Não há volta a dar: "Sim, foi para isto que se fez o 25 de Abril" - e "isto" é "a liberdade, a democracia e a paz", sentencia Vasco Lourenço, o coronel que foi capitão do Movimento das Forças Armadas na Revolução dos Cravos. "É evidente que podemos dizer sempre que estamos insatisfeitos, que há muitas coisas que sonhávamos que seriam diferentes, para melhor, quando se fez o 25 de Abril", acrescenta ao DN..Vasco Lourenço puxa de um exemplo: "A grande desigualdade social que voltou a haver em Portugal". "Nós em relação à aproximação entre os mais ricos e os mais pobres, em relação a uma justiça social maior, nós ambicionávamos mais do que aquilo que se passa hoje em Portugal", explica..Com a democracia, "esta situação melhorou claramente, defende Vasco Lourenço, presidente da Associação 25 de Abril, mas "regrediu e hoje atingiu um ponto que é preocupante". E conta que ouviu um pouco antes da conversa com o DN, "numa emissora", a referência "à enorme desigualdade" nos salários dentro das mesmas empresas, entre gestores e trabalhadores.."É absolutamente inconcebível" o que se passa hoje, neste capítulo. Vasco Lourenço teme que esta "injustiça" dê origem "à reação dos que estão pior" e que venhamos a assistir, "dentro de algum tempo, pelo menos no mundo, a uma nova revolta dos escravos". "Neste aspeto, o 25 de Abril está muito por cumprir. Agora, em termos globais, não tenho dúvida nenhuma em lhe dizer que foi para isto que se fez o 25 de Abril", conclui..Já Elísio Estanque pinta os tempos de hoje com menos cor. Quando se deu a Revolução estava nos Comandos da Amadora e a Revolução livrou-o de eventualmente receber guia de marcha para a guerra colonial. Aquele que hoje é professor universitário em Coimbra e Investigador/a no Centro de Estudos Sociais da Universidade daquela cidade nota que o país, 45 anos depois, "tem coisas boas e tem outras frustrantes", à falta de melhor palavra..Para quem estava metido na política naquele tempo, aponta Elísio Estanque, "não se imaginavam as voltas que isto ia dar". Sim, foi para isto que se fez o 25 de Abril, mas "idealizávamos as coisas de outra maneira". Dali sairia uma "sociedade mais justa, mais igualitária", depois de os militares terem posto fim a "um regime que nos atrofiava"..O país estava em guerra, com a mobilização de jovens para um conflito em três teatros de guerra, que nesse momento vivia um impasse militar e depauperava os cofres do país..Portugal não tinha um voto livre, as eleições eram manipuladas pela ditadura que instalava na Assembleia Nacional deputados de um partido único, mesmo que admitisse alguns mais opositores, que acabaram mesmo a fazer oposição nessa câmara. Mas quem falava demais, quem era democrata e pedia outro regime e a liberdade, podia ver-se sem ela: os presos políticos acumulavam-se nas cadeias, de Caxias ou Peniche, e a PIDE, mesmo com o nome de DGS tratava de torturar para obter nomes de camaradas democratas..O país tinha a Mocidade Portuguesa (dias depois do 25 de Abril, o DN ainda noticiava um encontro de mulheres desta instituição militarizada organizada para formatar crinaças), mas não tinha um serviço universal e gratuito de Saúde, o mesmo que foi criado em 1979 e permitiu a Portugal deixar de ter níveis terceiromundistas de mortes infantis..A discriminação sexual e de género e a pobreza eram senha e contra-senha de uma ditadura que preferia o respeitinho e alimentava o medo. Não havia greves, nem manifestações, que eram reprimidas à bastonada pela polícia. .O analfabetismo alimentava recordes numa Europa que se tinha desenvolvido em ritmo acelerado depois da II Grande Guerra e permitia comportamentos e uma cultura em que a mulher votava se autorizada pelo marido, em que até maio de 1970 existiu uma licença obrigatória para ter um isqueiro e a Coca-Cola tinha sido proibida à conta e graça de um anúncio que dizia que estranhava primeiro e entranhava-se depois.."À nossa escala conquistámos muita coisa", aponta Elísio Estanque. Para tudo isto, fez-se o 25 de Abril - e "o sonho ganhou um âmbito quase infinito", defende o professor ao DN. "Encontrávamos as pessoas e confiávamos todos uns nos outros", diz da festa bonita que foi. "O encontro com o diferente era uma descoberta. Hoje em dia, o individualismo ganhou proporções muito grandes", explica. Mas a democracia sofreu uma "corrosão" e uma "perversão", com um peso e uma força acrescidas do consumo. "Provavelmente não se esperava que houvesse tantas desigualdades e desequilíbrios.".O presente hoje é cinzento e estranho, descreve Elísio Estanque, com uma muito maior "encenação do que havia antes". "A solidariedade esbateu-se bastante", defende, apesar de poder ser injusto com esta generalização. "Há menos honestidade, transparência e frontalidade" e, em locais como o de trabalho, "há uma certa inibição". Depois do 25 de Abril, "todos tínhamos opinião e não tínhamos medo de a transmitir em locais próprios"..No período revolucionário, a partir do quartel da Amadora, Elísio Estanque vai viver um tempo "mais intenso", até final de 1975, nos sindicatos, na UDP e na ocupação de casas em Lisboa. "Uma experiência muito marcante.".O país fervilhava, os jornais lançavam muitas vezes duas e três edições ao dia. No bairro que em Lisboa era dos jornais, o Bairro Alto, o Snob era a casa de muitos jornalistas. Surgido em novembro de 1974, neste local onde se podia cear até muito tarde, quase tudo se mantém como dantes: a especialidade da casa continua a ser o bife, com o seu molho, aberto até às três da manhã, e o bacalhau à Braz só entrou na ementa quando da crise das vacas loucas. Pode-se fumar como desde sempre e apenas o gelo do whisky deixou de ser partidos com o cabo de uma colher num grande bloco gelado. Hoje são cubos normalizados..Como normalizado parece o país: quem aqui chegasse em 13 de maio de 2017, pela primeira vez desde 24 de abril de 1974, julgaria que Fátima, o fado e o futebol ainda eram a santíssima trindade de Portugal. O Papa Francisco estava no santuário mariano, Salvador Sobral arriscava e ganhava o Festival da Eurovisão e o Benfica era campeão. Mas foi também para isto que se fez o 25 de Abril. É bonita a festa, pá.