Sucesso do Escritaria com Germano Almeida vai levar evento literário a Cabo Verde
Meia hora antes da inauguração da frase que regista a homenagem ao escritor cabo-verdiano Germano Almeida na 14ª edição do Escritaria já o funaná se fazia ouvir, mesmo que dançado por alguns como se de viras minhotos se tratasse. Nem a chuva impedia que a marca de Cabo Verde ficasse em Penafiel em mais uma edição do evento, com uma presença bem visível na decoração espalhada pelas ruas da cidade. Cartazes com a obra, ilustrações de rua com a imagem do autor, faixas e as já célebres caixas de cartão com a foto do autor e um episódio dos seus livros postas ao virar de cada esquina para os leitores levarem para casa.
Desta vez, o Escritaria foi mais longe e encheu o céu da cidade com inúmeros chapéus de chuva com referências aos livros de Germano Almeida, sem esquecer o primeiro, O Testamento do Sr. Nepomuceno, onde este adereço era peça fundamental. Mas o livro que sempre é lançado nas edições deste encontro literário é o mais recente da vida literária de Germano Almeida, A Confissão e a Culpa, aquele que dá fim à Trilogia do Mindelo, sucedendo a O Fiel Defunto e O Último Mugido, onde relata o assassinato inesperado do mais importante escritor de Cabo Verde por um amigo.
O mais recente romance era inesperado na carreira de Germano Almeida e, tal como o volume dois da trilogia, só viu a luz do dia porque os leitores foram exigindo mais explicações para o ato criminoso e o autor sentiu-se na obrigação de continuar o relato, mudando a perspetiva do olhar. Talvez fosse possível ter ficado pelo primeiro volume e não ter chegado à trilogia, no entanto Germano Almeida define-se ele próprio como um "contador de estórias" e as imensas particularidades do assassinato fizeram com que se embrenhasse no esclarecimento de todos os factos.
A publicação de a Trilogia do Mindelo coincidiu com a atribuição do Prémio Camões e desde esse ano de 2018 que Germano Almeida ficou refém do assassinato do escritor Lopes Macieira, um dos muitos alter-egos que o autor coloca nos seus livros e que foi um dos temas de debate nas várias sessões do Escritaria. Às quais os leitores acorreram em grande número, muitos deles com os romances de Germano Almeida na mão, originando longas filas de autógrafos. No entanto, o mais inesperado foi a presença do ministro da Cultura de Cabo Verde, Abraão Vicente, e o impacto que esta 14ª edição lhe provocou, tendo rapidamente anunciado que esta homenagem a Germano Almeida não se iria ficar por Penafiel. "Já está combinado com o presidente da Câmara, Antonino de Sousa, que no próximo ano vamos fazer no Mindelo um evento igual a este", disse, especificando que o "igual" era mesmo verdade, pois toda a conceção gráfica será reproduzida na cidade cabo-verdiana como se se estivesse nas ruas de Penafiel. Um anúncio que o autarca aproveitou numa das sessões seguintes para lamentar que tenha sido a primeira vez que um ministro da Cultura se deslocou ao Escritaria e fazendo notar que não era português mas "o de Cabo Verde".
Ao longo de todas as edições do encontro literário que se tornou especial por ser dedicado apenas a uma figura da escrita há sempre um momento que dá início oficial ao programa: a inauguração de uma silhueta (uma espécie de busto) de autoria de Ricardo Crista num dos locais principais da cidade e de uma frase escolhida pelo escritor para provocar os leitores. Germano Almeida escolheu a seguinte frase para ser colocada uma instalação de Daniel Oliveira: "Mais do que um direito, a leitura é sobretudo um prazer, apenas igualado pelo prazer da escrita."
Não muito longe estão outras silhuetas e outras frases de alguns dos autores que já passaram por Penafiel nesta peregrinação literária, tendo sido o primeiro Urbano Tavares Rodrigues, a que sucederam, entre outros, José Saramago, Lobo Antunes, Mário Cláudio, Mário de Carvalho, Miguel Sousa Tavares, Lídia Jorge, Alice Vieira, bem como autores da lusofonia como Pepetela e Mia Couto.
