De Simone a Jorge Palma. Silêncio... Que se vai recordar Amália

Faz este domingo 20 anos que morreu Amália, mulher simples, culta e inteligente, que sabia exatamente o que queria e que pôs a intuição ao serviço da arte. Os amigos, colegas e admiradores lembram esta artista que fez do mundo o palco.
Publicado a
Atualizado a

"Cantar, cantei muito. Trabalhar nada." O tiro saiu de rajada da boca de Amália Rodrigues em 1988, numa conversa no programa Piano Bar, da RTP, que surpreendeu Simone de Oliveira. "Lá está... Ela achava que cantar não era trabalhar", recorda agora a cantora, que neste sábado é uma das artistas a subir ao palco da Altice Arena, em Lisboa, para recordar a fadista, 20 anos após a sua morte. Foi a 6 de outubro de 1999 que o país soube com choque da morte de Amália, mulher simples, com poucos estudos mas que foi uma artista universal. O dia em que nasceu não se sabe bem qual foi - terá sido a 1 de julho, embora só tenha sido registada a 23 - mas essa quarta-feira em que se foi embora sem dizer adeus ninguém esquece. E 20 anos depois continua na memória.

Amar Amália leva este sábado artistas de várias gerações e estilos musicais, como Jorge Palma, Aurea, Paulo de Carvalho, Dulce Pontes, Vanessa da Mata e Simone a recordar a mulher que fez do palco o seu mundo. "Minha nossa senhora, Deus é grande e nos ilumine", pede Simone, que partilha com a rainha do fado os nervos antes de subir ao palco. "Se alguém tinha medo era a Amália", assegura.

"A minha média é de 48 pulsações, mas quando vou entrar no palco elas sobem para 120", confessou a fadista ao jornal A Capital, em 1985. "Tenho medo que já não gostem de mim", explicou três dias depois na RTP. Mas isso não a impediu de ser a maior artista nacional de todos os tempos, com milhões de discos vendidos em cerca de 30 países e espetáculos esgotados em todo o mundo. "Ninguém até hoje chegou àquilo que a Amália fez. Nem Portugal sabe bem o percurso que Amália fez", comenta Simone, lembrando esses tempos em que a Amália e o Eusébio eram símbolos nacionais.

"É uma artista verdadeiramente universal, uma das artistas mais importantes da história do século XX. Levou a língua e a cultura portuguesas aos quatro cantos do mundo. O palco dela foi o mundo e trouxe muito do mundo para o fado", acrescenta Sara Pereira, diretora do Museu do Fado. "Amália transcende o bairrismo do fado. Ela internacionalizou o fado", resume o amigo João Braga, para quem o fado só nasceu no dia em que Amália se estreou em público, em 1939, no antigo Retiro da Severa, na capital.

"Foi um fenómeno que passou por aqui. Mudou completamente o fado", analisa o fadista.

Uma inovadora incompreendida

Para a cantora lírica Yolanda Soares, "Amália abordou o fado de uma forma única, diferente, e também revolucionária". A fadista inspira-a e já gravou dois discos com temas de Amália, mas "pintados de uma forma erudita", Music Box - Fado em Concerto (2006) e Royal Fado (2016). "O fado era das ruas, era aqueles poemas mais populares, mais da vida mundana, e, de repente, aparece Camões, Almada Negreiros, com poemas muito mais difíceis de musicar. Tanto que os guitarristas, quando tentavam musicar estes fados com as músicas que se faziam para estes poemas, diziam "Lá vai ela para as óperas!"."

Amália inovou. Trouxe Ary dos Santos, Alexandre O"Neil, Manuel Alegre ou David Mourão Ferreira para a rua. E, antes de aplaudida, foi criticada. João Braga lembra que a fadista lhe chegou a telefonar, "chorosa", por algo que alguém escreveu por ter tido a ousadia de musicar esses poetas. "Sabia o valor que tinha. Não era falsa modesta. Mas picava-se quando era criticada", conta. E recorda aquele dia em que se atreveu a reparar que Amália partira mal as sílabas no primeiro verso de Povo Que Lavas no Rio.

