Desengane-se quem espera um concerto retrospetivo ou de carreira, "há tempo para isso", eventualmente para o ano, avisa Sérgio Godinho, quando se assinalarem os 50 anos sobre o lançamento do álbum de estreia, Sobreviventes. "Aí sim, fará sentido celebrar as canções", agora é de outra coisa que se trata, "de festa" e de "amigos", como aliás devem ser todos os aniversários, mas especialmente quando se cumprem 75 anos, uma "bonita data para se festejar, sobretudo se a saúde se tem mantido geralmente por perto"..E há lá melhor maneira de o fazer senão com um regresso aos palcos, num regresso a esse "território natural", como lhe chama Sérgio Godinho, depois de meses de ausência, impostos à força pela pandemia da covid-19, que até o levou a fazer algo inédito: escrever uma música no calor dos acontecimentos. Chama-se O Novo Normal e é apresentada pelo artista nesta entrevista ao DN como "um breve fresco" sobre a atualidade..Mas voltemos à festa, intitulada 75 no Maria Matos, numa referência aos cinco concertos esgotados que deu nesta mesma sala, em 2007, dos quais resultou o histórico álbum ao vivo Nove e Meia no Maria Matos. "Desta vez começamos é um pouco mais cedo, às nove." Por se tratar de uma ocasião especial, o repertório também será "refrescado", com alguns temas "raramente ou até nunca antes tocados"..Como é que lidou com ausência do palco, nestes últimos meses? Gosto muito do palco, é o meu território natural e familiar. É onde me sinto em casa e por isso faz-nos sempre muita falta e não é só economicamente, embora essa parte também seja muito importante, porque vivemos disto. O palco é o período mais estimulante da vida de uma canção e cada concerto é único, quase como navegar um barco, que tem sempre de ser levado a bom porto..E como será então este concerto, uma espécie de retrospetiva de uma vida de canções? Pelo contrário, terá um formato e um conceito completamente diferentes desse. Na verdade é mais um pretexto para voltarmos todos a estar juntos, de novo num palco. Só fiz uma grande festa de aniversário, quando fiz 70 anos, e queria mesmo fazer outra agora, aos 75, mas como por estes dias isso seria impossível, surgiu esta ideia de o fazer em palco, partilhando com o público aquilo que realmente sabemos e gostamos. E falo no plural porque me refiro a toda a equipa que trabalha comigo, não só os músicos, mas também os técnicos. Quanto a essa retrospetiva, está prevista para 2021, quando celebrar os 50 anos de canções e da edição do meu primeiro álbum, Sobreviventes. Desta vez faço-o só mesmo pelo prazer de voltar a estar com o público, mas de qualquer forma vamos refrescar um pouco o repertório e incluir algumas canções menos tocadas ou até nalguns casos nunca antes tocadas, como o tema que escrevi para o novo álbum dos Clã, Tudo no Amor. E depois haverá aquelas músicas de sempre, que as pessoas querem ouvir e nunca podem faltar..Como foi feita essa escolha? Foi feita por mim e pelo Nuno Rafael, que é assim uma espécie de líder dos Assessores, a banda que há muito me acompanha. Não sou uma pessoa muito dirigista, portanto o trabalho é sempre muito partilhado com todos os elementos da banda, que também participam sempre nos arranjos..Era para ser apenas uma data, mas entretanto já são quatro, é sinal de que o público também está com saudades suas. Sim, inicialmente era para ser apenas no dia 31, que por acaso até coincidia com a data do meu aniversário. Mas não foi de propósito, foi mesmo porque era o único dia livre [risos]. Depois conseguimos acrescentar mais uma, logo no dia seguinte, a 1 de setembro, que também esgotou rapidamente, e por isso decidimos fazer mais duas, a 15 e 21 de setembro. Depois desta seca de concertos só queremos trabalhar, faz-nos muita falta a todos. Quando isto começou tinha imensos concertos marcados, que foram todos cancelados ou adiados..Como é que viveu esse período do confinamento? Foi um período muito complicado, em que aproveitei para adiantar outras coisas. Estou a concluir o meu terceiro romance e também comecei a escrever um livro de poesia, que deve ser editado no próximo ano. Estive a maior parte do tempo fora de Lisboa, muito bem acompanhado e num espaço que me permitiu respirar outros ares. Já em relação à pandemia, houve aquele primeiro momento, em que ficámos todos obcecados com o número de infetados e o avanço da doença, mas