Eduardo Souto de Moura, 67 anos, juntou mais uma distinção à já longa lista de prémios da sua carreira - doutor honoris causa pela Universidade Lusófona. Conta, no momento do agradecimento, que escreveu o discurso na noite anterior socorrendo-se de uma antologia de Gabriel García Márquez, Eu não Vim Fazer Um Discurso, que, ao contrário do que indicia o título, reúne as suas palavras em atos públicos. "Não esperem nada do século XXI, porque o século XXI é que espera tudo de vocês", disse à plateia de alunos e professores, entre eles aquele que o propôs para receber o título - um amigo mas também um crítico..Poderia dizer-se que o arquiteto tinha usado uma maneira "à escola do Porto" para resolver um assunto - "ter um problema, desconstruir o problema"? Ele, conversador e bem-disposto, é muito mais prático do que isso. "Felizmente, discursos não é como na arquitetura, aí é que não se volta atrás." É um pretexto para conversar com este três vezes Prémio Secil, Prémio Pessoa (1998), Pritzker em 2011 e Leão de Ouro na Bienal de Arquitetura de Veneza, em 2018, e protagonista da exposição Souto de Moura: Memória, Projetos, Obras, sobre o seu trabalho na Casa da Arquitetura, em Matosinhos. Na instituição que guarda (e guardará) o arquivo do arquiteto revê-se o passado, mas por pedido do próprio visita-se o presente. Uma sala exibe os projetos em curso, pelo que não é raro, aos sábados, lá voltar, "sempre que é necessário". É o que mais gosta, um pedido seu, e não espanta. É a mesma pessoa que prefere não rever os projetos. "Lembro-me das dificuldades.".Na arquitetura não dá para mudar nada? Dá, passados alguns anos, quando me pedem para reformular os edifícios. Já me aconteceu com uma casa no Algarve, na Quinta do Lago, que foi vendida e estava classificada como património municipal. Aumentei os volumes para ficar maior e poder receber o novo programa. A câmara aceitou, quase nem se descobre, só quando se vê os desenhos, e aproveitei para corrigir alguns erros que a casa tinha. Fui eu que me enganei, porque eu também sei quando me engano. Os quartos ficaram curtos, aumentei ligeiramente. Ficou melhor. É património municipal e quem diz que não se pode mexer no património? Pode e deve e fica melhor. Tenho a experiência própria. É delicado e difícil, mas consegue-se..Numa entrevista disse que "o património é ambiente"... ... E é..O que quer dizer com esta expressão? O Pártenon e a Acrópole não são umas pedras. É uma empatia entre pedras e uns edifícios e os componentes e a paisagem que dominam uma cidade e uma geografia. Dominam o Peloponeso, praticamente. Aquilo é perfeito. Não vive por si, não é uma peça isolada. Património não é um objeto. É um conjunto de relações entre coisas..É sempre assim que trabalha? Depende. Quando são coisas novas não tenho de dar satisfações às preexistências, aí estou mais desinibido. Chego à Paula Rego, tenho de escolher o sítio, dentro dos courts de ténis. Quando pego no Mosteiro das Bernardas, em Tavira, ou em Bouro, com muitos séculos, não tenho autoridade para destruir aquele legado que chegou até nós..Vamos dar exemplos mistos: São Lourenço do Barrocal (premiado na Bienal de Veneza com um Leão de Ouro). É nitidamente um ambiente. Tanto que as imagens que mandei para a Bienal de Veneza são fotografias aéreas com o Alentejo e aquilo é um conjunto de fragmentos interligados numa geografia quase vazia que é o Alentejo - entre a paisagem, os objetos, os materiais, a pintura. Destruir aquele equilíbrio é destruir o património. Por exemplo, tinha de fazer construções em betão para recuperar alguns edifícios, mas o betão dá uma textura muito grosseira; o que é bonito na arquitetura alentejana é a cal, tendo por baixo o tijolo artesanal. Fiz o betão que tinha de fazer, depois forrei a tijolo e caiei. E acho que consegui, senão não me tinham dado o Leão de Ouro..Disse de São Lourenço do Barrocal que era como uma cidade do faroeste, casas de um lado e do outro. E é. É uma rua, uma povoação com uma rua..Tem uma piscina espetacular. Um tanque. Onde as pessoas tomam banho. Fazer uma