Numa manhã cinzenta de agosto, no restaurante Peixaria da Esquina, acompanhámos o chef entre panelas, facas e dicas de quem há 33 anos cozinha praticamente todos os dias. Num ápice, e enquanto conversamos, Vítor Sobral ensinou a fazer sardinhas fritas, iscas de coentrada e moelas fritas (as receitas estão disponíveis aqui). Escolheu os ingredientes de propósito a pensar na sustentabilidade: "Para recuperar produtos tidos como menos nobres e de fácil acesso e torná-los novamente utilizados pelo portugueses.".É um esforço que faz há alguns anos e do qual ninguém lhe pode tirar mérito. Foi dos primeiros cozinheiros a fazê-lo em Portugal e nos países onde se fala português. Por essa e certamente por outras razões é comendador da Ordem do Infante D. Henrique, grau atribuído em 2006 que juntou à distinção recebida anos antes (1999) de Chef do Ano pela Academia Portuguesa de Gastronomia..Dono e sócio de vários restaurantes e padarias em Portugal e no Brasil, a conversa com Vítor Sobral, de 53 anos, não foi para reavivar memórias ou falar do seu vasto percurso e feitos passados - incontornáveis. Foi sim para abordar preocupações do tempo em que vivemos marcados pela palavra pandemia. Falou sobre a profissão, os negócios, as estrelas Michelin e do ainda pouco reconhecimento internacional da cozinha portuguesa. Filho de uma família humilde alentejana "a quem nunca lhe faltou nada", como sublinhou, continua frontal. O chef, a quem irrita o uso generalizado do título, falou de tudo isso enquanto tratava dos ingredientes com a experiência de décadas e o entusiasmo visto em poucos..Uma pergunta inevitável: o que veio alterar a pandemia na vida dos seus restaurantes? Veio alterar muita coisa, a começar pelo uso de máscara assim que se entra nos restaurantes. Mas a maior alteração é mesmo a preocupação de como vamos sobreviver a isto tudo. Até hoje a única coisa que fiz foi não renovar os contratos que acabaram, mas não despedi ninguém. Desde então, todos os meses tenho colocado dinheiro para continuar a atividade. A minha incógnita é saber até quando tenho dinheiro para o fazer e quando é que as coisas vão começar a reverter. Contudo, tenho de confessar que no último mês melhorou bastante. Tenho a vantagem de não ter parado o negócio, estive sempre em atividade ora com as padarias, com atendimento só ao balcão, ora com o serviço de take away nos restaurantes. Foi uma pequena ajuda. Mas a retoma está a ser muito lenta e essa é a minha maior preocupação. E depois tenho outro problema: não fujo aos impostos. Pago tudo direito, não faço truques. E não vale a pena dizer que não, mas quem faz como eu tem a vida mais difícil nesta possível retoma..E de que medidas precisa a restauração? Aliviar a carga fiscal, por exemplo? Não vejo como não haver alguma ajuda para o setor. Não sou economista, mas se não existir ajuda para o setor vão fechar restaurantes e aí o governo não só perde a receita fiscal como passa a ter o encargo de subsídios de desemprego. Ou seja, o governo tem de avaliar o contributo do setor da restauração, a nível de receita, nos últimos cinco anos. Em função disso deve existir um apoio com a redução de impostos ou uma verba a fundo perdido. Outra das medidas em que o governo pode agir é ajudar a tirar as pessoas de casa. Com as pessoas em casa em lay-off perde-se a dinâmica comercial das ruas. A economia necessita de ser incentivada..Fala-se numa eventual segunda vaga da pandemia. Já pensou de que forma poderá afetar os seus negócios? Não há hipótese! Ninguém aguenta uma segunda vaga igual à que passámos. Como já lhe confessei, tenho uma verba que posso perder, que fui buscar ao banco e que vou ter de a pagar, mas com uma segunda vaga e com um confinamento como tivemos não vejo forma de passar por isso..A covid-19 vai mudar alguma coisa nas pessoas e nos negócios ou assim que exista uma cura vamos rapidamente esquecer isto e voltar tudo ao que era? Acho que as pessoas vão valorizar mais aquilo que é nacional. Com a pandemia há uma nova energia e apetência pelo produto nacional, embora, nesse