depois percebemos que afinal o problema era a crise que se anunciava e já está aí a bater com força..E escreveu também uma música nova, precisamente intitulada O Novo Normal. É raríssimo eu escrever assim, tão em cima do acontecimento, mas quando começou a surgir essa expressão tão gasta do "novo normal" senti necessidade de fazer esse breve fresco da atualidade que vivemos. Há um dado momento da letra em que digo que temos de escolher bem as audácias, porque temos de continuar a ousar um pouco, mas também a saber até onde podemos ir e infelizmente parece que há gente que não sabe. Para já, sabemos que nunca nada vai ser igual e portanto esta música acaba por ser um pouco como uma resposta àaquele slogan inicial, um tanto ou quanto vazio, do "vai ficar tudo bem". Não, não vai..Tem receio de que este medo do desconhecido, surgido com a pandemia, possa ser exacerbado para outros campos da vida em sociedade? Acima de tudo é preocupante a falta de sentido comum no mundo, veja-se o caso das eventuais vacinas e das tentativas de açambarcamento por parte de alguns estados de um bem que devia ser comum a todos. É natural que tentemos proteger as nossas comunidades, mas isso não significa fecharmo-nos ao mundo. O medo é sempre aproveitado por alguém, mas neste caso também houve um outro extremo, que foi o de desvalorizar uma situação completamente trágica e com isso a própria ciência..Está a referir-se a alguém em particular? Sim, aos Trump e Bolsonaros que por aí andam, embora em relação à América tenha esperança de que em novembro acabe já esse pesadelo. Ao contrário do que foi comum numa certa esquerda, nada me move contra a América, muito pelo contrário, até porque algumas das minhas maiores referências, literárias e musicais, são americanas..Estes estranhos tempos poderiam servir de inspiração para um disco? Não estou a perspetivar nada disso, porque, como disse antes, não tenho o hábito de escrever no presente e se o fizesse, a curto prazo, até poderia parecer um pouco oportunista da minha parte. A canção apenas surgiu como uma necessidade, também de acreditar, como digo na letra, que "tudo não passou de um pesadelo fugaz"..Quais são, então, os planos a curto prazo? Em 2021 haverá essa celebração das canções, por ocasião dos 50 anos do álbum Sobreviventes, mas agora apenas estamos preocupados em viver o presente e antes ainda vão acontecer algumas coisas. No dia 3 de setembro vou tocar a Faro, às Noites F, que substituíram o Festival F, onde toquei há dois, precisamente no dia do meu aniversário, e algures para outubro espero dar mais dois concertos, de um projeto entretanto interrompido, chamado Os Fadinhos do Godinho. Falamos destas coisas como se fossem mesmo acontecer, mas sabemos que tudo pode mudar de um momento para o outro..Quer revelar mais um pouco sobre esse projeto? Sim, é um projeto com o Filipe Raposo, ao qual se vai juntar em palco mais um guitarrista de fado, embora ainda não saiba quem, para interpretar os fados que escrevi para outros artistas, como o Carlos do Carmo, a Mísia, o Camané ou a Cristina Branco. Não sou fadista, sei disso, mas todos eles são temas que podem ser cantados de outra forma, mais minha. É um projeto muito interessante, que pega noutro repertório, igualmente meu, que existe, mas que poucas pessoas conhecem dessa forma..E discos, há algum para sair em breve? Sim, vai sair um ao vivo, gravado durante os quatro concertos que demos no Teatro São Luiz, com a Orquestra Metropolitana de Lisboa. Até já devia ter saído há algum tempo, mas a pandemia baralhou-nos todas essas contas..E este regresso ao Maria Matos, onde em 2007 deu cinco concertos esgotados, dos quais resultou o aclamado álbum ao vivo Nove e Meia no Maria Matos, também tem algo de sentimental? A escolha teve mais que ver com a disponibilidade da sala, mas é claro que é um local que me diz muito. É uma sala bastante acolhedora e acabou por ser a solução natural para estes concertos, também por essa recordação do Nove e Meia, que até acabou por inspirar o nome deste espetáculo: 75 no Maria Matos. É uma sala onde já atuei algumas vezes e que me faz sempre sentir em casa. A primeira vez que lá toquei, ainda no antigo teatro, foi com um espetáculo chamado Sete Anos de Canções, imagine-se..Sérgio Godinho 75 no Maria Matos Teatro Maria Matos, Lisboa 31 agosto, 1, 15 e 21 de setembro, às 21.00 20 euros