piscina azul hollywoodesca no meio do Alentejo, não. É um tanque com meio metro onde as pessoas podem sentar-se e digo que podem tomar banho porque a água está limpa. Fiz isso em Bouro, uma piscina no mosteiro. Fui a Tibães copiar o lago, que é uma elipse. Está no meio do bosque, espero que os carvalhos cresçam em Bouro para tapar a piscina. Não sei se cresceram ou morreram. Uma coisa de que não gosto muito é de voltar às obras depois de as acabar. Aquela nostalgia, não acho graça..Porque começa a ver incorreções? Não, não é isso. Lembro-me das dificuldades a fazer as coisas, prefiro partir para outra. Estou interessado no que estou a fazer agora..No caso da piscina do Barrocal, parecia que tinha começado da pedra para a piscina, mas afinal foi ao contrário: do tanque para a pedra. Foi onde terminou? Sim, é o problema da intervenção na paisagem, precisamos de limites. Quando escreve pode ser num A5, como o que tem à sua frente, ou num A4. Isso faz depender o tamanho da letra. Quando nós arquitetos temos um descampado, como é o Alentejo, precisamos de saber aqui, ali, acolá. Há um filme do Pasolini, chama-se A Medeia, com a Maria Callas, em que um grupo de pessoas vai para um deserto, diz "vamos acampar" e pousam as coisas. Ela diz "aqui não" e atira uma pedra. No sítio em que a pedra cai, ela diz "ali" para ter uma referência. Não havia nada. E, portanto, eu também chego ali e tenho uma referência, nós temos de ver uma folha branca de papel. Então, eu digo: vou fazer aqui, porque tenho um controlo maior - a pedra..É curioso dizer isso, porque os arquitetos queixam-se de como estão presos pelas regulamentações. Temos de ter limites..Ou seja, para si as guardas e essas limitações não são um impedimento? Neste momento, acho que está a haver um exagero de normas que vêm de Bruxelas. Que é um negócio enorme, digo-lhe já. É a tal a defesa e uso de materiais e tantas luzes para ler, mas está mal. Na Suíça, o isolamento mínimo em Zurique é de 30 centímetros, sabe o que isso poderia ser em Lisboa? O isolamento é maior do que o material propriamente dito. E porquê? É para se vender isolamento. As pontes térmicas - um material não pode estar ligado no interior e no exterior, porque se fizer uma casa em ferro fica frio lá dentro como cá fora - obriga a fazer um dispêndio em paredes duplas e triplas. Se estivermos na Sibéria ou em Berlim se calhar é preciso, mas em Lisboa é um grau ou dois de diferença, mas temos as normas europeias, que são feitas para Zurique, Varsóvia... Eu não gosto é de ter limitações, mas ter restrições é muito importante. Isso distingue a tipologia das coisas..A Praça da Flores é um projeto que ainda não se percebe se vai avançar... Nem eu! Nem eu! Agora os juízes querem ser arquitetos. Dizem que há uma disputa entre arquitetos e engenheiros. Agora apareceu uma modalidade nova que é os juízes que querem fazer projetos e quando as pessoas reclamam em tribunal, eles explicam como se deve fazer o projeto. Na Praça das Flores, os meus clientes ganharam em primeira instância, recorreram e na segunda perderam. E na sentença os juízes explicam como devem ser as novas casas..O que diziam? Que não se pode demolir para não perder o sabor e o ambiente da praça. Tem de ser uma arquitetura na continuidade das casas ao lado, que não pode ser dissonante. Há uma regra na arquitetura que é "a boa arquitetura não é dissonante". Também reconstruí na íntegra um edifício no Príncipe Real, tentaram mas não conseguiram implicar com nada. Reconstruí o hotel do Bairro Alto em que tentaram tudo até que meti um piso a mais em todo o quarteirão mas eles são tão incultos que nem reclamaram por ter mais um piso, o que para mim é um elogio!.Tem mesmo? O quarteirão do hotel do Bairro Alto tem mais quatro ou cinco metros e tem outro terraço. O que é bom no Bairro Alto é beber um copo neste terraço que tem a vista mais bonita de Lisboa. Os quartos foram os arquitetos de interiores que fizeram - os novos e os antigos - e até fiz um texto sobre essa arquitetura que é anónima, não tem nada - uns pássaros pintados e uma cama. Isso é importante, porque a arquitetura não pode perturbar. Pode emocionar, e deve, mas não pode perturbar, porque senão a ação normal da vida fica inibida. Todos os artistas vanguardistas viviam em casas antigas, o que é estranho, não é? E porquê? Porque não podem confrontar-se com as vanguardas, têm de estar concentrados na própria vanguarda deles..No seu caso, vive numa casa antiga ou nova? Vivo numa casa feita por mim. Fiz para uma arquiteta que me pediu porque ela dizia que não conseguia fazer uma casa para ela, e eu percebo, porque eu agora também estou a tentar desenhar uma casa para mim e aquilo é do mais difícil que há. Não há cliente, não há crises, não há restrições. Mas ela depois não foi para lá. Não porque não gostasse, mas porque não foi morar para o Porto. A minha mulher gostava imenso daquele sítio. Ela disse-me que sabia que a minha mulher e a minha família gostavam muito deste sítio e ia vendê-la. "Quer comprá-la?" Disse-lhe: não tenho dinheiro, espere um ano. Digo que faço as casas para mim e é por isso me adaptei bem à casa - mudei a tomada da televisão e a minha mulher mudou as portas da cozinha, porque diz que as portas não se abrem [faz o gesto de abrir de par em par], mas para a direita ou para a esquerda. Ela é arquiteta e boa arquiteta. Eu não sei cozinhar..Pois, nota-se às vezes que os arquitetos não cozinham. Também não podem saber tudo. Também já fiz hospitais e não sou médico. Já fiz um estádio de futebol..E o estádio de Braga agora tem problemas de sustentabilidade. Já estão a demolir partes, não é agradável para mim, vão vender o estádio, isto é tudo conversa para não querer pagar, percebe?.Mas o arquiteto pode intervir e dizer... Não, eu lamento-me, escrevo e dou entrevistas..Já demoliram alguma parte? Estão a fazer restaurantes, elevadores e até um parque de estacionamento. Não é demolir é construir. Reclamei da segurança do estádio e eles depois pediram um projeto a um engenheiro. Custa-me. Fui lá fazer um vídeo para a UEFA, quase me caíam as lágrimas. É a obra de que mais gosto e tenho pena..Mas não há nada que possa fazer para impedir; é a sua obra, o arquiteto é o artista da obra. Não sou artista..No sentido lato, a assinatura é sua. A ideia é sua. Não há direitos de autor em Portugal para a arquitetura. Eu faço uma casa e você deita abaixo três paredes e eu não tenho direito de a proibir sendo a obra minha. Só tenho o direito a dizer: não pode dizer que esta obra é minha, que é o que eles querem. Querem que o estádio não seja meu. Não fazem tudo porque têm medo, a UEFA fez um filme lá comigo..Mas podia haver bom senso, já que o estádio é mais valioso porque o arquiteto Souto de Moura o assina. Eles dizem que não, que o facto de eu ter feito prejudica, que é muito bonito mas não funciona..Mas no caso do estádio de Braga não era mais fácil dizer que o programa tinha mudado e que precisam de alterações? O estádio é da câmara e quem faz as obras é o [Sporting Clube de] Braga. Não me pagaram um terço. Desde 2005 ou 2006, e os juros já triplicaram a dívida. A mim e ao gabinete dos engenheiros, fomos para tribunal e ganhámos. Eles recorreram..Havendo uma dívida os tribunais podem intervir, mas não há nada que salvaguarde o seu trabalho? Nada! Zero! Tanto que eu falei com outro arquiteto e estamos a pensar registar as obras na Sociedade Portuguesa de Autores para depois poder dizer que está registado. As obras de arquitetura não têm estatuto que mereça direitos de autor. E eu tenho obras demolidas, estragadas... Não há tabelas de honorários. Os alemães queriam fazer, mas Bruxelas não deixou. Cada um leva o que entende..Como vê o crescimento do turismo em Lisboa e no Porto e como é que isso afeta o vosso trabalho? São duas faces da mesma moeda. Por um lado, entra muito dinheiro. Portugal é, ou era, um país pobre e precisa de dinheiro. É bom. Não há grandes indústrias e a indústria do turismo alterou isso, é um aspeto positivo. Segundo ponto: os turistas apropriam-se das partes bonitas da cidade, não vêm cá para as partes feias, e como somos o país da Europa