Uma das particularidades deste evento, além de uma cada vez maior receção por parte dos leitores da região, tem sido a reação dos próprios homenageados. Num país em que o elogio oficial é pequeno ou inexistente, os autores ficam surpreendidos por aquilo com que se confrontam ao chegar a Penafiel. Germano Almeida não foi exceção e o momento em que descerrou a sua silhueta e a frase fez com que se emocionasse. As suas palavras poderiam ser as de qualquer um dos seus personagens: "Muito bonito" e "muito bem feito", acompanhadas de sorrisos largos ao ver-se reproduzido nos cortes numa chapa metálica com o seu rosto e das letras da frase pregadas sobre madeira. Depois da surpresa, elabora mais o sentimento: "Não esperava que o Escritaria fosse tão intenso!" Momento depois, continua: "Eu nem me considero um escritor a sério." Quando perguntam se lhe agrada estar assim reproduzido em Penafiel, não resiste: "É uma paródia!"
Germano Almeida não aguardava pelo que lhe está a acontecer. "Aceitei porque era uma oportunidade para conhecer mais gente, ter encontros com gente do norte de Portugal aonde nunca fui. É tudo tão inesperado... o clima é diferente (esteve frio e chuvoso), mas sente-se o calor das pessoas..." Aproveita para se dizer espantado com o facto de estar mau tempo: "Quando venho para Portugal nunca chove, não sei o que se passa com o Divino desta vez!" E não deixa de se mostrar agradecido pelo que está a acontecer à sua volta: "Escrevo pelo prazer da escrita, não pelo reconhecimento. Mas é evidente que gostamos destes reconhecimentos, destas homenagens, embora não viva em função delas".
Entre as várias exposições para divulgar a obra e a vida de Germano Almeida está a habitual "biografia" do homenageado na Biblioteca Municipal. A diretora, Adelaide Galhardo, guia o autor pelas etapas da mostra, que conta com a participação de estudantes e de artista na reprodução de um percurso. Estão lá todos os livros de Germano Almeida, até um que foi comprado na Alemanha, informa a diretora. No exterior destaca-se a palavra "mantenhas" que quase ninguém sabe o significado: "Cada vez que falava com a Filomena, a mulher do escritor, ela dizia isto. Fui procurar o significado e descobri que queria dizer "bem-vindo". Uma chuva de guarda-chuvas enxameia a entrada, com gotas de papel presas onde os títulos dos romances se destacam.
Antes de entrar no edifício, cantares cabo-verdianos esperam o escritor, bem como a teatralização de um dos seus livros. Depois, no interior, Almeida volta a surpreender-se com o périplo ilustrado sobre a obra, fruto de muitos meses de leituras e de pesquisas. Há quadros Bruno Santos que traduzem a influência portuguesa ou a presença da "visão ácida de Eça"; de Carla Anjos que traduzem o livro O Mar na Laginha e D. Pura. Entretanto, os leitores aproximam-se do escritor e querem falar com ele, pedem um autógrafo, outros escutam a interpretação das obras de uma forma inédita como é a realizada através de tantas ilustrações. "Há uma frase presa numa parede que serve de princípio de conversa: "Se não posso brincar comigo não posso brincar com os outros", resumo perfeito para as ilustrações gigantescas que põem o autor ao lado de algumas das suas personagens. E volta a repetir: "Considero-me um contador de estórias e não quero ser outra coisa". Noutra parede estão várias expressões em crioulo e fica-se a saber que o escritor é canhoto e em Cabo Verde a palavra que o designa é cachimbo, bem como uma frase do autor sobre as duas línguas: "O crioulo é a nossa língua, mas o português é o meu instrumento". Ao fim de mais uns bons minutos, Germano Almeida diz antes de partir: "Muito interessante... tenho de voltar a ver isto tudo".
A apresentação do novo romance é feita pelo editor Zeferino Coelho e pelo jornalista Luís Ricardo Duarte, sendo A Confissão e a Culpa descascado até ao osso. Para o segundo, é um "labirinto de tramas que fecha a trilogia" após um "assassinato nada discreto", mais 250 páginas que com os dois anteriores perfazem um milhar de páginas por onde passa a sociedade de Cabo Verde em todos os aspetos. Duarte provoca Germano Almeida ao dizer que desconfia poder haver ainda mais um volume e a resposta parece ser negativa, pelo menos por agora: "É o relato na primeira pessoa que faltava e uma informação que pode dar o fecho. Esta história não parte de um facto conhecido que me inspirasse. Eu estava sentado, aborrecido, e decidi começar a escrever para me distrair. Ao fim da tarde já tinha sessenta páginas! A princípio, não estava previsto uma continuação, mas a viúva quer transformar o escritor num herói e depois do enterro e da decisão de incinerar o marido numa pira em praça pública, os leitores quiseram saber mais e a verdadeira razão por que matou. Ou seja, porque assassinou o amigo. Era um romance que pedia continuação."
