Os méritos de um argumentista de cinema não se definem apenas (nem sobretudo) pela capacidade de inventar linhas de diálogo que parecem libertar-se dos próprios filmes, ganhando vida própria. Mas não há dúvida de que M. Night Shyamalan soube escrever uma dessas linhas, das mais famosas no imaginário cinéfilo de Hollywood. Quem a diz é Haley Joel Osment (tinha, na altura, 10 anos) no filme O Sexto Sentido (1999). O rapazinho discreto e sagaz que Osment interpreta possui poderes que transcendem a nossa perceção. Ou como ele diz: "Eu vejo pessoas mortas" (I see dead people)..No dia em que Shyamalan celebra o seu 50.º aniversário - nasceu na cidade de Mahé, na Índia, a 6 de agosto de 1970 -, vale a pena recordar que esse filme teve qualquer coisa de revolucionário na produção americana. Isto porque, nos tempos finais do século XX, as suas características de thriller mais ou menos sobrenatural estavam longe de corresponder aos modelos consagrados pelo mercado..Em 1999, o filme mais rentável nas bilheteiras dos EUA foi mesmo A Ameaça Fantasma, título que assinalou o regresso de George Lucas aos trabalhos de realização no interior da saga Star Wars. Entre os lançamentos desse ano incluem-se o segundo capítulo da animação Toy Story e o primeiro Matrix. Dito de outro modo: face ao domínio de espetáculos de características infantis ou juvenis, O Sexto Sentido impôs-se como uma narrativa mais "séria", capaz de mobilizar também o público adulto. A sua receita global, superior a 670 milhões de dólares, correspondeu a mais de 16 vezes os custos de produção (cerca de 40 milhões), ficando como o segundo título mais rentável do ano..Até aí, Shyamalan era um cineasta independente. Tinha começado por assinar um filme autobiográfico, Praying with Anger (1992), regressando às origens indianas da sua família (os pais emigraram para os EUA poucas semanas depois do seu nascimento). E não há dúvida de que a gestação financeira de O Sexto Sentido foi, no mínimo, problemática: o projeto foi comprado pelo diretor de produção dos estúdios Disney, David Vogel, por três milhões de dólares (valor elevadíssimo para um cineasta sem créditos firmados na indústria), sem ter consultado os seus superiores. Mesmo com Bruce Willis como protagonista, Vogel seria afastado do cargo, com a Disney a desinteressar-se do projeto, cedendo os direitos de produção à companhia Spyglass e retendo apenas 12,5% das receitas de bilheteira....Shyamalan conseguiu, assim, uma dupla vitória: abriram-se-lhe as portas dos grandes estúdios, ao mesmo tempo que o sucesso comercial lhe garantia um estatuto de alguma independência. Além do mais, O Sexto Sentido triunfava também como símbolo de um modelo dramático "pessoal" que os filmes seguintes não deixariam de explorar. A saber: a criação de um clima de mistério e inquietação, quase sempre resolvido por um desenlace francamente inesperado..Seguiu-se uma série de cinco títulos que confirmaram a vocação de um autor capaz de convocar algumas referências clássicas do terror ou do fantástico, mas trabalhando-as sempre através de desconcertantes "desvios" dramáticos: O Protegido (2000), reencontrando Bruce Willis, Sinais (2002), A Vila (2004), A Senhora da Água (2006) e O Acontecimento (2008), este último com uma bizarra atualidade simbólica, encenando a fragilidade dos humanos face uma "praga" que não conseguem compreender nem controlar..Depois, Shyamalan não resistiu à tentação de experimentar as superproduções juvenis. Assim, em 2010, realizou O Último Airbender, adaptação de uma série televisiva de animação que, além de uma performance mediana nas bilheteiras, suscitou muitas reações de desagrado dos fãs da série - estava para ser o primeiro título de uma trilogia, mas as coisas ficaram por aí....Os resultados comerciais não seriam muito melhores com Depois da Terra (2013), aventura pós-apocalíptica enraizada numa história de Will Smith, ator que assumiu também a personagem central, contracenando com o filho, Jaden Smith. De tal modo que, em 2015, conservando sempre o papel de produtor, Shyamalan regressou aos filmes de pequeno orçamento, realizando A Visita, um sofisticado exercício clássico de terror centrado na estadia de dois jovens em casa dos avós. O sucesso voltou a ser espetacular: custou apenas cinco milhões de dólares (valor quase ridículo no interior da indústria americana) e rendeu 20 vezes mais..Depois, com Fragmentado (2016) e Glass (2019), voltou ao seu registo mais típico, aliás revalorizando personagens de títulos anteriores: em Glass, reencontramos o Bruce Willis de O Protegido, bem como a figura bizarra que James McAvoy compusera em Fragmentado: um homem de personalidade dividida, não de forma dúplice, mas reunindo dentro de si nada mais nada menos do que 24 identidades distintas... Com altos e baixos, sucessos e insucessos, Shyamalan consegue, assim, manter-se como um dos poucos cineastas americanos que identificamos por um estilo muito próprio, por um modo peculiar de contar histórias: não será um "novo" Hitchcock, mas não há dúvida de que é um herdeiro direto do seu gosto de surpreender e chocar o espectador.