aspeto, tenha de confessar que já o faço há 25 anos e não foi necessário acontecer nenhuma pandemia. Depois, a restauração tem de passar a ter preços mais ajustados à realidade. Acho muito difícil, sem turismo, conseguir-se vender menus a 300 ou 400 euros por pessoa como estava a acontecer..E como estão os seus negócios no Brasil? Com a pandemia estão piores do que em Portugal. O Brasil tem a vantagem de ser uma economia forte e quando arrancar irá fazê-lo com força. Mas é uma grande incógnita, ninguém sabe se vai arrancar ou não. Sinceramente, e voltando à sua pergunta anterior, acho que Portugal já passou pela segunda vaga. Temos andado sempre em contraciclo com o resto da Europa. Sei que o que vou dizer custa muito ao Algarve, mas ainda bem que os turistas não vieram massivamente para Portugal. Foi mau em termos de turismo mas bom no que respeita à pandemia..Recentemente fechou o Talho da Esquina, inaugurado no final de 2019, e agora está com uma nova parceria no restaurante Dom Roger. O que se passou? O Talho da Esquina foi uma sociedade à qual pertenci e em função da pandemia aconteceram situações com as quais não concordei e cada um seguiu o seu caminho. Era um produto pelo qual eu tinha um grande carinho e acredito que, em breve, se isto tudo não for por água abaixo, conseguirei replicar o conceito. Em relação ao Dom Roger, na Avenida da República, foi um desafio que me fizeram. Por lá estamos a fazer uma coisa que há muito tinha vontade de fazer: cozinha sustentável e utilização de produtos que não são considerados tão nobres mas quando bem cozinhados são tão bons como os mais nobres. Tal como estou a fazer hoje aqui com estas receitas..E hoje sente-se mais empresário ou cozinheiro? Cozinheiro. Só sou empresário por um acidente de percurso [risos], a minha formação é de cozinheiro. Infelizmente, demasiadas vezes até, penso como cozinheiro e talvez tivesse mais sucesso se pensasse mais como empresário..Há uns anos disse, numa entrevista, que gostaria de abrir um restaurante numa outra capital europeia. Essa vontade mantém-se? Sim, se encontrar o parceiro certo. Acredito que ainda tenho, pelo menos, 15 a 20 anos de trabalho efetivo. Aliás, se olhar para a minha avó, que tem 94 anos e não para, se calhar ainda tenho mais anos de trabalho pela frente, por isso....Será para dar a conhecer melhor a cozinha portuguesa? Comecei a viajar muito cedo e consegui ter uma notoriedade nos países de língua oficial portuguesa numa altura em que os cozinheiros portugueses ainda eram desconhecidos. Talvez seja por isso que me tenham atribuído o grau de comendador. Mas acho que se sabe muito pouco sobre nós. Hoje melhorou, há colegas meus que também criaram o seu percurso lá fora e levaram o nome de Portugal mais longe, como o Henrique [Sá Pessoa] e o José Avillez, embora numa versão diferente, talvez menos nacionalista do que eu. Até então Portugal era conhecido pelas sardinhas de conserva e pelo bacalhau. Nos últimos anos o turismo descobriu-nos e ficaram a conhecer-nos melhor. Aliás, o Ferran Adrià [chef espanhol que liderou o El Bulli, considerado o melhor restaurante do mundo por diversos anos] esteve cá no ano passado e disse coisas excelentes sobre os produtos portugueses. E com razão, embora esteja aqui ao lado e tenha estado 17 anos sem vir cá... Muitos de nós já dissemos o mesmo, como o Rui Paula, o Henrique [Sá Pessoa] e o João Rodrigues. A cozinha portuguesa não é chique, é de cariz popular com um excelente produto-base. Com essa qualidade que temos, quer no produto quer nas infraestruturas, podemos conseguir fazer um produto de luxo. Um luxo sem brilho mas de qualidade..Os chefs portugueses têm sido reconhecidos com estrelas Michelin. Não tem pena de não ter estrelas no seu currículo? Não quero passar uma ideia errada de pretensiosismo - aliás, às vezes sou tido como alguém arrogante quando na verdade sou é frontal -, mas quem fizer uma pesquisa no Google sobre os cozinheiros mais conhecidos em Portugal certamente que o meu nome aparece entre os primeiros. E não tenho estrelas Michelin. Sou cozinheiro há 33 anos e muito honestamente nunca tive vontade de me prostituir ao Guia Michelin. Eles não têm capacidade para julgar o meu trabalho. Têm capacidade para julgar trabalhos que se adaptem aos critérios do guia. E uma coisa é a estrela Michelin na Europa e em França, outra coisa é no Oriente onde até existem rulotes com uma estrela. Aceito não ter uma estrela Michelin, mas já acho estranho que os meus restaurantes nem sejam Bib Gourmand [categoria do Guia Michelin para restaurantes com boa relação preço/qualidade]. Mais: Espanha tem o triplo de Portugal no número de restaurantes Bib Gourmand... Como é possível? Não há nenhum país na Europa como o nosso em preço/qualidade. Atenção: não é tudo bom, mas há muita coisa boa por esse país fora. Por isso, em relação ao guia, acho que há alguma coisa errada. Até lhe digo que há muitos restaurantes com uma estrela Michelin em Portugal que, comparados com outros no estrangeiro, deviam ter duas. O guia esteve sempre muito distraído com Portugal. E quem teve essa capacidade de adaptar a sua cozinha aos padrões deles conseguiu a estrela..E acha que isso o prejudica? Sim, tenho consciência de que comercialmente sou prejudicado. Mas foi uma opção pessoal e, de certa forma, numa afirmação que pode parecer bacoca, uma opção nacionalista. O que é nacional é bom e não tenho de abdicar disso para seguir os parâmetros deles. Aprendi muito com os franceses e tive sempre o cuidado de me atualizar tecnicamente. Hoje sou um cozinheiro com capacidade técnica acima da média dos cozinheiros europeus, e os cozinheiros portugueses em geral também o são. Se tiver de fazer alguma coisa da cozinha francesa, italiana ou espanhola, faço tranquilamente. Os estrangeiros já não o conseguem. Nós [cozinheiros portugueses] conhecemos a cultura deles e dominamos a técnica como eles. Como podemos ser preteridos a nível de ranking? Há algum país, para além de Espanha, que culturalmente tenha levado e trazido produtos para o mundo como nós? Não há! Acho que deviam olhar com mais cuidado e carinho para a gastronomia portuguesa..Ainda lhe dá gosto cozinhar? Sim. Cozinho quase todos os dias. E sempre que os meus restaurantes abrem passo muito tempo por lá a formatar as coisas à minha medida. Cozinhar é um prazer para mim. Cozinho em casa e sou eu quem faz a comida para o meu filho de 4 anos, e mesmo quando viajo deixo os pratos já cozinhados para ele. Quando vou de férias levo sempre as minhas facas..Vivemos numa altura em que estão a surgir muitos chefs e há muita gente a querer seguir a carreira... Confesso que me irrita a palavra chef como é utilizada hoje em dia, porque agora toda a gente é chef. E se nos querem dar títulos que o façam como no exército onde existem várias hierarquias. Colocar toda a gente no mesmo saco é algo que me deixa triste. Acho que os jornalistas deviam olhar mais para o passado porque o nosso trabalho tem de ser feito com memória..E que conselhos dá a quem queira seguir a vida de cozinheiro? Há algum ingrediente secreto para alcançar a notoriedade? Não se deve criar polémica para ter notoriedade! Acredito que com uma imprensa atenta e muito trabalho a notoriedade possa chegar. É uma profissão que exige algum esforço e que inclui abdicar de algumas coisas a nível pessoal, em que se tem de trabalhar muitas mais horas do que aquilo que o contrato diz. Mas é também uma profissão gratificante porque, de alguma maneira, estamos a dar um pouco de nós aos outros. E o retorno faz-nos bem ao ego. E tem ainda outra vantagem para quem atingir um patamar interessante na carreira - a hipótese de viajar em trabalho e conhecer outras culturas e outros estratos sociais. Ainda hoje, mesmo gerindo o meu tempo, não trabalho menos de dez a 12 horas e faço-o com gosto. Apenas não gosto de estar fechado no escritório a fazer fichas técnicas e a programar coisas, o que é muito importante no dia-a-dia. Tudo o que tenha que ver com cozinha e estar com as equipas é o que mais prazer me dá. Espero um dia ter uma estrutura que me permita estar só na cozinha sem me preocupar com o resto.