Não foram as únicas vezes que esteve sob críticas. "No pós-25 de Abril ficou chocadíssima com o país", lembra Herman José. "Não gostava de política, nunca alinhou em coisas políticas. A única declaração política que fez foi dizer que achava o Salazar bonito. E bem se lixou com isso!", acrescenta João Braga. Ficou associada ao regime e após a revolução teve de lidar com a censura social.

"Antes só conhecera a fama e a unanimidade", repara Herman. Quando recuperou do baque de ser catalogada como artista do antigo regime, "começou a dar valor aos momentos de boa disposição e a levar-se menos a sério", diz.

Personalidade desconcertante

Amália foi convidada em programas do humorista e até caricaturada por Joaquim Monchique. Dessa imitação, Herman José não teve feedback, mas lembra-se de ter feito uma piada na Roda da Sorte, da RTP, que lhe valeu uma bela descompostura. "Não confundir boa disposição com tolerância total."

"Ficava ofendida quando diziam palavrões em frente dela", acrescenta João Braga, que recebeu muitas vezes Amália em sua casa. Mas só depois das 16.00, que Amália não era pessoa de se levantar cedo. Adorava sardinhas. "Sabe o que é que ela bebia a acompanhar as sardinhas?", pergunta. "Chá... que era cá uma coisa...", responde de imediato. "Não bebia. Só dois dedos de champanhe depois do espetáculo", insurge-se como se confrontado com uma ideia generalizada que ataca a fadista neste assunto.

Foi em casa da rainha do fado que Simone de Oliveira ensaiou Desfolhada, em 1969, não sabe bem porquê. Mas lembra-se de que foi apresentada a Amália seis vezes. E não esquece o quanto deve à fadista, que a chamou para atuar no Olympia de Paris e que a indicou para cantar em Monte Carlo e no Rio de Janeiro. Histórias são muitas, bem como admiração e respeito. "Era uma mulher inteligente, culta, espertíssima, com uma voz e presença únicas", diz. "Mas quando era difícil era difícil." Bastava o olhar e a postura para se perceber quem mandava ali. "Sentia-se."

Herman José lamenta não ter assistido ao auge da carreira de Amália, mas agradece ter tido a honra de ter ficado "mais ligado ao ser humano do que à vedeta".

A festa de celebração dos 40 anos de Herman, em 1994, foi marcante. Amália já tinha 74 e estava sentada à direita do humorista.

"Nesse jantar senti que tinha nascido verdadeiramente uma amizade fortíssima. Há uma fotografia dela a olhar para mim com um ar apaixonado. Aí tornámo-nos verdadeiramente próximos", conta Herman. "Sinto que ela se rendeu a mim como artista."

Amália cantou com orquestras mas preferia a companhia das guitarras. Júlio Resende toca-a ao piano. Mais: tem um dueto com a fadista, só possível graças às tecnologias e a uma autorização inédita da editora para usar a voz de Amália em Medo. No dia 8, terça-feira, sobe ao palco do Teatro da Trindade, em Lisboa, com o espetáculo De Júlio Resende para Amália Rodrigues.

"Era uma grande mulher. Uma mulher que não tinha medo de dizer aquilo que pensava, uma mulher que não teve medo de criar ruturas e criar desconfortos, e também que não teve medo de agradar naquilo que quis agradar, mas sempre com essa coisa genuína de ser ela mesma e de cantar aquilo que queria, como queria, com quem queria, da forma que queria", considera o pianista.

Perseguida pela ideia da morte, como uma obsessão doentia, dizia que não chegaria ao ano 2000. E até a despedida foi como queria com o fado Grito a ouvir-se na Basílica da Estrela e com João Braga a ler na televisão, à laia de elogio fúnebre, o poema Faz-me Pena, que escreveu: "Adeus que chegou a hora/Há muito a venho esperando/E se por mim ninguém chora/Faz-me pena e vou chorando." Amália tinha medo que se esquecessem dela, mas 20 anos depois está bem viva e continua a inspirar as novas gerações. Como canta João Braga no fado Amália, "Tu, mais do que tudo, és todos nós".

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt