Não é habitual que um único livro seja capaz de abordar três das maiores figuras políticas do século XX português, mas esse foi o desafio - ganho - de António Barreto em Três Retratos - Salazar, Cunhal, Soares. Em entrevista, o autor faz uma análise àqueles que considera o trio de protagonistas que mais se impuseram e lideraram a vida nacional ao longo de décadas e que ainda hoje se mantém no imaginário dos portugueses..Curiosamente, qualquer um destes três políticos interferiu diretamente na vida de Barreto e a alteraram. Sobre os três recorda: "O Dr. Salazar causou-me muitos problemas porque eu não gostava do regime dele e no país em que vivíamos, tanto que com 21 anos fui refratário ao serviço militar em África e deixei Portugal. O Dr. Álvaro Cunhal, que conheci pessoalmente, foi sempre uma pessoa de forte carácter e personalidade mas muito rapidamente percebi que era uma pessoa dúplice e com dois comportamentos: afável e crispado. Era conforme as suas conveniências, e depois do 25 de Abril a luta do partido foi contra as liberdades e a democracia de uma forma muito tenaz. Eu exerci funções de governo e senti pouca estima da parte do PCP e dele próprio. Com o Dr. Mário Soares já foi diferente e é de quem, globalmente, tenho melhor impressão e considero que o seu contributo para a nossa liberdade foi muito grande. Usufruí da sua amizade, colaborei politicamente de um modo muito intenso com ele, mas também tive problemas por ter deixado de apreciar a minha forma de fazer política. Tanto que quase me designou uma persona non grata." Esta proximidade e ligação com as três figuras não o proíbe de realizar uma investigação muito crua e à qual acrescenta um balanço e o perfil de cada um ao longo de 200 páginas..Se é por causa de Salazar que se exila, existe pouca mágoa em relação à decisão de partir: "Indiretamente foi por causa dele que me fui embora em 1963, mas nunca invoquei que fosse por perseguição política porque não foi bem assim. Fui detido pela PIDE nesse ano umas duas vezes, porque andava metido em política, mas o que me incomodava era estar num país acossado. Como não era um bom aluno e tinha perdido um ano letivo, soube que o meu nome estava numa longa lista de estudantes de Coimbra sem aproveitamento e que iam ser chamados para tropa e depois enviados para a guerra no ultramar. Tendo sabido disso e com a maior parte dos meus amigos presos, tomei rapidamente a decisão de sair do país para não fazer a guerra e também porque estava farto e infeliz em Portugal. Foi certamente por causa de Salazar que parti, mas estou grato porque vivi 12 anos no estrangeiro, que me mudaram a vida, a cabeça e o espírito - não trocaria esse exílio por nada.".No regresso, participa ativamente na vida política e até teve o seu nome na lei que regulamentou a reforma agrária. Os seus sentimentos são mistos: "Sinto inquietação e orgulho. Não nego que o facto de o nome ter lá ficado e de os comunistas terem escrito por todo o Portugal "Fora a Lei Barreto" ou "Morte ao Barreto" dá-me orgulho por ter feito qualquer coisa com significado." Quanto a Soares, já lá vamos....Considera que são estes os três protagonistas políticos que "engendraram o seu tempo". Esse tipo de figuras não voltou a aparecer após a morte de Soares? Por enquanto, creio que não. Os três retratados são, em certo sentido, pessoas excecionais e não há muitos portugueses que consigam marcar o seu tempo como eles. No século XX português, são estes três que, com a força e a determinação que o fizeram e devido à marca que deixaram, sobressaem entre todos. Depois deles, nenhum outro português surgiu com esta força para a vida social portuguesa, além de que qualquer um dos três tem um traço especial que os fez não só engendrarem e marcarem o seu tempo mas também fazerem-se a si próprios. Este é um registo de homens e mulheres de exceção e não fruto das circunstâncias ou do acaso, dos que conseguem superar as circunstâncias e atingem um grau pouco comum: fazem-se a si próprios. São construção sua e faz parte das suas escolhas serem o que são..Não se sentiu tentado a fazer um quarto retrato sobre alguém do século XXI? Não, nenhum. À parte deles, nenhuma das pessoas que desempenharam funções muito importantes - limito-me ao universo político - atingiu este grau de características especiais e de notoriedade própria..A dado momento escreve que o nosso século