Para Zeferino Coelho, o primeiro volume mostra como as histórias estão todas agarradas umas às outras e dá a perceber todos os personagens menos o do assassino. Desconfia-se e cria uma perplexidade perante os acontecimentos. A pergunta que fica é está a história completa?" Germano Almeida responde que não idealiza os personagens por antecipação: "Num primeiro livro, fiz um esquema, mas não cumpri o que preparara. Não nasci para isso." O editor refere que Germano Almeida é dos autores de língua portuguesa o que mais tem personagens diferentes e isso viu-se logo no livro A Ilha Fantástica, onde cabe o mundo inteiro." Não deixa de o elogiar: "Após os autores claridosos, Germano Almeida é um dos mais importantes; depois deles é um vazio que só ele recupera." O escritor aceita: "Corsino Fontes dizia que era uma corrida de estafetas e eu estou a continuar os claridosos, só que de uma forma diferente. A história que eles contam é a nossa história, de fomes e mortes, e por isso não existe humor no que escrevem ao contrário de mim." E marca o tempo novo: "Após a independência, tem de se escrever de uma forma diferente e dar um novo lado, ou sejam continuar o que os claridosos fizeram."
Antes de dar por encerrado a questão do novo tempo, repete uma afirmação polémica: "A pior coisa que aconteceu a Cabo Verde foi a independência", mas logo acrescenta "temos de respeitar a nossa história", além de que "ainda é muito cedo para o ADN dos cabo-verdianos se modificar." Avança: "As histórias estão lá e eu conto-as. Quando escrevo sobre a Boa Vista é com um olhar menos sarcástico do que quando o faço sobre São Vicente, mesmo que seja difícil definir a fronteira entre a imaginação e a realidade."
O estar a chover em Penafiel é uma questão que não passa ao lado da Conversa na Eira protagonizada pelo autor com o jornalista Fernando Alves, que pergunta até que ponto a chuva e o vento rareiam nos seus livros. Germano Almeida responde que "a chuva é importante nos meus livros, o vento já tem um escritor que o descreve magistralmente, e o mar que está sempre à nossa volta não importa assim tanto." Alves lembra os seus poderes mágicos enquanto ficcionista, afinal é o autor mais lido e traduzido dos cabo-verdianos, e Almeida apenas garante ser um "autor que acompanha os personagens, sou tradutor do que eles fazem." Quanto às mortes constantes nos seus livros, Germano Almeida não nega: "É mais fácil trabalhar com os mortos e a morte diverte. Posso dizer que o luto é um período de grande divertimento." Garante que o escritor é "um homem comum e não me faz melhor, mesmo que para muitos o fulano que escreve seja um Deus. E como é a sua vida quotidiana? "Decidi aposentar-me de toda a vida política - espero que não venha a ser mais necessário a minha intervenção", "faço uma vida monástica" e "baralho o leitor nos meus livros só para o divertir, mas os meus livros não são difíceis e não os quero complicados."
Durante a estada em Penafiel, Germano Almeida fez questão de se posicionar perante o vago conceito da lusofonia: "Eu não gosto muito da expressão lusofonia. Somos escritores de diversos países que usam a língua portuguesa como língua de contacto, como língua de expressão, mas não é uma cultura lusófona". Considera que existem "muitos pontos comuns, obviamente, sobretudo Cabo Verde, que é um país feito pelos portugueses. Mas as ilhas - não só a sua orografia, mas sobretudo a ausência de meios de vida, a falta de chuva, sobretudo - fizeram de nós pessoas diferentes". Mas não esquece que a sua relação com Portugal, onde estudou e fez o serviço militar, "é ótima", mesmo que "tenha sido sempre uma presença estranha. Nunca me senti português, sempre me afirmei cabo-verdiano. Mas, se um dia Cabo Verde desaparecesse, o país que eu adotaria seria Portugal, mais nenhum outro".
dnot@dn.pt
O Fiel Defunto
Germano Almeida
Editorial Caminho
328 páginas
O Último Mugido
Germano Almeida
Editorial Caminho
344 páginas
A Confissão e a Culpa
Germano Almeida
Editorial Caminho
247 páginas