Licenciada em Economia e doutorada em Geografia, Sónia Pereira fez investigação nas migrações. Coordenava o programa de reinstalação de refugiados da Organização Internacional das Migrações (OIM) antes de dirigir o Alto-Comissariado para as Migrações (ACM). Um trabalho que diz ser mais difícil do que a investigação mas mais interessante. Exerce o cargo restringindo-se às suas competências e em nome coletivo. Iniciou funções a 2 de março e não adivinhava a dimensão desta pandemia. O que é que teve de alterar? O plano de fundo não se alterou. Não se alterou o compromisso com a integração de migrantes e proteção aos refugiados e beneficiários de proteção internacional. Alterou-se a parte mais operacional e técnica, tivemos de fazer uma adaptação dos serviços para dar resposta às necessidades que surgiram com a pandemia..Que tipo de adaptação? Teve de se fazer uma transição digital forçada com um maior investimento nos mecanismos de resposta online e por telefone. Tradicionalmente, os nossos centros nacionais de apoio à integração de imigrantes [CNAI de Porto, Lisboa e Algarve] davam resposta presencial. Reforçámos a informação que disponibilizamos no site e fizemos um grande investimento na recolha de informação, na sua tradução e disponibilização, quer no âmbito da saúde quer nas novas medidas legislativas que afetam os cidadãos estrangeiros..Em quantas línguas traduzem? Trabalhamos com nove a 11 línguas e vamos introduzindo outras à medida das nossas necessidades. O tailandês não é uma língua com que habitualmente trabalhamos mas quando somos solicitados, principalmente em algumas áreas geográficas, fazemos a tradução. Há uma grande necessidade de indi, bengali, nepalês, línguas que saem um do espetro inicial do russo, romeno ou moldavo..Isso demonstra uma renovação dos fluxos migratórios. Os fluxos de entrada ficaram muito reduzidos por via da redução dos meios de transporte, mas os processos de retorno voluntário continuam. O que percebemos é que há uma parte de imigrantes, principalmente do subcontinente asiático, presente no nosso país..Os imigrantes estavam preparados para essa mudança? Depende muito das comunidades, mas a Linha de Apoio ao Migrante sempre teve muitas solicitações quer da área da saúde quer das próprias autarquias. As nossas equipas juntaram-se às ações no terreno, deixaram de ser só os imigrantes a deslocar-se aos CNAI. Estamos a formar equipas de emergência, o que é novo e inovador na intervenção do ACM..Há quanto tempo existem as equipas de emergência? Encaixadas de forma estruturada, muito recentemente. Há equipas no norte, no centro, Lisboa e vale do Tejo, Alentejo e Algarve. Era frequente sermos avisados da existência de um surto envolvendo população imigrante e que era necessário apoio. Agora, temos equipas estabelecidas, que têm um plano, por exemplo de auscultação às associações de imigrantes e de entidades locais para antecipar as necessidades no terreno..Como é que são constituídas? São equipas que reúnem elementos de várias unidades orgânicas do ACM. Por exemplo, o Programa Escolhas tem sido muito importante no contacto com as comunidades migrantes durante a pandemia, quer pela ligação privilegiada que tem às famílias e jovens que acompanham quer pelo conhecimento que têm do território. Estão, também, envolvidos os núcleos de apoio à integração de refugiados e de migrantes, o núcleo de ligação às associações, para criar grupos focados na emergência..Recebem muitos pedidos de apoio de quem ficou sem emprego? Houve um aumento dos pedidos ao nível mais básico por via da perda de rendimento e, nesse sentido, foi reforçado o programa de apoio às pessoas carenciadas..É uma medida que se destina à população em geral? Sim, mas a nossa intervenção é na divulgação de informação e apoio dos procedimentos através das organizações de imigrantes..A pandemia está a afetar mais as comunidades imigrantes do que outros setores da população? As populações migrantes estão entre as mais afetadas pela pandemia, nomeadamente pelo impacto que tem na sua situação laboral. Tem que ver com áreas de atividade e fragilidade dos vínculos laborais. No entanto, há setores, como a agricultura, que continuam a depender da mão-de-obra migrante. Acontece em vários países europeus, não é uma circunstância portuguesa. Muitos imigrantes trabalhavam no setor dos serviços ligados ao turismo, à restauração, à hotelaria, fortemente afetados pela pandemia. Há outros setores onde o impacto foi menor como a agricultura e a construção civil..O que é que o ACM está a fazer face a essa realidade? Houve um investimento maior no apoio ao emprego. É uma área em que o ACM sempre trabalhou, a qualificação profissional e o emprego, mas reforçámos a nossa atuação com a criação de uma bolsa de trabalhadores para direcionar melhor as ofertas de emprego. A rede GIP [Gabinete de Inserção Profissional] vai ser duplicada, é uma das medidas do Plano Nacional para a Implementação do Pacto Global para as Migrações..Imagine um cidadão do Bangladesh que ficou sem trabalho e sem possibilidade de aceder ao subsídio. E não tem aqui a família que o possa apoiar. O que faz o ACM? Se estava a trabalhar com o NISS (Número de Identificação da Segurança Social) e a maior parte dos imigrantes têm, independentemente do estatuto migratório, poderá inscrever-se no programa de apoio às pessoas mais carenciadas da Segurança Social. Pode, também, inscrever-se na bolsa de trabalhadores. Vemos se esse trabalhador tem um certificado de habilitações ou competências profissionais que o possam encaixar no mercado laboral e, caso não o tenha, pode fazer formação e pedir a certificação..Um dos problemas dos imigrantes é não conseguirem reconhecer as suas qualificações profissionais. Estamos a trabalhar com o IEFP [Instituto do Emprego e Formação Profissional] e a ANQEP [Associação Nacional para a Qualificação e Ensino Profissional] para promover o reconhecimento de competências dos migrantes., que entram nos setores mais baixos do mercado de trabalho .Chegam ao país com uma trajetória profissional e escolar e, muitas vezes, sem possibilidade de verem esse percurso certificado de forma a ter impacto na sua inserção no mercado de trabalho.. E, por outro lado, há a necessidade de ajustar essa experiência às necessidades do mercado português..Os imigrantes que tinham processos pendentes para a sua regularização têm os mesmos direitos de quem está regularizado, mas continuam a precisar de uma autorização de residência para serem imigrantes de pleno direito. E esse processo está muito demorado. Os imigrantes que estavam com processos pendentes, quer por via da manifestação de interesse quer com pedidos de asilo, foram considerados regulares e isso permitiu-lhes a ceder a um conjunto de direitos, nomeadamente sociais e de saúde, o que já é uma importantíssima medida para mitigação dos efeitos da pandemia. Isso não invalida que tenho de deixar os seus processos seguir os caminhos habituais de regularização e o SEF..Quando são detetados surtos em comunidades de imigrantes, percebemos as más condições em que vivem. Surpreendeu-a? Não é uma novidade mas não deixa de me surpreender que continue a acontecer. A história da migração é feita destes momentos. Quando as pessoas chegam a um país, têm menos condições económicas, menos conhecimento da realidade local, menos poder de negociação e acesso ao mercado do arrendamento, também mais fragilidade económica. No entanto, era expectável que tivéssemos evoluído para além disso. Não estamos ao nível das barracas, mas temos outro nível de precariedade, que tem que ver com a sobrelotação de espaços de arrendamento..Há alguma comunidade particularmente vulnerável? A presença mais recente num país gera vulnerabilidade, quem está há mais tempo tem mais mecanismos de apoio, mais rede, mais conhecimento dos serviços públicos, da sociedade civil. Outro fator de vulnerabilidade pode ser o desconhecimento da língua. Podem ser do subcontinente asiático e há alguns imigrantes brasileiros e africanos com chegada recente..Acompanhou a questão dos refugiados, nomeadamente como coordenadora do programa de reinstalação da OIM, o que é que vai mudar com a última medida do Governo sobre essa matéria? O ACM tem responsabilidade acrescida nos programas de acolhimento, quer a nível da reinstalação que acolhe refugiados de países terceiros quer de recolocação, que acontecem a nível da UE. A resolução do Conselho de Ministros [n.º 103/2020], publicada a 23 de novembro cria um grupo operativo para uniformizar a harmonizar a gestão de tudo o que tem que ver com requerentes e beneficiários de proteção internacional. Deixa de haver separação entre quem chega nos programas de acolhimento e os requerentes espontâneos..Ao Algarve têm chegado barcos de imigrantes, estamos a assistir a um novo tipo de fluxo migratório? Devemos estar atentos à emergência de um novo padrão, mas ainda não é numa regularidade suficiente para podermos afirmar que estamos perante a emergência de um novo padrão migratório..Têm muitas queixas de atrasos na conclusão dos processos? Há sempre dificuldades mas não em volume suficiente para dizer que precisamos de falar com o SEF..Como está a acompanhar a morte de Ihor no aeroporto de Lisboa? Como qualquer entidade pública. Não podemos deixar de lamentar e mostrar a nossa preocupação com o facto de acontecer algo assim no aeroporto em Portugal. É um sinal de alarme. No entanto, e já o disse no Conselho para as Migrações onde fui questionada, não é uma área da nossa responsabilidade. Acreditamos nos processos em curso e daí resultará uma decisão..Não sentiu necessidade de manifestar reprovação junto do SEF? Não, essa área é da exclusiva competência do SEF. O ACM ocupa-se dos cidadãos estrangeiros que estão em processo de integração em território nacional. É sensível às suas necessidades e articula com as várias entidades. As áreas de competência exclusivas de outras entidades, como é o caso da gestão de fronteiras, que é da exclusiva responsabilidade do SEF, são da responsabilidade deles..Uma das obrigações do ACM não é ser uma voz dos imigrantes? Não, se for no âmbito da gestão de fronteiras, não são pessoas que tenham sido admitidas em território nacional. O mandato do ACM é para promover a integração de cidadãos estrangeiros..Como alta-comissária para as Migrações não se sentiu indignada? A alta-comissária é um alto dirigente da administração pública e é dessa forma que se comporta. Tem a sua área de competência e, sempre que necessário, articula com outras entidades públicas. Por exemplo, os comunicados da CICDR [Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação foram sempre enquanto força coletiva e não em nome da sua presidente..Terá, também, que ver com a pessoa que ocupa o cargo, não tomar posição sobre os problemas correntes com estas comunidades. A minha postura é a de trabalhar como instituição para criar as respostas necessárias para as situações com que nos confrontamos. Tendo a trabalhar mais de forma coletiva do que individual..Há racismo em Portugal? Há racismo, mas temos de perceber como é que ele se manifesta. Perceber do que é que estamos a falar. Existe uma desvantagem estrutural com origem étnica e racial. Temos é de entender esses dados e perceber que respostas podemos dar, na educação, na saúde, no mercado de trabalho. Depois, existem comentários racistas e atitudes discriminatórias, todos os dias chegam à CICDR queixas de manifestações de racismo..Há um maior número de queixas? Sim, mas o que é que isso nos diz? A CICDR pode estar a ser mais reconhecida como entidade que recebe e processa queixas; por outro lado, pode indiciar que aumenta o número de episódios de discriminação. É possível que seja uma combinação de ambas..Como veio parar às migrações? A minha formação em Economia sempre foi direcionada para a área de desenvolvimento e política social. E, depois, por circunstâncias pessoais que me levaram a viver no México e no Reino Unido e sentir na pele a experiência da imigração..Era investigadora, como é pôr em prática as teorias que defendia? É mais difícil, mas é muito mais interessante. Mesmo que não se consiga tudo, consegue-se fazer algo e vê-se os resultados dessa ação. O que fazemos na produção e na divulgação de conhecimento escapa muito mais ao nosso controlo. Num lugar de intervenção, tem-se a satisfação de conseguir implementar ações..Que medida gostaria de deixar como marca? A que permitisse aliar a entrada em Portugal e no mercado de trabalho com a qualificação profissional, que não haja uma desvalorização sistemática das competências dos migrantes. Criar um sistema, uma resposta, para a aquisição de língua portuguesa e o reconhecimento de competências e qualificação.