Guerra na Ucrânia. Sete momentos marcantes após três meses de invasão
Na véspera do dia 90 da "operação militar especial" russa para "desnazificar" e "desmilitarizar" a Ucrânia, o presidente Volodymyr Zelensky disse que as suas tropas perdem todos os dias entre 50 e cem elementos a lutar no leste do país, num momento em que Moscovo está a juntar mais meios em Kherson e em Zaporíjia para tentar avançar também no sul. Mas a invasão também está a ser feita com um pesado número de baixas do lado russo. Não há números oficiais, mas os serviços de informações do Ministério da Defesa do Reino Unido indicam que já morreram mais soldados russos em três meses do que nos nove anos da guerra soviética no Afeganistão, onde se contaram 15 mil vítimas do lado da URSS.
Nas primeiras horas de dia 24 de fevereiro, a Rússia invadiu território ucraniano a partir de três frentes, Bielorrússia incluída, no que é o maior movimento de tropas na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Numa mensagem televisiva, o líder russo Vladimir Putin disse que o objetivo era "proteger as pessoas que há oito anos enfrentam humilhações e genocídio perpetrados pelo regime de Kiev", referência à guerra entre as tropas ucranianas e as forças pró-russas apoiadas pelo Kremlin no Donbass, invocando para tal que a liderança ucraniana seria nazi - uma alegação curiosa tendo em conta que o presidente ucraniano é judeu. Zelensky, que dias antes criticava a "histeria" ocidental sobre a iminência da invasão declarou a mobilização geral e disse que "a Rússia enveredou pelo caminho do mal, mas a Ucrânia está a defender-se".
Muitos analistas ocidentais acreditavam que numa questão de horas ou dias a capital ucraniana estaria nas mãos de Moscovo. Com os cidadãos russos sem acesso a informação independente - e a palavra guerra proibida - nem poderem manifestar-se, a propaganda do Kremlin escondeu que os "libertadores" não foram recebidos com flores. A coluna de 65 quilómetros a caminho de Kiev acaba desfeita pelos ucranianos, que se aproveitaram dos erros táticos, da impreparação dos militares russos no terreno e até do equipamento datado, para cortar as linhas de abastecimento. Ficam famosas imagens de agricultores a rebocar tanques e outros veículos abandonados pelos russos em tratores. As forças russas abandonam o aeroporto militar de Hostomel - onde destruíram o maior avião de carga do mundo, o Antonov An-225 - e retiraram-se dos arredores da capital. Uma derrota que se irá repetir na segunda maior cidade, Kharkiv (Carcóvia).
Com a retirada russa da região de Kiev, no início de abril, o mundo viu, pela lente dos fotojornalistas, o horror em Bucha. Centenas de corpos em valas comuns, uma avenida com mais de 20 cadáveres de civis espalhados ao longo de centenas de metros, alguns dos quais com as mãos presas atrás das costas. Os dirigentes ocidentais ainda renitentes juntaram-se ao coro da condenação dos ocupantes pelos presumíveis crimes de guerra, quase de imediato confirmados pelos relatos dos sobreviventes. Mas o regime russo não só negou as imagens como disse tratar-se de uma "provocação" e de uma "encenação".
Em Irpin, a ocupação russa de 24 dias levou à morte de 290 pessoas. Segundo a procuradora-geral ucraniana, 70% da cidade ficou destruída, tendo os russos recorrido a mísseis balísticos. A batalha pela reconquista de Irpin ficou marcada por violentos combates urbanos. Depois de o Tribunal Penal Internacional (TPI) ter anunciado a abertura de uma investigação de crimes de guerra e de crimes contra a humanidade na Ucrânia, enviou uma equipa de 42 especialistas ao país invadido.
No início de março, os ucranianos afundaram a fragata Hetman Sahaidachny, da Marinha da Ucrânia, para que as forças invasoras não a usassem. Três semanas depois, os ucranianos conseguiram destruir o navio de desembarque Saratov no porto de Berdyansk, perto de Mariupol. Mas o maior feito foi terem atingido e afundado o cruzador Moskva, o navio-almirante da Rússia no Mar Negro. Moscovo disse que houve um incêndio a bordo e que acabou por submergir devido a "condições tempestuosas" e, uma semana depois, admitiu a morte de um marinheiro e ferimentos em 27.
Não foi um momento simbólico como a viagem dos três primeiros-ministros da Polónia, Chéquia e Eslovénia a Kiev, ainda em meados de março, ou duas semanas depois, da presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola. Mas obteve resultados. Criticado pela sua inação - apesar de ter sido muito claro quanto à condenação do regime russo, desde logo quanto nas horas anteriores à invasão ter criticado o reconhecimento, por parte de Moscovo, da independência das regiões separatistas ucranianas - o secretário-geral da ONU viu a Assembleia Geral da organização condenar de forma inequívoca a ofensiva russa.
Na última semana de abril anunciou uma viagem a Ancara, Moscovo e Kiev. Foi mais uma vez criticado, a começar pelos ucranianos, que queriam que António Guterres visse primeiro o terreno e depois falasse com Putin. É verdade que o dirigente português não foi capaz de impor uma trégua - devido às limitações da ONU, onde Putin mantém poder de veto, mas também ao desinteresse estratégico das duas partes neste momento do conflito -, mas desbloqueou por fim o desentendimento entre os beligerantes para que os primeiros civis saíssem da siderurgia de Mariupol, abrindo caminho a que se evitasse mais um banho de sangue.
A estratégica cidade de Mariupol, que tinha mais de 400 mil habitantes antes de ter começado a ser bombardeada, no dia 2 de março, resistiu até 17 de maio, apesar de Putin ter declarado a "libertação" desta cidade banhada pelo Mar de Azov no dia 21 de abril. Até lá, as forças russas seguiram a cartilha usada na Síria, num cerco em que não pouparam uma maternidade (que Moscovo também alegou ser encenação), um teatro onde se abrigavam centenas de pessoas (a Rússia atribuiu as culpas ao batalhão Azov), a maioria mulheres e crianças, destruindo 90% da cidade, e, por fim, arrasando com o enorme complexo industrial Azovstal, onde se abrigavam centenas de civis e mais de 1700 soldados ucranianos.
É certo que o líder turco Recep Tayiip Erdogan, à imagem do húngaro Orbán com o embargo ao petróleo russo na União Europeia, impediu o consenso e bloqueou para já o primeiro passo do processo de adesão da Finlândia e da Suécia à NATO. Mas as concessões que Ancara pretende não impedem a viragem histórica decidida pelos parlamentos de Helsínquia e de Estocolmo (e do presidente finlandês, que tem a prerrogativa de conduzir a política externa) de abandonarem a neutralidade. No caso finlandês, na ressaca da invasão da União Soviética, no caso sueco recuando quase 200 anos.
É certo que ambos os países já eram parceiros da Aliança Atlântica desde 1994, fazendo parte de exercícios conjuntos e com compatibilidade de meios. Mas a entrada na NATO é exatamente o oposto do que Putin quer - o Mar Báltico com uma presença de forças ocidentais. Ou, como alguém já disse, num grande lago da NATO.