmar Bergman, tinha despertado a atenção dos suecos para a sua chama intelectual. Sem demora, ela dedicou-se ao argumento de Dueto para Canibais (1969), que foi a sua primeira longa-metragem, e é o título de abertura do ciclo, nesta sexta-feira (19h00)..Feito com toda a liberdade, em negação de um cinema refém do enredo (e com notas godardianas), Dueto para Canibais avança como uma acumulação de peripécias mais ou menos surreais, que dão conta de uma bizarra encenação - os próprios atores não perceberam bem qual era a ideia de Sontag. E, no entanto, o seu "pensamento erótico" faz pulsar toda a estética neutra do filme, que acompanha Tomas, o secretário de um revolucionário exilado na Suécia, Bauer (personagem inspirada no filósofo Jacob Taubes), que se deixa envolver nos estranhos jogos de sedução da esposa italiana deste último. Funciona como um enigma em torno das relações de poder, com uma certa perversidade lúdica, e onde a dada altura se lê, numa parede, "Parem a disseminação de armas nucleares", e num livro, "Ho Chi Minh [revolucionário vietnamita] disse que não há pessoas más, apenas governos maus." Frases com ecos súbitos dos dias que a Europa está a atravessar....Não muito depois de Dueto para Canibais, Susan Sontag voltou a Estocolmo para realizar a sua segunda longa-metragem de ficção, Bröder Carl (1971) - em tradução direta, Irmão Carl -, um filme de material mais pesado, que acentua o quadro humano do anterior, com laivos de A Máscara e, tal como este, com a ação concentrada numa ilha. A própria considerou-o uma obra superior a Dueto para Canibais, quer na montagem e na sofisticação do som, quer nas relações entre as personagens, "mais complexas". Bröder Carl tem a sua primeira exibição amanhã (21h30)..Prosseguindo na linha das realizações para o ecrã, Promised Lands (1974), o seu único documentário, sobre o conflito israelo-palestiniano, é, como escreve Benjamin Moser na biografia, "uma metragem física, visceral. A câmara demora-se sobre texturas: do deserto, das ruas das cidades, do equipamento com que a guerra [do Yom Kipur] - ainda em plena fúria durante as filmagens - era conduzida." Um filme que chega ao osso da condição humana (passa no dia 7, 21h30), e que está muito longe de Viagem Turística Sem Guia/Carta a Veneza (1984), o título que Sontag assinou no âmbito de uma série produzida pela RAI, Per un Viaggio in Italia, com a cidade de Veneza a testemunhar a crise de um casal. Para ver no dia 9 (19h00)..Enquanto cinéfila, Sontag identificava no ritual da sala escura um caráter de religião mundana. "Era a partir de uma visita semanal ao cinema que as pessoas aprendiam (ou tentavam aprender) a andar com elegância, fumar, beijar, zangar-se, entristecer-se. Os filmes davam-nos dicas sobre como ser atraente", escreveu num artigo para o The New York Times, em 1996. E se alguém assimilou esses ensinamentos de pose cinematográfica foi a própria. Estamos a falar de uma das figuras das letras de Nova Iorque que mais atraiu as objetivas dos fotógrafos do seu tempo. Uma cinéfila, brevemente cineasta..dnot@dn.pt