mais pobre, todos os outros países europeus são ricos e compram as partes bonitas da cidade e os pobres vão viver para as periferias. Os turistas não vivem cá todo o ano, há partes da cidade fantasmas. Tive escritório no Chiado, na Rua das Flores, lembro-me de ir à Brasileira tomar um café e nas passadeiras era quase transportado para o lado de lá sem saber como. Parece que estou em Tóquio e eu não sou fácil de ser transportado. Abre o verde e, de repente, apareço do outro lado. Uma loucura completa! Os turistas usam os transportes, ocupam os lugares todos, as pessoas reclamam, não conseguem lugar, porque o autocarro e o metro já estão cheios. Portanto, tem um aspeto positivo, entrar dinheiro, todos os outros são negativos..Não é bom para os arquitetos? Não, porque agora há uma vertigem de fazer hotéis e hostels e deitam tudo abaixo por dentro e casas lindíssimas com meia dúzia de divisões, quatro salas com tetos e janelas belas, escadas grandes, é tudo demolido para fazer dez T0 e não há fiscalização sobre a arquitetura interior, só da fachada..Em Londres, isso parece ser um problema. Um fotógrafo fez um ensaio sobre isso. Mas os ingleses nisso têm muito cuidado, são conservadores e não é tão grave como nós..Aí, está a ver, está alinhado com aqueles grupos de cidadãos que vociferam na internet contra a destruição dos interiores. Cada caso é um caso. No caso da Praça das Flores, a casa que eu mandei demolir para fazer o meu projeto não está classificada, o que está classificado é o jardim da Praça das Flores. Fiz uma série de conferências e mostrava o grande património das casas da Praça das Flores - as portas em PVC de plástico, plástico colado no vidro para fingir quadrados e simular o antigo. Nós, arquitetos, sabemos. Quer dizer, sabemos mais. E é por isso que nem toda a gente pode assinar projetos de arquitetura. A casa da Praça das Flores já foi à vida..Ainda tem espaço para prémios? Não posso dizer que não gosto de ganhar prémios. Passe a modéstia. Um tipo sofre imenso, prejudica-se brutalmente, não é? Apodrece de tanto trabalhar, por dentro, de fumar e de tanta noitada. Ainda tive de escrever este discurso ontem à noite. O que é que vou dizer amanhã à noite?.Pedro Ramalho, professor da Universidade Lusófona, disse uma coisa no discurso... Pedro Ramalho foi meu professor. Ui! Pegámo-nos forte e feio! Eu tinha média de 16 e ele disse-me "ou fazes o projeto até à Páscoa ou chumbas"..Mas qual era o seu problema? Eu era um pedante, está a ver? Tinha a mania que era intelectual, não desenhava e ele disse "ó menino, isto não é para brincadeiras. Fazes umas coisas, escreves uns textos mas se não fazes o projeto até à Páscoa chumbas". E eu não percebia nada daquilo. Um colega meu que trabalhava no Siza disse que eu precisava de trabalhar com um arquiteto, tens ideias de semiologia, de filosofia, significado e significante. Só lia Roland Barthes, e tal, era um pretensioso. Se eu detesto nos outros, também depois reconheço que não era pera doce. Depois fui trabalhar para o Siza e fiz o curso no Siza. A escola estava sempre fechada. Foi o Siza que me ensinou e depois fiz as pazes com o Pedro. Hoje somos grandes amigos..Quando fizeram as pazes? Aos poucos. Eu reconheci a importância e depois fundámos um cineclube. Agora temos um cineclube. O Pedro Ramalho e a mulher, que é arquiteta, um fotógrafo muito bom que é o Luís Ferreira Alves, uma amiga psicanalista, outra arquiteta do IPPAR, outro arquiteto que também é professor, e aos domingos jantamos em minha casa e vemos um filme. O fotógrafo, o Luís, faz um jornal que nos entrega antes do filme..Há quanto tempo existe? Há sete anos. Vou pouco ao cinema. E agora tenho uma combinação com a minha filha do meio para irmos ao cinema. A minha mulher vai com as outras filhas e eu vou com ela, porque é enfermeira e trabalha por turnos..Não a conseguiu convencer para a arquitetura. Não, mas é talvez a que se interessa mais por arquitetura. Ainda agora telefonou a dar os parabéns. Há um concerto de jazz na Casa da Arquitetura, com Miles Davis, e ela disse que vai.