"You"ve got this strange effect on me", diz a letra da canção de Dave Berry que se ouve no genérico de abertura. Esse efeito estranho é o que se pretende explorar na nova minissérie de David E. Kelley, o criador de Big Little Lies e The Undoing, ambas colaborações com Nicole Kidman, enquanto atriz e produtora. Nine Perfect Strangers surge então como o terceiro momento dessa parceria fecunda no pequeno ecrã, que volta a adaptar um best-seller de Liane Moriarty (autora do badalado Big Little Lies), reunindo um elenco de caras conhecidas. Para além de Kidman, dê-se as boas-vindas a Melissa McCarthy, aqui bem longe do habitual registo da comédia, ao lado de Michael Shannon, Bobby Cannavale, Regina Hall, Luke Evans e Samara Weaving, entre outros..A ideia de juntar um grupo restrito num local isolado tem marcas dos tempos que vivemos. Nine Perfect Strangers tirou partido desse estado das coisas: pegou num conjunto de atores e aplicou-lhes uma espécie de quarentena num resort de bem-estar em paisagem australiana. Na série, o retiro idílico é situado no norte da Califórnia, chama-se Tranquillum House, e é para lá que confluem, no primeiro de oito episódios, os nove perfeitos desconhecidos do título. Temos Frances (McCarthy), uma escritora famosa que está a atravessar uma crise pessoal, Tony (Cannavale), um homem que parece um miúdo impertinente, a risonha Carmel (Regina Hall), que acaba por mostrar que tem pelo na venta, quando se sente agredida pelo menosprezo de Lars (Evans) ou de Jessica (Weaving), uma influencer a precisar de vitaminas de autoestima e de salvar o casamento, e ainda a família Marconi, com o alegre patriarca Napoleon (Shannon) a tentar espantar a angústia do luto que tomou conta da mulher (Asher Keddie) e da filha (Grace Van Patten)..Todos têm os seus traumas e elementos tóxicos que impedem o alcance de uma plenitude física e espiritual. Todos procuram o encontro com Masha (Kidman), a curandeira etérea que carrega a memória das suas próprias cicatrizes e diz ser capaz de os transformar radicalmente em 10 dias, começando por lhes retirar os telemóveis e trocando os tradicionais exercícios de relaxamento por métodos de terapia de choque ao natural, entre smoothies que contêm substâncias alucinogénias, corridas de sacos de batatas e experiências de meditação pouco convencionais. Enfim, um programa a que Masha chama de "protocolo" e se certifica de ser cumprido, com a ajuda dos seus funcionários zen..Nicole Kidman gosta de personagens com material psicológico pesado. E depois de interpretar uma psicoterapeuta em The Undoing, aqui está nas suas sete quintas. Esta guru com sotaque russo e aparência angelical é um mistério flutuante que tanto pode sugerir uma atmosfera de perigo, como ser ela o alvo da ameaça. É uma benfeitora com traços esporádicos de vilã que exerce, digamos, o tal "efeito estranho" no grupo à sua volta (e mesmo no espetador), garantindo uma harmonia frágil com base na receita detox que vai libertando demónios interiores em cada um dos participantes do retiro..À medida que os episódios avançam - e só foram disponibilizados seis à imprensa -, é essa ambiguidade de Masha que torna Nine Perfect Strangers um território com fortes possibilidades de surpreender no desfecho. Assistir ao drama individual das outras personagens acaba por ser um pouco menos interessante, já que elas funcionam como pequenas janelas para uma realidade íntima que não dá para aprofundar devidamente. São caixinhas de segredos sem espessura emocional por aí além, mas com evidente importância na gestão do grande enigma: o que é que eles estão ali a fazer? Porquê este específico grupo de pessoas? O que é o "protocolo"?.Quem já espreitou a recente série The White Lotus (HBO), que se passa num resort de luxo no Havai, não deixará de estabelecer comparações. A questão é só esta: onde o argumentista Mike White vê com clareza a sátira da luta de classes, David E. Kelley explora as psicoses que definem uma reunião de seres, aparentemente desamparados. Essa escavação de traumas tem sido aliás seu apanágio, embora Big Little Lies, por exemplo, consiga fixar-nos nas dores das personagens, mais do que servir-se delas para preencher uma equação de mistério. Seja como for, estamos aqui sob um agradável efeito estranho....Numa altura em que o discurso do bem-estar, nas suas diversas aceções, se tornou particularmente relevante, com as pessoas à procura de algo que restaure o equilíbrio do corpo e da mente num quotidiano alterado, a premissa de Nine Perfect Strangers ganha especial contexto. Andamos todos a ansiar por uma cura, não é verdade? Aqui ela tem a imagem recorrente de uma combinação de fruta a ser preparada no liquidificador em câmara lenta, passeios e jogging num ambiente pastoral, surtos de violência e sonhos bizarros com efeitos secundários. Kidman recebe-nos de braços abertos; só não sabemos se nos deixará sair ilesos..dnot@dn.pt