XX é, politicamente, um século de anões. Estes três são os anões que se agigantaram? Salazar, Cunhal e Soares são as exceções e os três que ultrapassaram a sua condição de anões. Se Portugal fosse um país com uma classe política muito vasta, viva e com muita força, nenhum deles tinha perdurado tanto politicamente. Salazar demorou 40 anos no poder, Álvaro Cunhal teve outro tipo de poder e durante muitíssimas décadas foi o incontestável chefe do comunismo português, enquanto Mário Soares, com alguma contestação, também o foi ininterruptamente e com relevo 40 anos. Se olharmos para o mundo em volta, não é frequente um dirigente político durar tantos anos porque há mais "concorrência" no universo político - o que não lhes aconteceu em Portugal..Tem a seguinte frase: "Estes três diferenciam-se pela não corrupção" e dá o exemplo de que "não compram ações a preço de amigo". Esse é um recado direto a Cavaco Silva? Não é só a ele, há muitos dirigentes políticos em Portugal que tiveram oportunidades legais para o fazer - não os vou denunciar - e muitos para com quem o poder económico teve atos de cortesia - de forma legal, mas moralmente discutíveis..Considera que os portugueses "gostaram de todos": Soares, Sá Carneiro, Cavaco Silva, António Guterres, José Sócrates, Passos Coelho e António Costa. Os nossos eleitores são fáceis de satisfazer? Talvez se possa dizer isso. O eleitorado português gosta de quem é importante e de quem pode oferecer ou fazer qualquer coisa, mas também são eleitores volúveis e mudam rapidamente de opinião. Se olharmos para os políticos que tiveram o benefício do eleitorado, vemos pessoas bastante diferentes umas das outras - um crispado e um desenvolto, um alegre e um triste - e todos eles foram tarde ou cedo festejados pelo eleitorado. O que quer dizer, ao contrário do que muita gente acha, que não é um eleitorado submisso nem gosta de ditadores só, mas é volúvel como qualquer outro. Tem alguma tendência para gostar de quem é maioritário e pode oferecer a vitória e particular aptidão para gostar dos vencedores. O que não tem é grande afeição por quem é minoritário..Também serão volúveis no caso do Chega? Temos de dar mais tempo. Esse é ainda um grupo de amigos muito pouco consistente, com alguns tiques nos planos do nacionalismo, da xenofobia e contra a imigração, com uma espécie de moralidade justicialista contra a corrupção. São reflexos condicionados que existem em vários sítios do mundo, no entanto não lhes vejo consistência doutrinária nem uma força com carácter político que me faça recear. Pode ser que haja mudanças e outras pessoas se envolvam, mas por agora não lhes dou muita importância e creio que está à beira de atingir o seu limite nas sondagens. Os líderes que devemos recear são os que recusam as regras democráticas e o líder do Chega está visível no parlamento, mesmo que tenha tido antes o papel infantil de comentar desafios de futebol na televisão. Os fenómenos da extrema-direita, da direita mais patrioteira e também da esquerda mais radical devem ser estudados não como perigo ou um vírus mas como responsabilidade dos democratas estabelecidos - de todos nós - e do que são as falhas do sistema democrático. Não esquecer que foram os erros da democracia europeia que geraram Le Pen e movimentos de extrema-direita em Itália, Holanda e Alemanha, por exemplo. É a cobardia da democracia..Viveu em direto a separação da esquerda portuguesa após a revolução, com o Partido Comunista Português [PCP] e o Partido Socialista [PS] a irem por caminhos diferentes. Só 40 anos depois é que António Costa alterou essa realidade através da geringonça, acossando os partidos da direita para um canto. Esperava que isso fosse possível? Tinha a certeza de que um dia seria possível, mesmo existindo o exemplo francês de Mitterrand, que digeriu o Partido Comunista Francês com uma grande facilidade, ou o de Itália e outros países europeus com a aproximação das diversas esquerdas. Em Portugal, parecia mais difícil porque o fator genético mais importante era o da luta contra o comunismo. Foi o caso de Soares e dos seus amigos contra o PCP, a extrema-esquerda e os revolucionários do Movimento das Forças Armadas, que se constituíram no principal fator do êxito do PS. Isso marcou muito toda a vida do PS durante 30 anos até Costa conseguir alterar esse estado, mas convém não esquecer que foi coautor e cúmplice voluntário e não forçado. Foi um voluntário deliberado dessa estratégia perante o PCP. É verdade que nos últimos anos surgiu no PS um clube pelas bandas de Jorge Sampaio, do Costa e de mais uma ou outra pessoa, com sentimentos que facilitaram esta aproximação, mas só agora, por necessidade dos votos dos comunistas e do Bloco de Esquerda no parlamento, é que se concretizou. Aliás, se chegassem os votos do Bloco para fazer uma maioria, talvez não fossem buscar o PCP..Entrelaça Salazar e Cunhal e diz que a melhor oposição para um era a do outro. Cunhal só atingiu aquela dimensão em função de Salazar? Não seria tão radical, mas Salazar queria ter o fantasma do comunismo, pois é sabido que qualquer chefe político, ditador ou déspota necessita de ter um inimigo, um fantasma ou um demónio para invocar. Salazar invocava o Partido Comunista e a Rússia a partir de certa altura - anos 1950 - e foi possível começar a designar Cunhal como um dos dirigentes responsáveis quando se falava de oposição. A partir do momento em que Cunhal se faz dirigente do partido graças aos seus méritos e com o apoio da União Soviética, designadamente a partir do momento em que foge do Forte de Peniche e assume a liderança já próximo do fim da vida de Salazar. Aí é escolhido pela PIDE e pelos órgãos de propaganda do governo como o inimigo pessoal de Salazar e do regime..Um inimigo conveniente? Sim. O PCP podia, em certo sentido, prestar-se a isso, pois quando se falava da Rússia o PCP era um membro qualificado do Komintern e da Internacional Comunista e tanto Cunhal como os seus mais próximos circulavam nos corredores do Kremlin com muita frequência. Esse era o inimigo que convinha a Salazar e ao regime e vice-versa, porque o PCP, e Cunhal em particular, tinha feito dos seus últimos 20 ou 30 anos de vida o alvo nomeado pelo governante. Para o PCP, o salazarismo era a personificação do fascismo e a definição do fascismo era a da ditadura clubista do capital monopolista, o que não é verdade mas era o termo utilizado, que permitia ter uma linguagem, uma doutrina e uma estratégia quase de discutir em exclusivo e afirmar que ou se estava com o comunismo ou se estava com o salazarismo. Criou-se uma ortodoxia cultural e política, e os movimentos unitários que existiam nessas décadas eram todos dominados pelo PCP - dominava as grandes campanhas eleitorais e, curiosamente, a grande derrota do partido na oposição foi quando foi escolhido Humberto Delgado para Presidente. Ele não era o candidato do PCP, que sempre teve um coração terno para com os militares, mesmo que desconfiasse deles - como no passado com o Norton de Matos e o almirante Quintão Meireles, e nessa altura preferia Arlindo Vicente. Só que este deputado por Lisboa teve de desistir porque o movimento de Delgado foi imparável e reuniu todas as grandes figuras da oposição. Toda a gente disse "se queremos combater o Salazar o melhor é alguém que venha de dentro do regime e que consegue atrair muitas pessoas que estão ou estiveram dentro dele". Foi uma derrota para o PCP, que teve de acompanhar mas, mal acabou a campanha eleitoral, fez o possível por demolir a figura e o papel do general. Ou seja, ao PCP sabia-lhe bem ter um único inimigo e aquela luta de classes: o exército comunista e o fascista, e essa figura de luta entre os dois exércitos interessava tanto a Salazar como a Cunhal..É por isso que refere que Salazar cria o establishment do poder e Cunhal a a ortodoxia da oposição? Exatamente por isso, contudo deve dizer-se que são êxitos para ambos os lados. No caso do salazarismo um êxito porque muitos intelectuais, escritores, arquitetos, pintores, músicos e outros da área da cultura, era gente do establishment e apoiavam o ditador ao colaborarem nas grandes exposições do regime, em monumentos públicos, e recebiam prémios do SNI. Para o PCP, há também o êxito estrondoso do realismo e do neorrealismo sobre a esquerda portuguesa, com os jornais O Diabo, O Sol Nascente, as revistas Seara Nova e Vértice, até mesmo em acontecimentos culturais como edições de livros em que tinham um domínio absoluto, fazendo uma espécie de tábua rasa a quem não fosse da ordem estabelecida. Ainda depois do 25 de Abril e até ao princípio do século XXI se notavam resquícios dessa espécie de suserana comunista que dominou a cultura portuguesa durante décadas..Define Salazar e Cunhal como "anacrónicos e obsoletos" e acrescenta o epíteto de "tristes figuras". Porque aceitaram os portugueses marchar ao ritmo de dirigentes assim? Aceitar é uma palavra que se deve evitar, mas não é fácil encontrar a expressão justa. Com Salazar, os portugueses nunca tiveram a possibilidade de se exprimir. Nunca o elegeram, nunca o aceitaram. Ele nunca deu oportunidade para votarem em si em eleições livres ou exprimirem-se sem censura. Todavia, temos obrigação de tentar ser lúcidos e rigorosos, uma ditadura como a dele - apesar da PIDE, apesar da censura, apesar das prisões políticas e da muita legislação contra a atividade política - não é derrubada e prolonga-se por muitas décadas com um grau de repressão médio. Não foi como em Espanha, em Cuba ou em todos os países comunistas e soviéticos, com uma repressão muito mais feroz, mais prisioneiros e mortos. Ora, uma ditadura que sobrevive tantos anos e o ditador morre em paz e sossego e de morte natural tem de ter um grau de aceitação resignada. Temos de reconhecer que os portugueses não souberam encontrar força suficiente, meios ou vontade doutrinária para derrubar o regime..Se Salazar foi aceite, os outros dois não. No caso de Cunhal é diferente porque nunca é aceite pelos portugueses a não ser por, no máximo, 12% dos votos. O que não sendo uma percentagem ridícula é muito pequena após 60 anos clandestino, além de agora estar reduzido a um score eleitoral de 6%, o que é uma aceitação muito medíocre. No entanto, Cunhal encontra dentro desse grupo de simpatizantes do PCP, de amigos e de camaradas, um apoio absolutamente incondicional, quase de idolatria sem limites. Ainda hoje, destes três líderes o que tem mais apoiantes explícitos é Cunhal. Soares é uma relíquia e uma memória! Basta recordar o seu funeral, que foi uma demonstração de que os políticos democráticos são mais facilmente esquecidos. Quanto a Salazar, quem gosta dele tem vergonha de o dizer ou invocar..Porque não deixou Salazar um delfim? Pelo que sei e deduzo, Salazar era um homem muito egocêntrico e a hipótese de haver alguém que pudesse continuá-lo teria sido intelectualmente inaceitável. Ele era uma figura da história, era a História, portanto inamovível e incontinuável. Nunca pensou na sucessão e fez o possível por condicionar e limitar quem pudesse surgir, como foi o caso de Marcelo Caetano. Detestava-o e não o queria, até porque reconhecia que era inteligente e capaz de o suceder, daí que nunca tenha feito nada que pudesse destacá-lo. E quem tentou ter alguma importância no regime - mesmo o Franco Nogueira -, mesmo tendo confiança neles, não lhes dava suficiente espaço para que emergissem e apagava-os o mais depressa possível. Salazar não admitia nem rival nem superior e quem era assim não podia ser seu continuador, pois significava aceitar que alguém pudesse ser igual ou melhor..Salazar faz do império a sua razão de ser mas nunca põe o pé em África. Porquê? Existem algumas chaves de interpretação para o explicar. Salazar detestava o suporte público, as multidões e até essa coreografia de apoio. Fez umas quatro manifestações no Terreiro do Paço e hoje vê-se em alguns filmes e fotografias o que aquilo lhe custava. Aliás, a sua presença em comícios era hirta, crispada e desajeitada, parece um muçulmano numa igreja católica ou um sacerdote numa mesquita. Não era o seu mundo, por isso ir ao ultramar significaria aceitar passear-se nas capitais - como aceitou Caetano muito desajeitadamente. Pode estranhar-se que um ditador não queira ter mais frequentemente manifestações públicas do seu poder e que não tenha feito os gestos habituais, mas era uma personagem ensimesmada. Até aquela frase deliciosa que ele tem de que "dois ministros já fazem um conselho de ministros" o confirma. Esse era o seu conselho de ministros ideal: ele e mais um. Sentava-se frente a frente e ele dizia automaticamente "ponha aí o seu chapéu", mesmo a quem não o trazia. O ministro ficava aflito, mas o recado estava dado, para que da próxima vez trouxesse chapéu. E eles tinham medo dele, daí que uma das situações que nunca deixará de surpreender é a cobardia ou a timidez de todos os seus grandes colaboradores. Destaco a cobardia, pois houve pessoas de valor profissional, doutrinário e intelectual à sua volta. Não foram todos badamecos! Mas tinham verdadeira cobardia política e aceitavam a submissão e a obediência ao chefe, comportando-se sempre dessa forma..Afirma que Cunhal "arruinou por mais de 20 anos as oportunidades da esquerda e da alternância democrática". Os eleitores comunistas têm essa consciência? Acho que não. Se os que hoje apoiam esta solução de António Costa, mesmo os que têm alguma visão histórica, dirão sempre que quem impediu uma coligação anterior foi Soares. A Cunhal convinha-lhe não exercer funções políticas no governo e estar sempre na oposição. Ele nunca deixou de dizer que o PS era de direita e que a única esquerda que existia em Portugal era ele. Isto é de um despotismo totalitário sem fim, mas foi sempre assim. Só recentemente é que ouvi uma ou duas vezes Jerónimo de Sousa falar do "PS e outras forças democráticas", mas numa referência muito ténue e logo passou a dizer que é o governo da direita. Isso foi uma constante no PCP e alguns socialistas esquecem-se de que foram empurrados para a direita durante os últimos 40 anos. Por isso é que digo que com um PCP diferente as hipóteses de uma esquerda mais ampla e coligada poderiam existir desde há 25 anos. Contudo, há a pergunta eterna e sem resposta: se o PCP fosse mais democrático ainda existiria hoje? Todos os partidos comunistas europeus que aderiram ao eurocomunismo - há só um ou dois travestis em Itália e em Espanha - desapareceram. Foram extintos ou mudaram de nome e só o mais sectário, obsoleto e atávico é que mantém algum sucesso..Acusa Cunhal de não olhar a meios para chegar a secretário-geral e de aproveitar a repressão para se afirmar. Beneficiava-se do jogo do próprio Salazar? Isso não, mesmo que tenha denunciado várias pessoas no Avante! Por exemplo: uma vez saiu uma denúncia sobre Piteira Santos que o classificava de reacionário e apoiante do marechal Tito da Jugoslávia! Como denunciou Soares, que chegou a ser designado, num tom provocatório, como apoiante de Salazar, um antidemocrata e traidor à causa. Cunhal nunca se coibiu de usar esses meios para lá do limite e de modo a atingir os seus fins. Hoje, começa-se a conhecer outros factos internos do PCP, como o de certos dirigentes serem esquecidos ou postos de parte e sem nada ser feito para os recuperar. O Júlio Fogaça é um deles, afastado e acusado na literatura comunista clandestina de provocador e homossexual; o velho Bento Gonçalves foi mantido numa redoma mas morreu no Tarrafal e nunca mais se falou dele. Cunhal fez sempre tudo o que pôde para liquidar as pessoas próximas dele que ascendiam no partido e também não quis ter rivais..Pode dizer-se que foi contra Cunhal que se encarniçou mais a nível político? Não contra Cunhal mas contra o PCP... é a mesma coisa... O período da minha vida mais intenso do ponto de vista político foram os dez anos a seguir ao 25 de Abril e o maior perigo em Portugal entre 1974 e 1985 foi o comunista. A principal luta a fazer era contra ele, que tentou tudo o que pôde com os militares e a extrema-esquerda para atingir os seus objetivos. Não esqueçamos que Cunhal disse - e isso está hoje provado - que em Portugal nunca haveria um parlamento europeu, que nunca se esperasse que houvesse o funcionamento democrático de um parlamento, e que as eleições não eram para isso. E nunca teve vergonha de o dizer. Quase nunca pôs os pés no parlamento e quando o fez foi para um discurso mas nunca para uma discussão parlamentar ou o diálogo. Detestava o parlamento e nisso era parecidíssimo com Salazar. Ambos detestavam o debate político. Salazar nunca teve um único debate em confronto com alguém, nem um, o que seria impensável para um político em qualquer tempo. Talvez o imperador Nero nunca tenha tido um debate! Cunhal teve o famoso debate com Soares, que lhe saiu mal e, apesar da boa cara dele e de alguma aparente segurança, percebe a dado momento que está perder. Foi derrotado por Mário Soares..Tanto Cunhal como Soares acabam por ser suplantados na oposição política por uma insurreição militar. São perdedores? Até se pode ser um pouco mais radical: são os militares que fazem de Salazar, Cunhal e Soares os três grandes protagonistas. Explico: regime de Salazar deve-se ao golpe militar do 28 de Maio de 1926; a democracia pró-esquerda e pró-Cunhal deve-se aos militares do 25 de Abril de 1974, e o tempo pró-Soares deve-se ao golpe do 25 de Novembro de 1975. A grande diferença entre os três é que Soares acrescenta as eleições, mas os três devem o êxito a golpes militares..Dá como título ao capítulo sobre Soares "O triunfo de um plebeu". Qual é a a intenção? Em Portugal a palavra "plebeu" não é sempre bem-vinda, mas digo-a com carinho e louvor. Soares não pertence à casta financeira ou militar nem à organização do clero. Salazar é feito peça a peça pela Igreja e pelos militares e o que tem de excecional é que depois é ele quem comanda as duas. Cunhal pertence ao universo dos sacerdotes comunistas que têm sede em Moscovo. Soares não pertence a nenhuma casta, era um advogado da Baixa lisboeta, e por isso digo que é um plebeu..A ideia que se tem de Soares é a de um homem vitorioso, contudo refere que os seus governos foram sempre seguidos por "clamorosas vitórias da direita ou dos seus rivais". Ou seja, falhou? Sim. Nos dois grandes governos de Soares, o primeiro constitucional, e em parte o segundo, bem como no terceiro de coligação com Mota Pinto, ele tinha umas tarefas primordiais a cumprir. E cumpriu: a instauração do primeiro poder democrático institucional, pôr em ordem as finanças - mesmo que periclitantemente - e resolver a primeira grande crise financeira em Portugal. Mas não conseguiu alargar o seu apoio eleitoral nem impor uma visão estratégica. Porquê? Soares não era um homem de grandes voos e se tinha uma estratégia política para ele, para o partido e a governança do imediato, nunca se lhe viu ser mais do que a figura da liberdade e da Europa. Nunca se lhe viu uma reflexão profunda sobre o trabalho em Portugal, a situação financeira ou cultural, todos os grandes problemas do destino de uma nação. Resolvia os problemas e aparecia sem amanhã, tanto assim que rapidamente a direita - Sá Carneiro e Cavaco Silva - levavam a melhor porque o eleitorado percebia que com Soares era um beco sem saída..Diz que Soares era um homem vulgar. Também é um elogio? Era um homem igual a nós..Elege Ramalho Eanes como principal adversário de Soares e Cavaco como o grande rival. É a versão que ficará para a história? Creio que sim. O general Eanes foi um inimigo porque, fosse em Belém ou fora, sonhou com uma liderança política e partidária nacional. Quem sabe mesmo se o federar de toda a esquerda democrática? Ora, Soares não queria ter competição ou concorrência à esquerda, até poderia ter um inimigo de estimação - Cunhal - mas não alguém que tentasse mesmo ficar com o seu partido. Quando Soares percebeu que havia relações muito estreitas entre Eanes e Jorge Sampaio, Constâncio, Cravinho e, sobretudo, Salgado Zenha, pensou "este homem quer o o meu lugar. Isso foi para Soares um ato de pura guerra, não era rivalidade política sequer. Mais tarde, no mandato de Soares na Presidência e com Cavaco como primeiro-ministro, ele sente que este pode ser o seu rival para a história. Se há duas grandes figuras que podem marcar a história contemporânea, são Soares e Cavaco. É que o primeiro mandato de maioria absoluta de Cavaco foi em parte feito graças à dissolução do parlamento pelo Soares, que não quer que haja um governo de esquerda que fique nas mãos de Eanes e dos já referidos. Ao impedir um governo destes, deu dez anos a Cavaco. É um grande aliado desse governo e deve-se a ele a propaganda da ideia de que estamos a viver um oásis e uma nova era, com crescimento, emprego e paz social. Durante esses anos faz tudo o que Cavaco precisa, só que no segundo mandato, por intervenção de Cavaco, os votos do PSD vão para Soares que é reeleito com uma votação única, que nem sei se será repetível. Simplesmente, Soares vinga-se nesse segundo mandato porque não perdoa a Cavaco ter-lhe dado esses votos e de ter sido cúmplice de um governo da direita. A meu ver, Soares ficou com uma dor de coração enorme ao pensar que após os seus dez anos de glória pessoal como Presidente no futuro se dissesse que essa fora a década de Cavaco. E isso Soares nunca perdoou..A escrita e a investigação deste livro fê-lo repensar o processo histórico que viveu? É inevitável. Não mudei de ideias, mas tornou mais clara a relação entre militares e política em Portugal, por exemplo. Nunca tinha feito esse paralelismo, o de que foram sempre os militares que no século XX tomaram as grandes decisões antes de serem depois recicladas pelos civis. No caso de Salazar, não descobri nenhuma simpatia retroativa ou post mortem, o homem não era gostável e é muito menos interessante do ponto de vista doutrinário do que se pensa.