Só existe em dois ou três sítios do Alentejo. É a cigarra mais ameaçada

Chama-se <em>Euryphara contentei</em> porque o técnico da Estação Agronómica Nacional que a capturou, à beira da estrada, perto de Ferreira do Alentejo, em 1978, se chamava José Contente. O entomólogo José Alberto Quartau, que a tem estudado, defende a criação de microrreservas para sua proteção.
Publicado a
Atualizado a

É a mais ameaçada das 13 espécies de cigarras que existem em Portugal. A Euryphara contentei, que nem nome comum definido tem - há quem lhe chame só cigarrinha, e há quem diga cigarrinha-verde, mas este, sendo nome de outra espécie, facilmente gera equívocos -, resiste apenas em alguns locais exíguos da planície alentejana. Uma vala perdida à beira da estrada, entre Estremoz e Sousel, um olival perto de Beringel, na mesma zona, dois ou três pontos dispersos, e muito restritos, no concelho de Ferreira do Alentejo. E é tudo.

"Os estudos que desenvolvi, em colaboração com assistentes, nas últimas décadas, mostram que esta é a cigarra mais ameaçada em Portugal", afirma o entomólogo José Alberto Quartau, investigador do Ce3c, o Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que estuda e acompanha desde o final da década de 1980 a evolução das espécies de cigarras no país. Por isso, o especialista não tem dúvidas: "Esta cigarra tem distribuição ibérica, mas está à beira da extinção em Portugal."

A solução para travar esse caminho, que parece inexorável se nada for feito, já ele a sugeriu em 2014, num artigo que publicou em coautoria com a bióloga Ana Paula Simões. "A solução", diz José Alberto Quartau, "é a criação de microrreservas nos poucos locais onde ela ainda existe, para sua proteção".

Além de rara, a Euryphara contentei é a mais pequena de todas as cigarras conhecidas no território nacional, no continente. De um verde inconfundível - por isso mesmo há quem a chame de cigarrinha-verde -, tem também um canto muito próprio: é mais agudo e difícil de distinguir na zoada do campo, num dia de verão. José Alberto Quartau foi o primeiro a registar esse canto, em Portugal, em 2004. Mas a espécie já tinha sido descrita quase três décadas antes, em 1982.

Quem pela primeira vez capturou um exemplar da espécie, em 1978, justamente na região de Ferreira do Alentejo, foi o técnico José Contente da então Estação Agronómica Nacional, que nesse dia acompanhava o entomólogo José Passos de Carvalho (1937-2004) numa saída de campo.

Suspeitando logo de que aquela poderia ser uma espécie nova para a ciência, José Passos de Carvalho decidiu enviar o espécime para o Museu Nacional de História Natural, em Paris, ao cuidado do entomologista Michel Boulard. Este confirmou e descreveu a nova espécie e, em homenagem ao técnico que a havia recolhido da vegetação, na berma da Estrada Nacional 121, perto de Ferreira do Alentejo, chamou-lhe Euryphara contentei. Mais tarde, a cigarra foi identificada também em alguns locais em Espanha, o que mostrou que é uma espécie ibérica.

Fascinado pelas cigarras, e pelo seu canto, o entomólogo José Alberto Quartau decidiu, a partir de certa altura, seguir o rasto de todas as espécies conhecidas deste grupo no território nacional. Coligiu primeiro toda a informação disponível sobre as espécies referenciadas e depois partiu para o campo, a bater o terreno, em busca delas, para avaliar a sua distribuição. Das 20 iniciais, encontradas na bibliografia, confirmou 13, mas uma delas foi ele mesmo que a descreveu pela primeira vez. "Algumas podem ter-se extinguido, ou estavam mal referenciadas", sugere. E desde o final da década de 1980 faz monitorizações regulares, para avaliar a sua presença nos campos, com resultados que não são os mais animadores.

Das 13 espécies confirmadas no território continental, pelo menos seis, ou seja, quase metade, estão em recuo, com as populações fragmentadas e em habitats cada vez mais residuais. Embora em situação aparentemente mais crítica, a Euryphara contentei, afinal, não está sozinha nas dificuldades.

As práticas agrícolas, como a lavragem da terra, que destrói os juvenis - eles passam meses a fio no solo a desenvolver-se -, o uso de pesticidas e herbicidas, a agricultura intensiva e a limpeza da vegetação na berma das estradas, onde elas põem os ovos, são os seus inimigos, e estão a levar a melhor. A criação das tais microrreservas, propostas por José Alberto Quartau, começa a ser uma urgência.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt