Há uma pergunta que paira antes e depois de se ver A Tragédia de Macbeth: o que é que fez Joel Coen voltar-se para um texto clássico na sua primeira realização a solo? Ainda que se possam encontrar correspondências entre o referido anti-herói, de semblante grave, e algumas personagens do universo picaresco dos irmãos Coen, esta não parece uma escolha óbvia. Quando muito, julgar-se-ia ser um projeto pessoal acalentado em segredo ao longo dos anos. Mas não. O motivo é bastante prosaico: Frances McDormand, a atriz e mulher de Joel, andava há já algum tempo a pensar numa versão de palco encenada pelo marido (acabou mesmo por interpretar Lady Macbeth numa produção teatral em 2016), e juntando-se a isso o facto de o mano Ethan ter decidido fazer uma pausa na parceria criativa, depois de A Balada de Buster Scruggs (2018), Joel achou por bem fazer o gosto a McDormand e arriscar em algo que seria um passo "interessante" para ele próprio. Na sua definição, uma parceria é estar "à procura de coisas mutuamente interessantes", como disse numa entrevista ao jornal Los Angeles Times, e na ausência do colaborador de sempre, atirou-se à primeira ideia simpática para a sua solidão autoral..É um pouco essa falta de genuína convicção, misturada com a vanitas de um "deixa lá ver o que consigo fazer", que infunde o novo Macbeth e o torna tão insípido, embora não totalmente desprovido de curiosos detalhes experimentais. A começar pela idade da dupla protagonista. Ambos com mais de 60 anos, McDormand e Denzel Washington não encaixam no formato do casal jovem e sedento de poder que fomos habituados a ver no ecrã. Eles representam antes uma configuração madura e estável. Ainda nas palavras de Coen: "Ela é uma Lady Macbeth na pós-menopausa, que não deu nem vai dar à luz um herdeiro, e isso tem um papel central. No contexto de Shakespeare, é um bom casamento, eles amam-se. Estão a planear um homicídio, mas tudo bem.".Sim, tudo normal, porque de facto o que poderia ter aqui um efeito concreto de originalidade, em linguagem cinematográfica, acaba por refletir um exercício de representação com o seu quê de esterilidade artística. Um desperdício que se sente em qualquer diálogo ou monólogo, com McDormand e Washington, cheios de potencial mas sem faísca, a debitar falas como quem quer despachar serviço e fazer condizer a expressividade controlada com o despojamento dos cenários. Para se perceber este desajuste, apetece lembrar a descrição dos intérpretes de Shakespeare que Orson Welles deixou escrita num artigo de 1952: "Esses bebedores de cerveja, especialistas em matéria de sangue e trovoada, cujo teatro se abria para o céu e para o público.".Ora A Tragédia de Macbeth de Coen não se abre para lado nenhum, nem tem suficiente sangue e fúria. É uma gaiola com vista para um céu falso, dentro da qual os atores assumem uma presença rígida no sentido de se destacar a sofisticação minimalista do décor, com laivos de expressionismo alemão. O preto e branco do diretor de fotografia Bruno Delbonnel torna-se o assunto principal aos nossos olhos, com os jogos de luz, sombra e névoa a tentarem fabricar uma experiência que, no seu zelo de estilização, não consegue mais do que funcionar como as grades frias da gaiola..A favor de um certo esforço de estranheza está, no entanto, a atriz de teatro britânica Kathryn Hunter, que compõe, sozinha, as três bruxas responsáveis pela profecia da ascensão de Macbeth - esse que matará Duncan, o rei da Escócia, para tomar o poder. No par de cenas em que ela aparece, expondo uma contorção corporal assustadora, The Tragedy of Macbeth ganha um ponto em matéria de soluções criativas, que noutros momentos do filme não alcançam a síntese poética pretendida. Coen tentou trabalhar no plano da abstração, sem a especificidade de um lugar (estamos numa no man"s land), filmando exemplarmente a arquitetura de linhas retas, vazia e indefinida, para nela encaixar os atores em ponto-morto. É certo que o filme cresce em intensidade, mas esta sinaliza-se em pouco mais do que a banda sonora de Carter Burwell e lampejos da loucura de Macbeth. Como se não saíssemos de uma noção de tragédia à base de material sintético..Talvez não seja demais recordar que, antes da bravura casual de Joel Coen, já houve grandes cineastas a levar Macbeth ao ecrã com verdadeira nuance trágica. Do próprio Welles, cuja adaptação data de 1948, a Akira Kurosawa (O Trono de Sangue, de 1957), passando pela magnífica e algo esquecida versão de Roman Polanski, de 1971 (o mais sangrento dos Macbeths), filmada na sequência do assassinato da mulher, Sharon Tate, pelo clã de Charles Manson, a "peça escocesa" de Shakespeare tem sido vitrina para vários atores de cinema..Em 2015, o australiano Justin Kurzel tentou outra espécie de banho de sangue, ajudado pelo par Michael Fassbender e Marion Cotillard, mas desta trapalhada de slow motion não se retira quase nada. Coen, pelo menos, acena respeitosamente ao teatro e tem uma bruxa (x3) digna de habitar os pesadelos mais eloquentes e bergmanianos..dnot@dn.pt